terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Mato Grosso do Capivari" - Uma história de desmatamento no Período Colonial

Era uma vez uma região tão rica em florestas de grandes árvores que acabou ficando famosa entre os construtores de canoas, já que, de um único tronco, era possível fazer uma embarcação de tamanho considerável.
Essas canoas enormes tornaram possível a navegação do Tietê e de outros rios, de modo que o interior do Brasil foi explorado (em ambos os sentidos usuais da palavra), durante o assim chamado "Ciclo das Monções". Tão expressivas eram as ditas matas, que foram chamadas de "mato grosso do Capivari", na área da cidade de mesmo nome e adjacências de Piracicaba, estendendo-se até às paragens das atuais Indaiatuba e Jundiaí. Na obra do Pe. Ayres de Casal, Corografia Brasílica, encontramos esta referência:
"Obra de quinze léguas adiante do precedente (¹) sai na margem direita, e por uma boca de quatorze braças, o considerável Piracicaba, que é formado pelo Atibaia e Jaguari, cujas cabeceiras ficam no Nordeste de S. Paulo, e atravessa uma vastíssima mata de corpulentas árvores, de cujos troncos, assim como das que se criam nas beiradas do mencionado Capivari, se fazem ali mesmo as grandes canoas de oitenta palmos de comprimento, sete e meio de largura, e cinco de alto, em que se navega para o Cuiabá, e carregam quatrocentas arrobas, afora o mantimento necessário para oito homens de tripulação, e às vezes passageiros."
Impressionante, não?
Ora, leitor, não tente procurar tais matas ainda hoje. Ayres de Casal publicou sua obra em 1817, mas pouco depois Saint-Hilaire (²) anotaria sobre as matas de Jundiaí:
"No território de São Paulo [...] quando as grandes matas começam aparecer, as terras são tão planas como as anteriores, e só depois do percurso de cerca de 12 léguas é que são encontradas pequenas montanhas - as de Jundiaí, a cerca de 23º3' de latitude sul. A 6 ou 7 léguas de São Paulo, completamente secas e mais numerosas do que as novas, dão à campina um aspecto triste e acinzentado. Essa região era, outrora, inteiramente coberta de matas. Há cerca de 3 séculos começou a ser habitada pelos homens brancos, não sendo, pois, motivo de admiração o fato das árvores terem sido ali destruídas."
Eis aqui, portanto, mais um exemplo (apenas mais um) de uma alteração ambiental, provocada pela mão do homem e, como quase todas as outras, sem possibilidade de retrocesso. Quem quer que ande hoje pelas terras de "mato grosso do Capivari" deparar-se-á, quase exclusivamente, com onipresentes canaviais. Os poucos trechos arborizados não passam de míseros simulacros das antigas matas.



(1) Refere-se ao rio Sorocaba, afluente do Tietê.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 198.


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domingo, 14 de agosto de 2011

Passeio de rede - Parte 2

"José da Silva sentia agora deixar tudo isso, abandonar o encanto selvagem das florestas brasileiras - ali vivera feliz largo tempo, amara, enriquecera. Tornara-se americano, acostumara-se à música daquelas árvores seculares, à harmonia dos campos, às sestas preguiçosas da fazenda, à vida de chinelas e peito nu, à rede embalada pelo vento, o sono guardado por escravos."
                                                                                                                     Aluísio Azevedo, O Mulato

O hábito de se fazer transportar em uma rede era, aos olhos dos que não estavam acostumados a ele, no mínimo curioso. Há, a esse respeito, um interessante relato de Hércules Florence que, durante a Expedição Langsdorff, conheceu uma fazendeira idosa, D. Antônia, que, ao que parece, não viajava de outro modo, tendo para isso todo um séquito a lhe servir:
"No dia 1º de maio de 1827 partimos para a vila de Guimarães. Em caminho fomos visitar a fazenda do Buriti, de cana-de-açúcar, e pertencente a uma velha chamada D. Antônia, a qual chegou ao mesmo tempo que nós, vinda de Cuiabá. Viajava de um modo novo para nós, carregada por dois negros numa rede suspensa a uma grossa taquara de guativoca. De muda iam outros dois pretos aos lados. Acocorada nessa rede e a fumar num comprido cachimbo, vinha ela seguida de negras e mulatas, todas vestidas limpamente e carregando à cabeça cestos, trouxas e roupas, vasilhas de barro e outros objetos comprados há pouco." (¹)
Antes de mais comentários, leitor, será bom assinalar o quanto de influência indígena havia nesses hábitos: a rede, o cachimbo, o viajar levando os pertences sobre a cabeça (que não é costume exclusivamente indígena, mas que nesse caso parece ser o fator determinante). Acontece que essa exótica personagem não se servia da rede apenas para viajar, como logo descobrimos pelas palavras do mesmo H. Florence, que nos descreve o modo como a fazendeira controlava o trabalho que se fazia em sua propriedade:
"[...] D. Antônia tem sua rede armada perto da porta de entrada, à direita: ali passa os dias a fumar e a dirigir o trabalho das pretas e mulatas." (²)
Além do que descreveu em palavras, H. Florence deixou um precioso desenho do que viu na Fazenda do Buriti, no qual, além da casa-sede, vemos, como não poderia deixar de ser, a proprietária, devidamente instalada em sua rede.


(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 143 e 144.
(2) Ibid., p. 144.


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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Passeio de rede - Parte 1

Partiu nesse mesmo dia, dentro de uma rede, com direção à Vila do Paço. Mas o terrível beribéri subia sempre; os membros por onde ele atravessava iam ficando paralisados e frios como membros de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica, Vasconcelos não pôde respirar de todo e morreu.
Amélia, ao receber a inesperada noticia, rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de luto fechado.
                                                                                                       Aluísio Azevedo, Casa de Pensão

Redes foram e são usadas por indígenas do Brasil para dormir (¹). Bandeirantes, que devem ter aprendido o hábito com os indígenas, também usavam redes, que eram amarradas entre duas árvores, sempre que se parava para estabelecer lugar de pouso. Em redes dormiam, frequentemente, os escravos nas senzalas, e muitas vezes até a família dos senhores na casa-grande. E, verdadeiro ícone do repouso, mas também da preguiça, é a famosa imagem de uma praia, céu impecavelmente azul, dois coqueiros e, entre eles, uma rede bem confortável, sem desconsiderar um copo de suco gelado. O que nem todo mundo sabe é que as redes já tiveram outro uso no Brasil.
Durante séculos, a pessoa que não fosse suficientemente afortunada para ter uma cadeirinha de arruar ou uma liteira, mas ainda assim dispusesse de dois escravos, costumava fazer-se carregar pela cidade ou em pequenas viagens em nada mais, nada menos, que uma rede. Tanto assim que, no intuito de elogiar Matias de Albuquerque, líder das forças luso-brasileiras na guerra contra os holandeses na Bahia, Frei Vicente do Salvador escreveu:
"Foi Matias de Albuquerque todo o tempo que serviu, assim de Capitão-mor de Pernambuco como de Governador Geral do Brasil, que foram sete anos, sempre muito limpo de mãos, não aceitando coisa alguma a alguém, nem tirando ofícios para dar a seus criados. Nas ocasiões de guerra e do serviço de Sua Majestade foi muito diligente, não se poupando de dia nem de noite ao trabalho; nunca quis andar em rede, como no Brasil se costuma, senão a cavalo, ou em barcos, e quando nestes entrava não se assentava, mas em pé os ia ele próprio governando." (²)
Nunca quis andar em rede!

Homem sendo transportado em rede por seus escravos, segundo Debret (³)

Finalmente, fica por dizer que, no interior do Brasil era costume, em outros tempos, quando não se dispunha de caixão apropriado, que os mortos fossem sepultados envolvidos por uma rede - a mesma, aliás, que era usada para conduzi-los ao túmulo, hábito esse também muito provavelmente de origem indígena, já que havia tribos que enterravam seus mortos com os pertences de que haviam se servido em vida, o que incluía, com toda certeza, a rede de dormir.

Doente sendo transportado em rede, segundo H. Florence (⁴)

(1) Diz Pero de Magalhães Gândavo, em seu Tratado da Terra do Brasil:
"A maior parte das camas do Brasil são redes, as quais armam numa casa com duas cordas e lançam-se nelas a dormir. Este costume tomaram dos índios da terra."
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Senado Federal, 2007. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. Neste caso, refere-se a um membro da Expedição Langsdorff. Muitos dos expedicionários foram vitimados por febres tropicais. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 9 de agosto de 2011

Dormir em redes - Parte 3

"Às vezes entrava em casa ao amanhecer. Não podia dormir logo; vinha excitado, sacudido pelas impressões e pela bebedeira da noite. Atirava-se à rede, com uma vertigem impotente de conceber poesias byronianas, escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias, extravagâncias, delírios."
                                                                                                        Aluísio Azevedo, Casa de Pensão

Para os indígenas do Brasil, para bandeirantes, para monçoeiros, a rede era um modo muito conveniente de "carregarem a cama nas costas", onde quer que fossem. Ora, leitor, o hábito tornou-se tão arraigado que foi (e em alguns lugares ainda é) usado mesmo por gente estritamente sedentarizada.
Viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil no século XIX tiveram a oportunidade de verificar e deixar registros desse costume bastante longevo. As imagens que fixaram revelam, inclusive, um fato curioso: uma certa semelhança entre o interior de uma habitação indígena e o da residência de uma família pobre, como se pode perceber pelas amostras seguintes - uma evidente influência e perpetuação dos hábitos dos ameríndios.

Imagem 1 - Interior de uma habitação indígena, ocupada por índios mundurucus, segundo Hércules Florence (¹)


Imagem 2 - Interior da habitação de uma família pobre, segundo Debret (²)


(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 7 de agosto de 2011

Dormir em redes - Parte 2

Desfeiava-lhe a testa uma grande cicatriz - foi um trambolhão que levou na primeira noite em que deram-lhe uma rede para dormir - o pobre desterradozinho, que não sabia se haver com semelhante engenhoca, foi meter primeiro os pés e caiu desamparadamente sobre uma caixa de pinho de um dos companheiros.
                                                                                                                     Aluísio Azevedo, O Mulato

O hábito indígena de dormir em redes, muito conveniente a quem tinha um estilo de vida nômade ou seminômade, espalhou-se amplamente pelas áreas de povoamento lusitano durante o período colonial. Sendo muitas vezes filhos de portugueses e índias, os bandeirantes de São Paulo fizeram uso habitual dessas camas portáteis em suas expedições pelo interior do Brasil, estivessem eles tentando aprisionar indígenas para escravização ou mesmo em procura de riquezas minerais (entenda-se: ouro).
Chama a atenção o fato de que o método descrito de armar redes dos monçoeiros era, em essência, o mesmo que fora descrito por Hans Staden relativamente aos índios - a rede era colocada entre dois paus ou duas árvores. O Conde de Azambuja, obrigado por dever de ofício a meter-se em viagem Tietê afora para ir a Cuiabá em 1751, assim explicou o uso que se fazia das redes nas monções, às quais se adicionava um mosquiteiro, por razões demasiado evidentes para carecerem de menção, e uma cobertura, em caso de chuva:
"Bem sabereis o grande uso que tem nesta terra a rede, a qual é a cama mais pronta e mais fácil de conduzir: porém, como esta não basta para livrar das muitas chuvas que necessariamente se apanham em uma travessia tão grande do sertão, como esta, não guarda também da imensidade de mosquitos, que em partes se encontram: para suprir esta falta, inventaram os viandantes deste caminho o mosquiteiro, que vem a ser uma cobertura de linhagem, ou de outra droga leve, a qual lançam por cima de uma corda, que prendem aos mesmos paus a que atam a rede, por cima dela dois palmos. Esta coberta chega até ao chão por todas as partes, fechada pelos lados e pelas cabeceiras, deixando-lhes nestas umas mangas para se enfiarem os punhos das redes. Quando chove cobrem esta máquina com uma baeta singela, da largura que baste para alcançar alguma coisa mais abaixo da altura em que a rede fica, depois de seu dono deitado nela." (¹)
Muito tempo depois, durante a Expedição Langsdorff, repetia-se ainda a mesma rotina das monções, quanto a baixar acampamento, prover alimentação e instalar redes ao final de cada dia de viagem, conforme relato de Hércules Florence:
"À tardinha, lá pelo ocaso do sol, aproava-se, e então cada remador desempenhava o serviço que lhe havia indicado o guia para toda a viagem. Uns cortavam árvores, limpavam o terreno que ia ser acampamento; outros buscavam lenha seca para acenderem fogo; outros, enfim, armavam as barracas e suspendiam as redes. O cozinheiro preparava sua panelada dos feijões que deviam ser consumidos naquela hora ou no dia seguinte." (²)

Pouso da Represa Grande, de acordo com Hércules Florence (³)

(1) Da viagem que fez o Conde de Azambuja, D. Antônio Rolim, da cidade de São Paulo para a vila de Cuiabá em 1751, in TAUNAY, A. de E. História das Bandeiras Paulistas, vol. 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos/MEC, 1975, p. 199.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 24. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Ibid.


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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dormir em redes - Parte 1

Por que motivo alguém deixaria sua cidade natal e, em meados do século XVI, sairia a percorrer o mundo em navios que mais pareciam cascas de ovos sobre as águas revoltas do Atlântico? Sim, portugueses e espanhóis, envolvidos no processo de descobrimento e colonização a América, tinham seus motivos para tais viagens, mas um alemão que nem era marinheiro? Esse foi o caso de Hans Staden. Fez duas viagens à América do Sul, a primeira em uma frota portuguesa, a segunda a serviço da Espanha. Na segunda viagem teve a infelicidade de naufragar na costa do Brasil. Como era artilheiro, acabou contratado para trabalhar na defesa da povoação portuguesa na área de São Vicente. Entretanto, acabou sendo feito prisioneiro de indígenas, aliás indígenas que tinham, segundo o próprio Hans Staden, o hábito da antropofagia e, muito satisfeitos em prendê-lo, levaram-no para sua aldeia, na região de Ubatuba, com a finalidade de... devorá-lo. Curiosamente, acabou conseguindo safar-se e retornar à Europa, onde, no melhor estilo dos aventureiros de nosso tempo, escreveu um livro, Zwei Reisen nach Brasilien (¹), no qual contou não apenas as peripécias pelas quais passou, mas também algo sobre as particularidades do estilo de vida dos ameríndios com que tivera contato. A obra é tão boa que chega a ser surpreendente que não haja, quanto ao que eu saiba, nenhum longa-metragem expressivo com base nela.
Um dos hábitos indígenas assinalados pelo nosso viajante foi o costume de dormir em redes. Conta-nos Hans Staden que, uma vez prisioneiro dos tupinambás, foi levado à sua aldeia, sendo-lhe destinada uma rede (a que os nativos chamavam inni), na qual deveria dormir. Explica também que a rede era armada entre dois paus ou, quando em viagem, entre duas árvores. Essas redes por ele descritas eram tecidas com fios de algodão e, durante a noite, costumavam os índios manter uma pequena fogueira perto delas, tanto para aquecimento como para afastar insetos e animais peçonhentos.

Rede indígena de acordo com Hans Staden (²)
Hans Staden em uma rede, prisioneiro dos tupinambás (²)

Entretanto, devia haver indígenas que trançavam redes de outros materiais, porque o desenhista francês Hércules Florence relatou que, em 1826, durante a Expedição Langsdorff, viu uma feita de cipó:
"No lugar onde paramos, havia uns gravetos queimados entre cinzas, assim como uma rede de cipó suspensa à alta ramada de uma árvore, sem dúvida para pôr quem lá dormira ao abrigo das onças. Creio que fora algum índio, o qual fizera sua cama tão alta por se achar sozinho, pois tenho como certo que não deve haver o menor receio daquelas feras, quando se viaja em grupo." (³)
Estava a Expedição, segundo o mesmo autor, próximo ao ponto em que o Tietê lança suas águas no rio Paraná.

(1) Duas Viagens ao Brasil. Editado em Marburg em 1557.
(2) De acordo com a edição de Marburg. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog..
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 45.


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terça-feira, 2 de agosto de 2011

A aventura revolucionária de um cavalo em Paraty

Paraty, uma das "cidades históricas" do Brasil, apresenta hoje uma singular característica, perceptível mesmo em meio à multidão de turistas que percorriam suas ruas em julho passado: as residências e pontos comerciais particulares estão muito bem cuidados, com excelente aspecto, quase não há imóvel que não apresente pintura recente. O burburinho nos mais diversos idiomas, o clima algo tépido, mesmo no inverno, o vento que sopra do mar, tudo contribui para fazer desse antigo porto do ouro que vinha das Gerais um lugar muito agradável.
Eu disse tudo? Nesse caso, cabe uma correção. Há muitos locais de grande interesse histórico (e turístico) que estão com aspecto sofrível, precisando de obras de conservação com urgência. Chafarizes e algumas igrejas são bons exemplos. Vai além o problema, já que a água da baía de Paraty estava imunda e, se digo só isso, estou ainda elogiando. Por toda parte havia muita sujeira e as ruas estavam cheias de fezes de animais.
Mas Paraty é Paraty, conserva muito do encanto do passado e sempre vale a visita. A propósito, vou contar um acontecimentozinho divertido que, mesmo sem querer, presenciei.
Há, na cidade, um grande número de charretes conduzidas por guias turísticos que, transportando turistas a passeio, vão repetindo sempre a mesma lista de informações: Nesta casa... Este muro... Esta igreja... E os bons cavalos, com toda a fleuma, seguem a marcha lenta imposta por seus condutores, enquanto fazem, a cada dia, o mesmo trajeto, sabe-se lá quantas vezes. Não quero emitir aqui nenhum julgamento sobre a atividade imposta a esses animais, mas registro que vi charretes em mau estado de conservação, deixando cair partes pelo caminho, e me pergunto se os animais são algo mais bem tratados que os veículos que conduzem. Enfim, espero que estejam recebendo água e alimento suficientes e que não sejam forçados a trabalho excessivo.
De volta ao assunto, estava eu fotografando a fachada da Igreja de Nossa Senhora das Dores quando uma dessas charretes passou por ali, reduzindo a marcha, à medida que o guia começava o discurso de sempre: "Esta é a Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída..." (*) Não teve tempo para mais palavras, pois o cavalo, subitamente, saiu em disparada, levando guia e turistas em alta velocidade rua afora, ao som das gargalhadas dos que assistiam toda a aventura. Posso supor que nem mesmo esse bravo cavalinho suportava mais a irritante cantilena, que em seu labor diário já deve ter ouvido centenas, talvez milhares de vezes.


(*) Para não decepcionar nenhum leitor, acrescento a informação de que a Igreja de N. Sra. das Dores, oitocentista, era frequentada principalmente pelas senhoras da elite da bela Paraty.


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