quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Os feitores dos engenhos coloniais

A maioria dos dicionários define feitor como sendo o indivíduo que administra bens ou negócios em lugar do proprietário. Andei fazendo uma investigação informal, com gente de vários níveis de escolaridade, e constatei que, no imaginário popular do Brasil, a palavra está revestida de outro significado: para a maioria, é alguém que manda ou tem poder para impor a própria vontade, enquanto que alguns foram explícitos em fazer a ligação com o indivíduo que comandava o trabalho dos escravos. Embora a minha pesquisa, até pelo caráter de informalidade, não tenha nenhuma pretensão a rigor científico, é fácil verificar que o papel do feitor, como elemento responsável pela subordinação dos cativos nos locais de trabalho, acabou impregnando o vocábulo com um aspecto altamente pejorativo, que contraria a aparente neutralidade que os dicionários tendem a apresentar.
O padre André João Antonil, escrevendo no começo do Século XVIII, foi autor da famosíssima definição, segundo a qual os escravos eram "as mãos e os pés do senhor de engenho"; foi ele, também, quem comparou os feitores aos braços do senhor:
"Os braços de que se vale o senhor de engenho, para o bom governo da gente e da fazenda, são os feitores. Porém, se cada um deles quiser ser cabeça, será o governo monstruoso, e um verdadeiro retrato do cão Cérbero, a quem os poetas fabulosamente dão três cabeças." (¹)
Que comparação essa de Antonil! Cérbero era o cão mitológico que, para os gregos, guardava a entrada do mundo dos mortos - ou inferno, se quiserem...
A questão, aqui, é que Antonil era enfático em recomendar aos senhores que cuidassem em explicitar aos feitores os limites à autoridade, para que excessos não fossem cometidos (²):
"Eu não digo que se não dê autoridade aos feitores; digo que esta autoridade há de ser bem ordenada e dependente, não absoluta, de sorte que os menores se hajam com subordinação ao maior, e todos ao senhor, a quem servem. Convém que os escravos se persuadam que o feitor-mor tem muito poder para lhes mandar e para os repreender e castigar, quando for necessário, porém de tal sorte que também saibam que podem recorrer ao senhor e que hão de ser ouvidos, como pede a justiça." (³)
É difícil saber se, de fato, senhores tinham alguma preocupação com as arbitrariedades dos feitores. Como regra geral, o que importava era que, ao fim de cada safra, os lucros que o açúcar proporcionava fossem elevados. Porém, eventualmente, algum feitor podia "sair dos trilhos", suplantando a própria autoridade do senhor ou, pior ainda, dando motivo para uma revolta de escravos. Antonil sugeria, portanto, um expediente para acalmar o cativo injustiçado e dar a entender que o senhor não fechava os olhos para os erros dos feitores, sem, no entanto, reduzir a autoridade que lhes conferia: 
"Nem os outros feitores, por terem mando, hão de crer que o seu poder não é coartado, nem limitado, principalmente ao que é castigar e prender. Portanto o senhor há de declarar muito bem a autoridade que dá a cada um deles, e mais ao maior, e se excederem, há de puxar pelas rédeas com a repreensão que os excessos merecem, mas não diante dos escravos, para que outra vez se não levantem contra o feitor, e este leve a mal de ser repreendido diante deles, e se não atreva a governá-los. Só bastará que por terceira pessoa se faça entender ao escravo que padeceu, e a alguns outros dos mais antigos da fazenda, que o senhor estranhou muito ao feitor o excesso que cometeu, e que quando se não emende, o há de despedir certamente." (⁴)
Um feitor-mor, que na prática quotidiana era quem administrava um engenho, tinha uma série de encargos suficiente para mantê-lo muito ocupado. Sua lista de tarefas em nada ficaria devendo, em termos quantitativos, à do administrador de uma grande empresa na atualidade:
"Obrigação do feitor-mor do engenho é governar a gente e reparti-la a seu tempo, como é bem, para o serviço. A ele pertence saber do senhor a quem se há de avisar para que corte a cana, e mandar-lhe logo recado. Tratar de aviar os barcos e os carros para buscar a cana, formas e lenha. Dar conta ao senhor de tudo o que é necessário para o aparelho do engenho, antes de começar a moer, e logo acabada a safra, arrumar tudo em seu lugar. Vigiar que ninguém falte à sua obrigação, e acudir depressa a qualquer desastre que suceda, para lhe dar, quanto puder ser, o remédio. Adoecendo qualquer escravo, deve livrá-lo do trabalho e pôr outro em seu lugar, e dar parte ao senhor, para que trate de o mandar curar, e ao capelão, para que o ouça de confissão e o disponha, crescendo a doença, com os mais sacramentos para morrer. Advirta que se não metam no carro os bois que trabalharam muito nos dias antecedentes, e que em todo o serviço, assim como se dá algum descanso aos bois e aos cavalos, assim se dê, e com maior razão, por suas equipações, aos escravos." (⁵)
O trabalho do feitor-mor era complementado, na maioria dos engenhos, pelo de um feitor encarregado exclusivamente da moenda, havendo, também, feitores "dos partidos", ou seja, feitores encarregados de administrar as plantações de cana-de-açúcar.
O minucioso Antonil (⁶) ainda tratou de explicar qual deveria ser o salário anual dos feitores:
"Ao feitor-mor dão, nos engenhos reais, sessenta mil réis. Ao feitor da moenda, aonde se mói por sete e oito meses, quarenta ou cinquenta mil réis, particularmente se se lhe encomenda algum outro serviço, mas aonde há menos que fazer, e não se ocupa em outra coisa, dão trinta mil réis. Aos que assistem nos partidos e fazendas, também hoje, aonde a lida é grande, dão quarenta ou quarenta e cinco mil réis." (⁷)
É difícil determinar, com exatidão, qual era o poder de compra dos salários referidos, mas sabe-se que antes que o preço dos cativos chegasse às nuvens em decorrência da descoberta do ouro das Gerais, sessenta mil réis era o preço usual de um escravo forte e saudável. A conclusão óbvia é que, malgrado a autoridade de que era investido, da brutalidade no trato com os escravos que o caracterizava, do verdadeiro terror que impunha aos subordinados, um feitor era, afinal, também um indivíduo de baixa posição social. Trabalhava muito, tinha enormes responsabilidades, mas não via qualquer perspectiva de enriquecer com a renda que lhe cabia (⁸). Os verdadeiros lucros do açúcar iam para outros bolsos.

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 14.
(2) Vê-se, portanto, de onde é que vem o conceito popular da palavra feitor, a que me referi; o conselho dado por Antonil deixa entrever o fato de que os homens encarregados de comandar os escravos eram dados a cometer arbitrariedades.
(3) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio).  Op. cit., p. 14.
(4) Ibid., pp. 14 e 15.
(5) Ibid., pp. 15 e 16.
(6) A obra de Antonil é valiosa, entre outros aspectos, porque preservou detalhes da vida nos engenhos que, de outro modo, talvez fossem perdidos para sempre.
(7) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio).  Op. cit., p. 17.
(8) Antonil explicava, na mesma obra, que os capelães de engenho recebiam, anualmente, quarenta ou cinquenta mil réis, mais alimentação à mesa do senhor. Havia, em cada engenho, muitos outros trabalhadores livres.


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2 comentários:

  1. Pelos vistos, a grande recompensa dos feitores era o poder de que dispunham, que exerciam barbaramente.
    Grato pela partilha, Marta.

    Um bom final de semana :)

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    1. E não é exatamente por poder que quase toda a humanidade vive em luta?

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