segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Preocupações ambientais: do "Brasil holandês" à época da Independência

Embora não haja muito rigor técnico na expressão, é comum que o período de permanência de holandeses no Nordeste brasileiro entre 1630 e 1654 seja chamado de "Brasil holandês". Esse tempo teve início sob a União Ibérica (¹) e a rivalidade entre a Espanha e os Países Baixos explica, ao menos em parte, a tentativa de estabelecimento de uma colônia holandesa nas ricas áreas de produção açucareira do Nordeste.
É fato que todo o período colonial, independente de quem estivesse no comando, foi assinalado por uma exploração dos recursos naturais disponíveis, com pouca preocupação quanto às questões de preservação ambiental. Como regra, esse não era um tema que naquela época despertasse muito interesse, mesmo porque o objetivo principal era sempre extrair ou produzir aquilo que pudesse ser vendido na Europa com altos lucros.
Apesar disso, durante os anos de presença holandesa, vez por outra houve uma lembrança de que os recursos naturais não eram ilimitados, daí a ocorrência de recomendações no sentido de preservá-los. Dois casos serão suficientes para demonstração desse fato, ambos relatados por Jean Nieuhof, em sua Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. Lembremo-nos de que esse autor viveu em Pernambuco entre os anos 1640 e 1649.
Referindo-se à Ilha de Itamaracá, Nieuhof observou que "em certa época, foi ela grandemente infestada por animais selvagens que depredaram os canaviais. Foi então que Pieter Bas, diretor da Capitania de Itamaracá, consultou o Conde Maurício e o Grande Conselho, em 1647, sobre se seria melhor empreitar a destruição desses animais daninhos ou dar-lhes caça a fim de servir de alimento às guarnições." (²)
Imaginam os leitores que, por consequência, um festival de caça foi organizado, não é? Nada disso. Explicou Nieuhof:
"O Conselho, entretanto, rejeitou ambas as alternativas e limitou-se a aconselhar o povo a que não sacrificasse inutilmente os animais, abatendo apenas os que invadissem as plantações, pois era do interesse da Companhia preservá-los para uma eventual necessidade. Os canaviais poderiam ser protegidos por meio de cercas de pau a pique, evitando assim que fossem danificados." (³)
Lembrando, de passagem, que essa prática tão sábia bem podia valer até hoje, vamos ao outro caso de que temos notícia, em virtude de um registro pelo já mencionado Jean Nieuhof. Dessa vez o alvo das preocupações conservacionistas foi o célebre pau-brasil, que era, então, extraído em proporções absurdas:
"Quando os holandeses conquistaram parte do Brasil, encontraram grande quantidade dessa madeira já preparada e pronta para ser utilizada. Essas partidas foram, porém, pelos portugueses, vendidas à Companhia holandesa. Desde então tanto portugueses como holandeses passaram a cortar pau-brasil em larga escala, e tal foi a quantidade de madeira exportada em 1646 e 1647, que os membros do Grande Conselho do Brasil Holandês, Srs. Hendrik Hamel, Bullestrate e Kodde, conhecedores dos ruinosos métodos adotados no corte dessa árvore - e que com o correr do tempo poderia acarretar o seu extermínio - fizeram publicar uma proclamação coibindo tais abusos." (⁴)
Neste ponto será bom recordar que, após a saída dos holandeses, tendo Portugal retomado o controle pleno do Brasil, não foram poucas as vezes em que, ao enviar governantes, o monarca luso incluiu, em suas instruções, ordens expressas no sentido de que se evitassem as derrubadas inúteis de matas, de que engenhos não fossem construídos a pouca distância uns dos outros (pois não seria possível que houvesse madeira suficiente para todos), ou mesmo de que se restringisse a captura de baleias no litoral brasileiro, já que estas, antes bastante numerosas, começavam a escassear. 
Tais medidas, no entanto, provaram-se sempre insuficientes. A administração colonial, ainda que eventualmente quisesse executar as ordens, parecia incapaz de fiscalizar seu cumprimento. O resultado disso, sem mais rodeios, foi que, pela época da Independência, já havia muitas regiões do Brasil que não tinham, nem de leve, o aspecto primitivo. Saint-Hilaire, naturalista francês que esteve em São Paulo em 1822, observou:
"A cerca de uma légua de Guaratinguetá, a vegetação dos brejos desaparece completamente, mas é difícil determinar se o que apreciamos é, em toda a parte, resultante do trabalho destruidor dos homens, ou se, em alguns pontos, a paisagem foi sempre tal qual a vemos hoje. Em nenhum trecho deparamos com verdadeiras florestas virgens." (⁵)
Interessante é que o próprio Saint-Hilaire, em um rasgo quase profético, acabaria por assumir que tinha consciência do valor de seu trabalho, ao descrever as paisagens naturais que ainda podiam ser encontradas, antes que chegasse o tempo em que elas não mais existiriam:
"[...] Julgo não ter sido inútil à ciência, fazendo conhecer a topografia botânica das diversas regiões que visitei e cuja vegetação primitiva ainda não desapareceu. Saber-se-á, assim, o que foram essas belas campinas antes de se transformarem nas culturas de milho, de mandioca ou de cana-de-açúcar que um dia as cobrirão; e, talvez, qualquer amante da natureza terá saudade das brilhantes flores dos campos, da majestade das florestas virgens, dos cipós enlaçados em festões pelas árvores e da imponente voz dos desertos." (⁶)
Ah, leitor, em nosso tempo em que já nem são mais os cultivos agrícolas que recobrem muitas das áreas percorridas por Saint-Hilaire, bem podemos avaliar o quanto tinha ele razão. Retorno ao passado? Não é possível, e talvez, sob alguns aspectos, nem seja desejável. Mas é perfeitamente razoável esperar, hoje, um manejo inteligente dos recursos naturais com que este País é favorecido.

(1) 1580 - 1640.
(2) NIEUHOF, Jean. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. São Paulo: Livraria Martins, p. 49.
(3) Ibid., pp. 49 e 50.
(4) Ibid., pp. 297 e 298.
(5) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 197.
(6) Ibid., p. 199.


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2 comentários:

  1. Será que mudamos assim tanto. Recordando a tragédia do rio Doce, tenho as minhas dúvidas. E a Amazónia? Não continua o seu desmatamento ilegal? Muito triste!
    Abraço amiga Marta, obrigada pelos excelentes posts com que me presenteou ao longo do ano.
    Beijinhos
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Em se tratando de questões ambientais, fala-se muito e faz-se bem pouco ou nada. Acho difícil prever tempos melhores à frente.
      Estou à espera de novos posts em O Berço do Mundo.

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