sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Como os jesuítas ensinavam aos indígenas a doutrina da Trindade

O Padre Manuel da Nóbrega, jesuíta que veio ao Brasil com Tomé de Sousa em 1549, era, apesar de jovem, já experiente em doutrinar, no Reino, a gente que não dava muita importância aos assuntos religiosos. Na Colônia, porém, enfrentaria dificuldades bem diferentes daquelas às quais estava habituado.
Como poderiam comunicar-se os jesuítas com os indígenas que pretendiam catequizar, se não lhes conheciam o idioma? Logo veriam, também, que não estariam lidando com uma única e homogênea cultura indígena - os povos indígenas eram diferentes e numerosos, como eram também diversos o idioma e a cultura. Assim, tratou-se de aprender a língua predominantemente falada no litoral, buscando meios de tornar inteligíveis os ensinos que julgavam ser seu dever transmitir.
Em uma carta dirigida a seus irmãos jesuítas em Portugal, o Padre Manuel da Nóbrega escreveu, a propósito dos indígenas que tentava doutrinar:
"Têm mui poucos vocábulos para lhes poder bem declarar nossa fé. Mas contudo damos-lha a entender o melhor que podemos, e algumas coisas lhes declaramos por rodeios. Estão mui apegados com as coisas sensuais. Muitas vezes me perguntam se Deus tem cabeça e corpo, e mulher; e se come, e de que se veste, e outras coisas semelhantes." (¹)
Ora, meus leitores, já podemos aqui traçar ao menos duas reflexões: ou os padres não tinham suficiente compreensão da língua e cultura dos povos indígenas para explicar o que pretendiam, ou a cultura indígena era muito diferente da dos portugueses e outros europeus no que tange a questões religiosas, daí a dificuldade de encontrar um meio de expressão conveniente para conceitos, por vezes, bastante abstratos.
Creio, senhores leitores, que as duas coisas, de fato, aconteciam.
O jesuíta Belchior de Pontes usava uma
vela 
para ensinar aos índios a
doutrina da Trindade
Como exemplo, tomemos o caso das tentativas que se faziam para explicar aos índios a Doutrina da Trindade. A noção da existência de um Deus-Pai e de um Deus-Filho não era assim tão difícil; entretanto, parecia aos padres quase impossível aclarar o conceito da existência do Espírito Santo. Anchieta, outro missionário jesuíta, relatou em uma carta ao Geral Diego Laynez, datada de 16 de abril de 1563, ao falar da catequese de um índio muito idoso:
"Dando-lhe pois a primeira lição de ser um só Deus Todo-Poderoso, que criou todas as coisas, etc., logo se lhe imprimiu na memória, dizendo que lhe rogava muitas vezes que criasse os mantimentos para a sustentação de todos, mas que pensava que os trovões eram este Deus; porém agora que sabia haver outro Deus verdadeiro sobre todas as coisas, que a ele rogaria chamando-o Deus Pai e Deus Filho; porque dos nomes da Santa Trindade este dois somente pôde tomar, pela razão de que se podem dizer em sua língua; mas o Espírito Santo, para o qual nunca achamos vocábulo próprio, nem circunlóquio bastante, ainda que o não sabia nomear, sabia-o contudo crer como nós lhe dizíamos." (²)
No entanto, um padre, também jesuíta, mas nascido no Brasil no Século XVII, acabaria encontrando uma curiosa e didática solução para o problema. Conta Manuel da Fonseca, outro jesuíta, tratando do modo pelo qual o padre Belchior de Pontes procedia à catequese dos índios na povoação de São Paulo de Piratininga:
"Ajuntava-os em uma praça junto à Igreja da Misericórdia, e postos em fileiras se metia entre eles. Tomava nas mãos uma vela acesa, e com ela lhes declarava o altíssimo Mistério da Santíssima Trindade, explicando como era Deus Trino em Pessoas, e um na essência, porque assim como se notam na vela três coisas, as quais, ainda que são entre si tão distintas, que uma não é outra, constituem um só composto, assim também se notam naquele incompreensível mistério, e que tanto supera a capacidade humana, três Pessoas distintas, e um só Deus." (³)

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 304.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 190.
(3) FONSECA, Manoel da S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, pp. 113 e 114 (Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo).


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