segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O trabalho ininterrupto de homens e animais nas moendas de cana-de-açúcar

Em muitos engenhos coloniais a época de safra da cana-de-açúcar era marcada por atividade incessante. Não há aqui exagero ou apenas um modo de dizer. De fato, nessas ocasiões, as moendas eram mantidas em funcionamento ininterrupto, até que a safra fosse concluída.
Uma razão para isso é que a cana, uma vez colhida, tinha de ser moída em um prazo máximo de vinte e quatro horas, já que não tardava a atingir um estado de deterioração, em particular sob condições climáticas desfavoráveis (como calor intenso, por exemplo). No entanto, o funcionamento contínuo das moendas levava trabalhadores escravos e animais de carga à exaustão.
Para entender o procedimento de moagem usado nos engenhos, temos uma ótima descrição feita, no final do Século XVIII, por José Caetano Gomes, em sua Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar, escrita com a intenção de propor melhorias nas práticas agrícolas e açucareiras adotadas naquele tempo:
"Um escravo apresenta um feixe de cana pela sua ponta em linha horizontal, entre a moenda do meio e uma das dos lados; continua a meter segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto [feixes], e outro escravo, da parte oposta, à proporção que os feixes de cana passam, depois de espremidos na primeira, os apresenta da mesma sorte à segunda; tornam a passar pela primeira e repassar pela segunda, o que faz que esta cana seja espremida quatro vezes, sempre em linha horizontal. Em alguns engenhos chegam a passar cinco e seis vezes [...]." (¹)
Imaginem os leitores qual era o resultado desse trabalho monótono, repetitivo, feito em grande velocidade (sob a pressão do chicote de um feitor), por horas e horas a fio... Os acidentes eram comuns e, como consequência, não poucos escravos sofriam mutilações vitalícias.
Enquanto isso, do lado de fora da moenda, os carros de bois iam e vinham com novos carregamentos de cana. Os animais empregados no transporte eram, também, quase sempre maltratados com trabalho excessivo - afinal, a cana já cortada no campo tinha de ser levada ao engenho rapidamente, para que não se estragasse. Engenhos reais tinham rodas d'água para manter a moenda em funcionamento, mas em alguns lugares eram mais comuns os engenhos conhecidos como trapiches, cuja moenda era mantida girando com a força de animais, igualmente sobrecarregados com excesso de trabalho. 
Sobre o trabalho contínuo José Caetano Gomes ainda registraria:
"Vejo que há engenhos que, para três ou quatro mil arrobas [de açúcar], principiam em maio e acabam em dezembro, por não poderem mais, empregando dia e noite nesse trabalho, e assim mesmo perdem cana, que não podem moer." (²)
Inevitável, também, era o desgaste e mesmo a perda de vidas de trabalhadores e de animais:
"Trabalhando-se desta sorte, os homens e os animais se estragam; o dia é para trabalhar e a noite para descansar, esta é a ordem da natureza, que se não inverte impunemente." (³)
Mas os senhores de engenho tinham outras ideias. Para eles, como regra geral, tudo o que interessava era a produção e, consequentemente, o lucro que poderiam obter. Os ganhos compensavam, de longe, alguma perda, fosse de homens ou animais, que nem era sequer encarada como um grande prejuízo. A fadiga de quem trabalhava não era coisa que ousasse frequentar o universo de preocupações de um típico senhor de engenho.

(1) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, pp. 30 e 31. O original consultado pertence à BNDigital.
(2) Ibid., p. 37.
(3) Ibid.


Veja também:

4 comentários:

  1. A história dos homens construiu-se com muito suor e sangue. Enquanto uns viviam, outros limitavam-se a tentar sobreviver, com a esperança quase sempre arredia.
    Gostei do blogue, parabéns!

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    1. Olá, AC, obrigada pela visita. Sim, a história está mesmo repleta dessas cenas dramáticas. Não há época ou civilização que não tenha as suas.
      Visitei "Interioridades"; gostei muito, em especial do post "O Pastor e a Ovelha Espertalhona".

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  2. Quem vim encontrar por aqui... o meu amigo AC. O universo sempre conspirando para que certas pessoas se encontrem, ainda que virtualmente.
    Beijinhos para os dois.
    Ruthia

    P.S. os engenhos são mais um motivo para nos entristecermos com a espécie dita humana

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    1. No começo do Século XVIII o padre Antonil apontava a contradição existente nos engenhos, que produziam o açúcar tão doce à custa do sofrimento de muita gente. Os ramos de negócios podem ter mudado, mas a mesma lógica ainda é encontrada em várias atividades econômicas.

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