sexta-feira, 29 de abril de 2016

Crianças indígenas (na visão dos colonizadores)

Colonização e catequese trouxeram mudanças significativas ao modo como viviam os povos indígenas da América. Estrutura familiar, práticas de sociabilidade e valores foram afetados, de modo que, em não poucos casos, fica difícil saber quais eram os costumes originais, até porque quase tudo o que conhecemos sobre os ameríndios, com os quais europeus travaram contato desde fins do Século XV e ao longo do Século XVI, vem de relatos dos próprios colonizadores, que expunham em seus escritos o modo como interpretavam o que viam, e não necessariamente aquilo que, de fato, acontecia.
A mais antiga referência conhecida a uma criança nativa do Brasil está na Carta do "Achamento", escrita por Pero Vaz de Caminha, que, como se sabe, integrava a expedição comandada por Pedro Álvares Cabral, expedição essa que, ao menos oficialmente, era destinada às Índias, onde se esperava que estabelecesse vínculos comerciais mais fortes que os alcançados pela esquadra de Vasco da Gama. Após pisar em terra e travar contato com indígenas, Caminha observou: "Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum."
Embora a imagem seja de quase cento e cinquenta anos após o Descobrimento, o que Caminha deve ter visto seria mais ou menos o que encontramos na Figura 1, que aparece em Historia naturalis Brasiliae, publicada na Holanda em 1648 (¹); uma imagem alternativa, na qual o bebê indígena é mostrado dentro de um cesto, pode ser encontrada em Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee- en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien, de Nieuhof, publicação também holandesa, datada de 1682 (²), conforme a Figura 2:


Como já disse, não podemos ter certeza absoluta de que tudo o que diziam os colonizadores e missionários estava correto, mas, se dermos crédito ao que escreveram ao longo do Século XVI, os meninos e meninas indígenas deviam ser muito mais felizes que as crianças europeias da mesma idade, submetidas, tradicionalmente, a uma educação severa, tanto por parte dos pais quanto dos professores. Segundo Gabriel Soares, os tupinambás eram bastante gentis no trato com seus filhos:
"Não dão os tupinambás a seus filhos nenhum castigo, nem os doutrinam, nem os repreendem por coisa que façam; aos machos ensinam-nos a atirar com arcos e flechas ao alvo, e depois aos pássaros, e trazem-nos sempre às costas até a idade de sete e oito anos, e o mesmo às fêmeas; e uns e outros mamam na mãe até que torna a parir outra vez, pelo que mamam muitas vezes seis e sete anos; às fêmeas ensinam as mães a enfeitar-se, como fazem as portuguesas, e a fiar algodão, e a fazer o mais serviço de suas casas conforme é seu costume." (³)
Sem ilusões, leitores: a educação, salvo raríssimas exceções, tende a reproduzir na geração mais jovem aquilo que a geração adulta considera certo ou errado. Qualquer coisa fora disso escaparia, com absoluta certeza, à regra que encontramos, sob inúmeras versões, por todo este planeta. Mas vamos adiante, com as impressões do missionário jesuíta Fernão Cardim, contemporâneo de Gabriel Soares:
"Os pais [indígenas] não têm coisa que mais amem que os filhos [...]; nenhum gênero de castigo têm para os filhos, nem há pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filho [...]; em pequenos são obedientíssimos a seus pais e mães, e todos muito amáveis e aprazíveis: têm muitos jogos a seu modo, que fazem com muito mais festa e alegria que os meninos portugueses; nestes jogos arremedam vários pássaros, cobras e outros animais, etc.; os jogos são mui graciosos e desenfadiços, nem há entre eles desavença, nem queixumes, pelejas, nem se ouvem pulhas ou nomes ruins e desonestos [...]." (⁴) Sim, leitores, caberiam aqui uns quantos pontos de exclamação!!!
Não há como saber se tudo era assim, ou se Soares e Cardim exageravam. Cabe muito bem a observação, todavia, de que, como jesuíta que era, Fernão Cardim estava habituado a viver entre os índios, e devia saber do que falava. Assumindo, portanto, em linhas gerais, a veracidade de seu relato, teríamos um bom motivo para concordar com os que diziam que na América estava o verdadeiro paraíso terrestre - não em todos os aspectos, claro, mas quanto ao comportamento das crianças.

(1) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 270.
(2) NIEUHOF, Johan. Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee- en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien. Amsterdam: de Weduwe van Jacob van Meurs, 1682, p. 224.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 314.
(4) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 40 e 41.


Veja também:

2 comentários:

  1. Com certeza teriam uma vida muito próxima da natureza, simples. E não será precisamente na simplicidade que reside a felicidade?
    Beijinho, Marta. Lindo domingo das mães
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    Respostas
    1. Não tenho dúvida de que o comportamento tranquilo das crianças indígenas era devido, em grande parte, à vida muito menos estressante do que aquela que têm as crianças de hoje.
      No Brasil o Dia das Mães será no próximo domingo. Para mim, porém, não fará muita diferença, porque minha mãe é falecida há dezenove anos. Então, provavelmente usarei o domingo para trabalhar, como sempre rsrsrsrsssss...

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