quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Viviam todos em pecado mortal

Ao vir ao Brasil para estabelecer a primeira povoação com status de cidade, Tomé de Sousa, o governador-geral, trouxe consigo alguns jesuítas, dos quais se esperava tanto a catequese de indígenas quanto a assistência religiosa aos portugueses que, por uma ou outra razão, haviam saído do Reino e agora viviam na América. Manuel da Nóbrega liderava o grupo de jesuítas - os outros eram Leonardo Nunes, João de Aspilcueta Navarro, Antônio Pires, Vicente Rodrigues e Diogo Jacome.
Nóbrega, ao que parece, não ficou nada satisfeito com o que viu na terra, não quanto aos indígenas, nem quanto às boas disposições do governador para com sua Ordem, mas no que tocava à conduta dos colonos em geral. Temos a certeza de suas opiniões porque tudo explicou em uma carta, escrita pouco depois de sua chegada em 1549, e cujo destinatário era o Provincial da Companhia de Jesus em Portugal, padre Simão Rodrigues:
"Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto que a gente da terra vive toda em pecado mortal. E não há nenhum que deixe de ter muitas negras (¹), das quais estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum deles se vem confessar, ainda queira Nosso Senhor que o façam depois." (²)
O que talvez Nóbrega ainda não soubesse é que seu confronto com portugueses que viviam no Brasil estava apenas começando. Em São Vicente a coisa ganhou um estereótipo na figura de João Ramalho com seus muitos filhos mamelucos, que, não aceitando reprimendas dos padres, eram acusados de, sem nenhuma compostura, proferirem ameaças contra os religiosos. Estes, por sua vez, julgando que não deixavam por menos, teriam advertido que chamariam a Inquisição. Resposta? Que viesse o Santo Ofício, pois seria corrido do planalto à custa de umas boas flechadas...
Julgando que os casamentos com mulheres indígenas decorriam da falta de europeias, Nóbrega insistia com o governo português quanto ao envio de órfãs que viessem para casar no Brasil. Deixando de lado, por agora, a questão dessas pobres meninas que se viam obrigadas a contrair casamento em uma terra distante e com pessoas que desconheciam completamente, sabe-se que, de fato, o pedido algumas vezes foi atendido, provando-se, assim, que não era solução para nada. Não poucos homens em terras coloniais eram casados segundo as leis da Igreja e, a despeito disso, tinham vasta prole com suas escravas, fossem elas indígenas ou africanas.
No entanto, talvez seja possível dizer alguma coisa em defesa dos colonos. Vejamos:
  • Alguns deles eram condenados ao degredo que vinham cumprir pena no Brasil - quem é que haveria de esperar que as terras da América fossem um reformatório conveniente para quem já não tinha boa conduta no Reino?
  • Os colonos que estavam de livre vontade no Brasil haviam saído de um país pequenino, no qual as restrições, legal e socialmente impostas, podiam sofrer um controle relativamente fácil, enquanto que o enorme território colonial era visto como um convite à mais ampla liberdade, para bem e/ou para mal;
  • Mesmo que um colono fosse homem muito religioso, a assistência que poderia obter era bastante limitada, já que, pela época da chegada de Nóbrega, eram pouquíssimos os padres que viviam no Brasil, de modo que ir às missas e comparecer à confissão eram práticas que simplesmente não estavam disponíveis;
  • Não muito tempo depois de pisar em terras do Brasil, Nóbrega acabaria descobrindo que mesmo os poucos padres que viviam entre os colonos andavam longe uma vida exemplar, segundo as normas da Igreja - como esperar perfeição da gente do povo que, como regra, tinha pouca instrução religiosa e que, tendo vindo à América com a expectativa enriquecer o mais rápido possível, não tinha muita preocupação ética quanto aos meios que, para tanto, fossem empregados?
Digo aos leitores deste blog que o elenco de argumentos em favor dos colonos poderia ser bem maior, embora não tenha nenhuma intenção de justificar sua má conduta, em particular no trato desumano para com a população nativa, ainda que isso tenha se repetido, com crueldade crescente, em quase todo o Continente Americano, sob as mais diversas bandeiras de colonização. Será bom recordar, apenas, que de toda essa situação colonial, e do mais que ocorreu depois, é que se formou o Brasil que hoje existe, com suas virtudes (muitas) e seus defeitos (não poucos, como se sabe).

(1) Refere-se, provavelmente, a portugueses que viviam com mulheres indígenas, e não africanas, já que era comum no Século XVI, e mesmo um pouco mais tarde, que europeus residentes no Brasil mencionassem como negros tanto os indígenas como os escravizados trazidos da África. 
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 290.


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2 comentários:

  1. É bom que tanto o lado bom como o menos bom da História fiquem registados. Não só para aprendermos com os erros do passado, mas também para compreendermos o mundo que nos rodeia.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. É isso mesmo. Não acho que seja o caso de julgar quem viveu no passado, ainda que alguns tenham essa pretensão. Como vivemos em tempos de muito utilitarismo, é bom lembrar que o estudo da História é ferramenta eficiente para evitar erros cabeludos na atualidade rsrsrsrsssss...

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