quarta-feira, 6 de maio de 2015

Anjos de procissão

Anjo de procissão, de acordo com Debret (¹) 

O que pensaria um missionário protestante das  procissões típicas do catolicismo, em sua versão do Brasil Império? Temos a possibilidade de saber, já que Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista que residiu no Brasil durante os últimos anos do Período Regencial, deixou registros detalhados de suas impressões. Seus relatos, porém, são úteis não só pelos pontos de vista que expressavam, mas incluem, também, um carga de informações às quais, talvez, não teríamos acesso de outro modo. Não nos esqueçamos que Kidder escrevia tendo em mente os possíveis leitores em seu país de origem (Estados Unidos), de maneira que era cuidadoso em dar explicações para uma série de detalhes que, para um autor brasileiro da época, talvez fossem demasiado óbvios.
Assim, logo se percebe que, na capital do Império, durante o Século XIX, as procissões eram concorridas, delas participando, muitas vezes, pessoas de alta posição social - eram, pois, uma questão de status, principalmente quando revelavam o pertencimento a uma confraria de reputação elevada. Além disso, despertavam o interesse da população, que acorria, em grande número, para ver passar o cortejo.
Como o próprio Daniel P. Kidder revelou, sua estreia no universo das procissões ocorreu em uma quarta-feira de cinzas, no Rio de Janeiro:
"A primeira procissão que tive ocasião de observar foi a de quarta-feira de cinzas. Organizada pela Ordem Terceira de São Francisco, partiu da Capela da Misericórdia, percorreu as ruas principais da cidade e entrou no Convento de Santo Antônio. Cerca de vinte ou trinta andores, carregados ao ombro pelos homens, tomaram parte no cortejo. Alguns levavam imagens isoladas, outros transportavam grupos representando passagens das Escrituras ou da história da Igreja." (²)
Os andores eram muito pesados, de modo que exigiam um constante revezamento daqueles que os carregavam, dando ao olhar estrangeiro de Kidder a oportunidade de captar um aspecto pitoresco nas relações entre senhores e escravos:
"As ruas ficavam apinhadas de povo, notando-se numerosos escravos que pareciam se divertir vendo seus senhores empenhados em trabalhos pesados. De fato, estes se cansavam a ponto de correr o suor sobre seus rostos, como água." (³)
Lembremo-nos de que a solene procissão ocorria sob um sol escaldante de fevereiro!...
Adiante, porém, já que, agora, em seu depoimento, Daniel Kidder passa a descrever a presença de uma exótica figurinha, um "anjo de procissão":
"À frente de cada grupo de imagens ia um anjo conduzido por um padre e espalhando pétalas de flores pelo trajeto.
Como talvez o leitor deseje saber que espécie de anjos eram esses que tomavam parte nas festas, devemos explicar que constituíam eles uma classe especialmente criada para em tais ocasiões servir de guarda de honra aos santos.
Meninas de oito a dez anos eram geralmente escolhidas para saírem de anjo, sendo então paramentadas com indumentária fantástica. A ideia dessas roupas parecia ser a de imitar o corpo e as asas dos anjos, para o que as mangas levavam armações especiais [...]. Na cabeça levavam uma espécie de tiara. Os cabelos caíam em cachos, e o ar triunfal com que as crianças marchavam indicava que compreendiam perfeitamente  a honra de constituírem os principais objetos de admiração." (⁴)

Anjo de Procissão (⁵)
Devemos prosseguir, leitores (⁶). Como já disse, por ser estrangeiro, Daniel Kidder era capaz de perceber certas questões sociais que talvez passassem despercebidas à gente da terra, isso a despeito de, ele também, vir de um país no qual ainda havia escravidão. Sucede que cada "anjo", conduzido pela mão de um padre, tinha ainda um outro acompanhante:
"Contrastando com a pompa e o aparato desses anjos, caminhava ao lado o escravo servil, levando sobre a cabeça uma caixa ou cesta de flores para, de vez em quando, suprir a salva de prata de onde o anjo as tirava para espargir sobre o chão." (⁷)
Melancolicamente, pois, constatava-se que o brilho da festa popular era ofuscado pela maldita escravidão.

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 130.
(3) Ibid.
(4) Ibid., pp. 130 e 131.
(5) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(6) Não creio que anjos de procissão tenham deixado de existir. Em uma loja de artigos para festas, vi, não faz muito tempo, asas e outros acessórios. Perguntei, por curiosidade, do que se tratava, e a vendedora me informou que eram para crianças que se vestiam de anjos em um dado evento religioso.
(7) KIDDER, Daniel P. Op. cit. p. 131.


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6 comentários:

  1. Voltei para ver as novidades
    e deixar um beijo.



    .

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    1. Novidades? Todas as segundas, quartas e sextas-feiras.
      Será sempre muito bem-vindo!

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  2. Querida Marta, saiba que ainda existem desses anjinhos nas procissões em Portugal, ainda que já não tão imaculados, nem com essa "sombra" servil atrás. Por outro lado, o fausto de outrora foi-se... sobretudo nas aldeias e cidades pequenas. No máximo vai um ou dois andores por procissão e às vezes faltam braços/costas para se revezarem. Assim vão os tempos (e isto é uma mera constatação, já que não sendo religiosa, as procissões não me fazem a menor falta).
    Abraço e bom fim-de-semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Acho interessante o lado folclórico disso tudo. Encontrei fotos do começo do Século XX mostrando "anjos" de procissão vestidos de branco, com asas enormes e, portanto, bem diferentes daqueles do Século XIX.. Várias pessoas já me disseram que, em alguns eventos, ainda há anjos de procissão no Brasil, inclusive os que participam de presépios vivos no Natal.

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    2. Ah, Natal sem anjos não é Natal, né? Nem que sejam de cartão...

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    3. Andei me informando, e ainda usam anjos também nas procissões de Corpus Christi, pelo menos em alguns lugares.

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