segunda-feira, 21 de setembro de 2015

De que brincavam as crianças que viviam no Império do Brasil

"Misturava tudo; o espírito ia de um para outro lado como bola de borracha entre mãos de crianças."
Machado de Assis, Quincas Borba

Brinquedos e brincadeiras infantis fazem parte das mais variadas culturas. Mesmo quando os pequenos são submetidos precocemente ao trabalho, sempre é possível notar a intensa criatividade para o que é lúdico, tão própria da infância, seja na invenção de jogos, seja na imitação da vida adulta, com ou sem o uso de brinquedos. É recreação, mas é também aprendizado, através do qual os elementos da cultura, incluindo os estereótipos, são assimilados, repetidos e, bons ou maus, perpetuados.
De um livro com propósitos educativos, Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, usado em aulas de leitura na segunda metade do Século XIX, depreendemos quais eram alguns dos brinquedos comuns aos meninos brasileiros da época:
"Se te agrada mais, vai jogar a peteca ou a bola de borracha, ou soltar aos ares o papagaio.
Podes fazer tudo isso, dou-te licença, visto teres cumprido bem teus deveres." (¹)
A peteca talvez ande em desuso, mas a bola e o papagaio (²) são familiares a qualquer guri. O mesmo livro ainda trazia:
"Não negues a teus camaradas o que lhes podes ceder, nem escondas da sua vista o boneco, o soldadinho de chumbo ou outro qualquer brinquedo." (³)
Aqui, meus leitores, temos que reconhecer que soldadinhos de chumbo são, agora, apenas objetos para colecionadores. Os brinquedos de hoje são quase todos de plástico, e os meninos preferem os superpoderes dos super-heróis à fadiga de comandar exércitos. Mas vamos adiante, pois da Literatura podemos, também, extrair informação relevante quanto aos hábitos infantis do Século XIX. Foi Machado de Assis quem escreveu, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas:
"Só, só, nhonhô, só, só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando."
Ora, alguém perguntará, e por onde andam os brinquedos das meninas? Já vão aqui, mas não quaisquer brinquedos, e sim os de uma pequena filha de um fazendeiro escravocrata do Vale do Paraíba, conforme descritos por José de Alencar em O Tronco do Ipê:
"D. Elisa e o Dr. Oscar eram um lindo casal de bonecos, vindos diretamente de Paris por encomenda do barão. Alice os tinha recebido havia alguns meses; foi o presente do pai no dia de seus anos. D. Elisa era um anjo de bonita e o Dr. Oscar um serafim, na opinião de Eufrosina; Felícia porém comparava-o a um cabeleiro francês, para ela o tipo da suprema elegância parisiense.
- A noiva está pronta! disse Adélia mirando a boneca enfeitada.
- O noivo também! acudiu a Felícia."
Para contentar quem acha que esta postagem tomou rumos demasiadamente aristocráticos, termino com uma brincadeira dos meninos que perambulavam pelas ruas de Campinas (SP), observando os tropeiros que iam e vinham com suas mulas. Não era questão de apenas assistir ao trabalho dos mais velhos. É que uma travessura estava sempre nos planos. Foi Daniel P. Kidder, pastor metodista americano, quem observou e teve o cuidado de escrever, ainda na primeira metade do Século XIX:
"Aí [em Campinas] viam-se diariamente animais carregando e descarregando. À medida que esvaziavam os jacás onde transportavam os sacos de sal, eram postos de lado como imprestáveis. Sobre eles caíam então os garotos em animada disputa a fim de empilhá-los, e, à noite, ver qual deles fazia a fogueira mais alta." (⁴)
Crianças, crianças...

Escrava vendedora de bonecas (⁵)

(1) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, p. 88. O exemplar consultado pertence ao acervo da BNDigital.
(2) Ou pipa, ou pandorga, ou arraia, ou capucheta, de acordo com o falar regional.
(3) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Op. cit., p. 92.
(4) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 223.
(5) BARROS, Joaquim Lopes de. Costumes do Brasil (1840 - 1841). O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada e restaurada digitalmente para facilitar a visualização neste blog.


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2 comentários:

  1. Brinquedos que ainda hoje fazem sonhar a pequenada. O meu filho não tem qualquer brinquedo electrónico e por vezes as pessoas estranham. Já ouvi "coitadinho" e coisas do género. Mas ele é um menino tão feliz! para quê ficar já encafuado em frente a ecrãs?!
    Beijinhos, um lindo domingo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Acho que os "brinquedos de antigamente" estão ficando de novo interessantes porque as crianças já estão um pouco saturadas com tantos brinquedos que funcionam por si mesmos, sem interferência dos pequenos proprietários.
      Ainda assim, na semana passada, uma pequena de três anos viu que eu estava usando um iPad e veio perguntar: "Você tem jogos?" Olhei para aquela criaturinha com jeito de anjinho barroco e respondi: "Sim, mas nada que seja para gente do seu tamanho!".
      É claro que os mais velhos têm que colocar limites, para bem das próprias crianças.

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