quarta-feira, 24 de abril de 2024

Um escravo que restaurava livros

Havia falta de mão de obra qualificada no Brasil Colonial. Uma explicação para isso é que fidalgos (¹) estavam proibidos, pelas leis da época, de trabalhar nos chamados "ofícios mecânicos" (²), sob pena da perda da posição social que tanto valorizavam. Se eram abastados, colonizadores compravam escravos para o trabalho, mas, se não eram, viviam na maior penúria, ainda se achando nobres. 
Contudo, era justamente na escravidão que estava a origem da escassez de mão de obra qualificada, porque pessoas livres entendiam o trabalho como uma desonra, coisa deixada apenas para cativos, e, por isso, quase todos fugiam dele. Na tentativa de resolver o problema, dentro da lógica daquele tempo, havia proprietários de escravos que tratavam de ensinar ofícios aos cativos, e seu trabalho era, então, realizado tanto na propriedade do respectivo senhor, ou prestando serviço a outros. A remuneração, neste caso, era do proprietário, não do escravo (³).
Ora, ao lado desse cenário já pouco lisonjeiro, havia também uma carência acentuada de profissionais, mesmo em áreas não estigmatizadas socialmente, pelo simples fato de que algumas profissões exigiam uma qualificação difícil de ser obtida no Brasil. É curioso como, também nesses casos, a solução podia vir - era a lógica da época - mediante o treinamento de um ou mais escravos, sob a supervisão de pessoa habilitada. Foi o que aconteceu no Século XVIII no Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, quando era abade ninguém menos que frei Gaspar da Madre de Deus, famoso por seus escritos relacionados à história do Brasil. 
Vamos explicar a situação: o ilustre abade, no exercício do cargo, queria melhorar a biblioteca do mosteiro, cujos livros, já muito gastos, precisavam, com urgência, da mão de um restaurador. Lê-se nos Anais do Rio de Janeiro, de Balthazar da Silva Lisboa:
"O seu amor pela ciência o obrigou a recolher um livreiro na casa da livraria (⁴) com avultado salário, para compor os livros danificados dos insetos, fazendo ensinar este ofício a um escravo [...]." (⁵)
Daí por diante esperava-se que o escravo fizesse a manutenção dos livros. Escravos, aliás, faziam a maior parte do trabalho dentro de quase todas as instituições religiosas e em suas diversas propriedades (⁶). Um procedimento análogo foi adotado algum tempo depois, quando frei Francisco de São José era abade no mesmo Mosteiro de São Bento e decidiu estabelecer uma enfermaria para os escravos:
"[...] Construiu uma boa e regular casa para enfermaria dos escravos, provendo-a de todo o necessário, além de colchões, lençóis, etc. Fez instruir em medicina um escravo da fazenda dos Campos, a quem deu livros e instrumentos de cirurgia, preparando a sua instrução o cirurgião do partido (⁷), para acudir na falta dos professores aos doentes." (⁸)
Ora, se recebeu livros, o escravo devia, pelo menos, saber ler, o que já era uma grande novidade naqueles dias.  

(1) Quase todos os colonizadores se achavam pertencentes à nobreza, embora muitos estivessem bem longe disso.
(2) Eram chamadas "ofícios mecânicos" as profissões que envolviam trabalho manual. São exemplos as de sapateiro, tecelão, pedreiro, carpinteiro e muitas outras. 
(3) Essa prática persistiu não só no Brasil Colonial, como foi muito comum inclusive durante o Império. Havia gente que vivia exclusivamente dos ganhos provenientes do aluguel de escravos treinados em algum ofício.
(4) Por livraria, entenda-se biblioteca.
(5) LISBOA, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 354.
(6) A existência de cativos para o trabalho nos mosteiros, conventos e outros locais pertencentes às várias Ordens religiosas foi uma constante, não só durante os tempos coloniais, como mais tarde, em parte do Império. 
(7) "Partido", aqui, refere-se a uma grande área de cultivo.
(8) LISBOA, Balthazar da Silva. Op. cit., p. 362.


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