sexta-feira, 13 de novembro de 2015

A influência do despotismo de Estado no âmbito das relações familiares

Qualquer jovem estudante sabe: no Brasil dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, os senhores de engenho, fazendeiros, bandeirantes, etc., comandavam as respectivas famílias com autoridade inconteste. Para eles, pouco valiam as leis escritas. A justiça, eles a faziam aplicar como bem entendiam, o que significava que, à menor suspeita de alguma falta, mandavam matar mesmo a mulher ou algum dos filhos. Há, por exemplo, um caso célebre de um sujeito que mandou que um de seus filhos matasse um seu outro filho (irmão, portanto, daquele a quem se encomendou o assassinato), em virtude de desconfiar de que o rapaz andava de caso com uma de suas amantes (dele, pai). A ordem foi cumprida e o patriarca ainda teve o desplante de ordenar que o padre das redondezas comparecesse para o ofício fúnebre de missa por intenção da alma do assassinado.
Terrível? Essa é apenas uma dentre muitas histórias mais ou menos parecidas. 
Joaquim Manuel de Macedo, médico por formação, porém mais conhecido como romancista (foi também professor de História no Imperial Colégio de Pedro II), tinha uma ideia interessante sobre as atitudes brutais que, em certo tempo, imperaram nas famílias brasileiras - elas seriam apenas a aplicação, em família, do mesmo princípio que regulava o despotismo no âmbito do Estado, ainda que admitindo haver, apesar de tudo, casais que viviam bem e pais que, de fato, tinham grande amor pelos filhos. Ressalvava, no entanto, que "estas exceções não destruíam a regra que proviera daquela rudeza de costumes e da educação mais que austera, quase bárbara, da sociedade daqueles tempos de despotismo do governo do Estado, e despotismo do governo das famílias." (¹)
Um desdobramento do tal despotismo patriarcal, que hoje salta aos olhos de quem se dá ao trabalho de estudar a sociedade dos tempos coloniais, está relacionado à maneira como eram contratados os casamentos, em particular nos casos de famílias dotadas de algum patrimônio. Sigamos apreciando o humor no estilo de Macedo:
"Naquele tempo (no bom tempo), em grande número de casos o marido não era um consorte, era um senhor, e as moças casavam sem saber com quem, viam os noivos no dia do casamento, porque os pais tomavam pelos noivos e noivas o trabalho de enlaçar-lhes os corações sem consultá-los. O pai do noivo e o pai da noiva namoravam-se mutuamente com todos os preceitos e regras da aritmética, e desde que se punham de acordo na discussão do dote, ficava resolvido que o rapaz e a rapariga se adoravam perdidamente, ainda que nunca se tivessem visto, e realizava-se o casamento.
Quantas uniões infelizes resultavam de semelhante prática pode-se bem calcular. Deviam por certo abundar os maridos tiranos e as mulheres vítimas, as mulheres infiéis e os maridos desgraçados, e verdadeiros purgatórios nas vidas que passavam muitos casais." (²)
Ah, leitores, acho que tudo isso põe de sobreaviso quem quer que tenha a veleidade (ou, talvez, a ingenuidade) de achar que tempos antigos eram, necessariamente, tempos melhores. Joaquim Manuel de Macedo por certo não concordaria. Se vivesse em um universo patriarcal, a sua Moreninha estaria em muito má situação. Não era, porém, descabida entre a elite educada da capital do Império.

(1) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, pp. 378 e 379.
(2) Ibid., pp. 377 e 378.


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2 comentários:

  1. Que namoros românticos, caramba! Se bem que o amor, como o concebemos na base de uma união matrimonial, seja uma invenção ocidental. Na Ásia ainda se vive o casamento de uma forma muito pragmática. Conheço uma senhora chinesa, ainda não tem 40 anos, que se casou (tarde para os hábitos do seu país) com um rapaz com quem saiu uma dúzia de vezes. Quando ela perguntou ao atual marido porque a tinha escolhido, ele respondeu, porque ela era a mais nova das raparigas que ele considerou para o efeito. E são felizes, de uma forma distinta da nossa, têm um filho, provavelmente chegarão a velhos juntos.
    Beijinho, Marta
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Pode ser. Talvez nós, ocidentais, estejamos exigindo muito da felicidade rsrsrsrssss

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