quinta-feira, 19 de maio de 2011

O trabalho das escravas nos engenhos de açúcar: Parte 2 - Na moenda

Se, na lavoura canavieira, o trabalho podia ser dividido entre homens e mulheres, na etapa seguinte do processo de produção do açúcar, ou seja, a passagem da cana pela moenda, as escravas eram predominantes.
A moenda era, provavelmente, o lugar mais perigoso de um engenho, mas de um perigo real, presente a cada instante e não uma mera possibilidade remota. Sobre isso, escreveu Antonil (¹):
"O lugar de maior perigo que há no engenho é o da moenda, porque se por desgraça a escrava que mete a cana entre os eixos, ou por força do sono, ou por cansada, ou por qualquer outro descuido, meteu desatentamente a mão mais adiante do que devia, arrisca-se a passar moída entre os eixos, se lhe não cortarem logo a mão ou o braço apanhado, tendo para isso junto da moenda um facão, ou não forem tão ligeiros em fazer parar a moenda, divertindo com o pejador a água que fere os cubos da roda, de sorte que deem depressa a quem padece, de algum modo, o remédio. E este perigo é ainda maior no tempo da noite, em que se mói igualmente como de dia, posto que se revezem as que metem a cana por suas equipações, particularmente se as que andam nesta ocupação forem boçais, ou acostumadas a se emborracharem. (²)  
Observe, leitor atento, expressões como "arrisca-se a passar moída entre os eixos", e "tendo para isso junto da moenda um facão" - são coisas que provocam horror ao simples pensamento. E nosso jesuíta escritor segue acrescentando uma razão a mais, além do perigo inerente ao funcionamento do maquinário, para os terríveis acidentes: na época da moagem da cana os engenhos funcionavam dia e noite, ininterruptamente, para dar cabo da tarefa de moer a própria cana e a de lavradores das redondezas, em tempo de obter dela o melhor rendimento em termos de produção de açúcar, quantitativa e qualitativamente falando.
Apenas para que se tenha uma ideia do que deveras ocorria a quem, por infelicidade ficasse preso entre os eixos da moenda, cito aqui um caso real da segunda metade do século XIX, também ocorrido em engenho, mas já com o uso de máquina a vapor (nos dias de Antonil os engenhos reais funcionavam quase sempre com uma roda d'água): 
"Janeiro de 1867 - Em um engenho do município de Laranjeiras (Sergipe) o seu administrador, o capitão Manoel Rodrigues da Silva, tendo ido azeitar os ferros da máquina a vapor que ali trabalha, sucedeu que pegasse uma das mangas do seu paletó e irresistivelmente atraiu o corpo sem mais poder ser socorrido, e de modo a ficar no mesmo instante esmagado e reduzido a esqueleto, e esmigalhado todo em pedaços menores de um palmo!" (³)
Pois sim, voltando ao assunto do trabalho das escravas, veremos agora quantas, segundo Antonil, exerciam suas tarefas nesse lugar:
"As escravas de que necessita a moenda ao menos são sete ou oito, a saber: três para trazer cana, uma para a meter, outra para passar o bagaço, outra para concertar e acender as candeias, que na moenda são cinco, e para limpar o cocho do caldo (a quem chamam cocheira ou calumbá) e os aguilhões da moenda e refrescá-los com água para que não ardam, servindo-se para isso do parol da água, que tem debaixo do rodete, tomada da que cai no aguilhão, como também para lavar a cana enlodada; e outra, finalmente, para botar fora o bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se for necessário botá-lo em parte mais distante, não bastará uma só escrava, mas haverá mister outra, que a ajude, porque de outra sorte não se daria vazão a tempo e ficaria embaraçada a moenda." (⁴) 
Quase podemos visualizar a incessante movimentação que caracterizava um engenho em época de safra. Nada de trabalho leve e, para acabar de vez com as eventuais fantasias sobre a rotina dos escravos e escravas, na mais perigosa das tarefas, eram elas que, literalmente, eram obrigadas a correr o risco.

(1) Sobre a real identidade de André João Antonil, veja: Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial.
(2) Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, p. 54 na edição original.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Ano Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães & Comp., p. 168.
(4) Cultura e Opulência... pp. 54 e 55 na edição original.


Veja também:

4 comentários:

  1. gostei muito detalhado a historia eu do os meus parabens ao escritor

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  2. Olá, Renata, fico feliz por você ter gostado. Obrigada, e volte a visitar "História & Outras Histórias" mais vezes!

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  3. Adorei, muito bem escrito, e a história está bem detalhada.

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