quarta-feira, 11 de maio de 2016

Leis para manter a hegemonia lusitana no mar

As Ordenações do Reino (¹) são famosas, não sem justiça, pela severidade das penas estipuladas em seu Livro Quinto. Mas havia nelas outros aspectos interessantes e menos conhecidos, como era o caso das leis cujo objetivo era manter a posição de destaque que Portugal conquistara no mar. Em qualquer esfera, alcançar a hegemonia é muito difícil; mantê-la, mais ainda. Os legisladores portugueses deviam ter uma consciência bastante nítida deste fato.
No Livro Quinto, Título XCVII, lia-se:
"Se algum piloto, mestre, contramestre, marinheiro, grumete, bombardeiro, espingardeiro, e qualquer outra pessoa desta sorte, que indo nas nossas armadas deixar a nau ou navio em que for ordenado e dela se for sem licença e autoridade do nosso capitão-mor ou do capitão do navio, em que assim for ordenado, se do corpo da armada se partir, ora a armada vá para coisa de guerra, ora de mercadoria, pagará em quatrodobro (²) tudo o que tiver recebido de seu soldo. E sendo de maior qualidade, pagará da cadeia o dito quatrodobro do que tiver recebido, e será degradado por quatro anos para África." (³)
Tentem imaginar, leitores, o que aconteceria se, em uma viagem de descobrimento ou de exploração de um território, uma parte da marinhagem resolvesse ficar em terra, abandonando o navio, onde, costumeiramente, os mareantes de baixo estrato eram sempre maltratados. É perfeitamente possível que, numa situação dessas, ficasse difícil ao comandante, apenas com os marujos restantes, encetar mesmo uma viagem de retorno. E não pensem que isso nunca acontecia: há relatos de marinheiros que, estando na costa do Brasil, abandonaram o navio e fugiram com os índios. Se levarmos em conta as características da América do Sul nesse tempo, poderemos supor que a captura de algum desses trânsfugas era algo tão provável quanto fotografar um dinossauro passeando na superfície da lua...
Os dois dispositivos seguintes são, claramente, destinados a manter em Portugal os segredos e técnicas de construção naval e de navegação oceânica que outros povos ainda não dominavam. O Livro Quinto, Título XCVIII, trazia estrita proibição de que portugueses entrassem no serviço de navegação de algum outro país:
"Mandamos que nenhuns pilotos, mestres, marinheiros, que nossos naturais forem, aceitem partidos alguns em nenhumas navegações, nem armadas, que fora de nossos Reinos e Senhorios se façam, nem vão em elas em maneira alguma, sob pena se o contrário fizerem, e lhes for provado, de perderem por esse mesmo feito todos os seus bens, a metade para a nossa Câmara, e a outra para quem os acusar, e mais sejam degradados por cinco anos para o Brasil."
Havia, em seguida, uma justificativa para a proibição, que, por suposto, não expunha toda a verdade:
"Porque pois em nossos Reinos têm bem em que ganhar suas vidas em nossas armadas e navegações, não é razão que sendo nossos naturais, façam em outra parte as ditas navegações."
Poderíamos, aqui, tecer algumas considerações sobre o conceito de liberdade individual que transparecia em uma lei assim, mas já aí estaríamos deixando o assunto de hoje para navegar por outras águas. Mantenhamos a rota, portanto, para considerar o que dizia ainda o Livro Quinto, Título CXIV, arrematando o assunto das proibições para impedir o acesso ao conhecimento náutico lusitano e dificultar o estabelecimento de frotas poderosas em outros reinos:
"Defendemos (⁴) que pessoa alguma não venda a estrangeiros caravelas, nem naus, para fora do Reino, nem as vá lá fazer a estrangeiros, nem as frete para fora do Reino mais que por um só ano, e não será um ano após outro. Nem tire pano de treu (⁵) que se faça neste Reino, nem madeira, nem tabuado para fazer navios fora do Reino, sob pena de qualquer que o contrário fizer, ser preso até nossa mercê, e perder todos os seus bens para Nós."
As leis eram severas. Alcançaram o objetivo pretendido? Os leitores sabem que não. Pode levar algum tempo para que uma nova tecnologia seja desvendada por outros interessados, que não os seus inventores e/ou descobridores, mas a exclusividade não é eterna. Um exemplo mais recente (e literalmente explosivo) desse fenômeno tem a ver com o estabelecimento de arsenais nucleares. O uso em conflito das primeiras bombas atômicas está relacionado ao fim da Segunda Guerra Mundial. Era, então, tecnologia sofisticadíssima, que um só país dominava. Quantos não a têm, hoje, para desdita da humanidade?

(1) Legislação compilada e publicada no princípio do Século XVII, mas em grande parte já em uso muito antes disso. As Ordenações estiveram em uso no Brasil Colonial. Mesmo após a Independência, havendo alguma lacuna na legislação brasileira, os juristas recorriam às velhas leis do Reino.
(2) Quádruplo.
(3) Conforme a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(4) Significava o mesmo que "proibimos".
(5) Usado para navegação sob tempestade.


Veja também:

2 comentários:

  1. Provavelmente as penas eram assim pesadas mais para atemorizar, tendo poucas consequências práticas. Algum país que recebesse um mestre nas artes náuticas iria rejeitá-lo, denunciá-lo ao seu rei ou deportá-lo??
    Imagina a cena dos marinheiros a fugirem com os índios. Ah, merecia um filme.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. É certo que nenhum governo denunciaria a el-rei o contrato do tal navegador. Um exemplo anterior às Ordenações, mas que ilustra muito bem a questão, é o de Fernão de Magalhães, que, como se sabe, navegou para os reis de Espanha (e morreu em serviço).
      A coisa podia ser mais danosa à família do sujeito, na hipótese de ter ficado no Reino e que, vindo o caso ao conhecimento público, poderia ser privada dos bens que ele tinha.

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