segunda-feira, 8 de julho de 2024

Alfeloeiras

Como a palavra quase não tem uso há muito tempo no Brasil, comecemos por explicar que alféloa é um doce, um tipo de bala feita com açúcar, trabalhado até ficar completamente branco, semelhante às famosas balas de coco artesanais, que muita gente aprecia. 
Coisa curiosíssima: segundo as Ordenações do Reino, leis que vigoravam em Portugal e, no Brasil, durante os tempos coloniais, a venda de alféloas e outros doces e confeitos era trabalho reservado exclusivamente às mulheres. Homens que se intrometessem nesse ofício deviam ser punidos com severidade. É o que se lia no Livro V, Título CI:
"Mandamos que nenhum homem, nem moço, de qualquer qualidade que seja, venda alféloas, nem obreias, em nenhuma parte de nossos Reinos, publicamente, nem escondido. E o que o contrário fizer, seja preso e açoitado publicamente com baraço e pregão. Porém, se algumas mulheres quiserem vender alféloas e obreias, assim nas ruas e praças, como em suas casas, podê-lo-ão fazer sem pena." 
Na época, com suas quase infinitas restrições e imposições sociais, entendia-se que havia poucas atividades profissionais que pudessem ser exercidas por mulheres que precisassem ganhar o próprio sustento, daí a "reserva de mercado" que lhes era feita, tanto em fazer como em comercializar confeitos. É nesse quadro que se insere Joaninha, menina órfã, personagem criada por José de Alencar em As Minas de Prata. Alencar fez dela uma alfeloeira, ou seja, vendedora de alféloas, nas ruas e praças de Salvador, lá pelos fins do Século XVI e início do XVII:
"Ninguém sabia de seus pais; mas quase toda a gente a conhecia por causa de sua profissão de alfeloeira ou mercadora de doces e confeitos, que ela vendia pelas ruas numa cestinha de palha; nesse mister ocupava todo o dia, percorrendo de uma extrema à outra a cidade do Salvador [...]." 
Quem se aventura a ler As Minas de Prata descobre que seu autor faz uma pausa no fluir da obra literária para um pitaco em assunto de legislação:
"Sentiram os antigos legisladores a necessidade de garantir a mulher contra a indecorosa concorrência do homem na exploração dessas indústrias, femininas por sua natureza. [...].
Por que não será aproveitada na legislação moderna tão salutar disposição?
A liberdade do trabalho tem limites; e nenhum mais justo e sagrado do que a proteção devida pela sociedade às órfãs do século e pupilas da lei. Se a especulação do homem não disputasse à mulher o seu direito ao trabalho, quem sabe quantas misérias não seriam remidas do vício? [...]" 
Alencar estudara Direito em São Paulo e Olinda, e nem todos sabem, mas foi político durante o Império, nas fileiras do Partido Conservador. Nota-se que sua filiação partidária não poderia mesmo ser outra.


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