quarta-feira, 9 de julho de 2014

O terremoto de Lisboa em 1755

Conta-nos o iluminista François Marie Arouet - a quem todo mundo conhece como Voltaire - em livro intitulado Candide ou l'Optimisme, que Cândido e seu mestre Pangloss chegaram a Lisboa em novembro de 1755, exatamente a tempo de sentir a terra trrrrrrrrrrrrrremer sob seus pés, enquanto o mar, em fúria sem precedentes, arremessava-se contra o porto, para destruir as embarcações ali ancoradas e arrastar tudo o que encontrava pelo caminho, inclusive pessoas.
Surpreendentemente, tanto Pangloss quanto Cândido sobreviveram sem grandes avarias, embora uma multidão estivesse, agora, sob os escombros. Enquanto Cândido lamenta-se por seus ferimentos, Pangloss tenta descobrir uma explicação racional para o horroroso fenômeno que, contra a vontade, acabam de presenciar. Lembra que, no ano anterior, outro terremoto, igualmente devastador, atingira Lima (¹) e, assim, idênticos acontecimentos deviam ter causa idêntica: uma corrente subterrânea de enxofre que unia Lima a Lisboa...

Auto de fé que ilustrava a primeira edição de
Candide ou l'Optimismepublicada em 1759 (²)

Na obra de Voltaire, tanto Cândido quanto Pangloss tratam de ajudar na procura por sobreviventes; porém, denunciado à Inquisição por suas ideias pouco religiosas, Pangloss acaba enforcado em um auto de fé com o qual se pretendia aplacar a ira de Deus, que, supunha-se, causara tão grande estrago. E o sarcástico Voltaire conclui o episódio afirmando que, encerrada a sangrenta "cerimônia religiosa", a terra voltou a tremer com toda a violência. (³)
Agora, pondo de lado Cândido e Pangloss, (que são personagens ficcionais), vamos aos fatos.
O chamado grande terremoto de Lisboa aconteceu em 1º de novembro de 1755, que, como se sabe, era data da celebração de Todos os Santos, razão pela qual as igrejas estavam lotadas. Assim, o tremor (que hoje se reputa de magnitude 9,0) soterrou multidões que, devotamente, assistiam às missas. Como se não bastasse, uma onda gigantesca (tsunami) varreu Lisboa e quase todo o Algarve. Mais mortos, portanto. Quantos? Voltaire, um contemporâneo que não foi testemunha ocular, fala, em Candide, em uns trinta mil. Talvez seja exagero, talvez não, já que as estimativas mais conservadoras apontam pelo menos dez mil óbitos. A capital portuguesa foi arruinada. Pedro Taques de Almeida Paes Leme, paulista que, naquela ocasião estava em Lisboa, registrou em sua Nobiliarchia Paulistana:
"[...] Sucedeu no 1º de novembro o formidável terremoto, que destruiu aquela grande cidade no limitado espaço de três minutos, seguindo-se logo um incêndio, que ateou-se na maior parte das casas [...]."
É verdade que religiosos prontamente atribuíram a catástrofe à ira de Deus - mas como explicar que ocorresse justamente num feriado religioso, quando a quase totalidade da população comparecia às igrejas? Não faltou, no entanto, um padre que colocasse a culpa nos pecados, mas não simplesmente nos do povo, e sim nos dos governantes. Seu disparate foi devidamente punido com o desterro. (⁴) É claro que o primeiro-ministro, Marquês de Pombal, um dos chamados "déspotas esclarecidos", preferia lidar, iluministicamente, com a ideia de que tudo não passara de um fenômeno natural a que os portugueses, heroicamente, deviam enfrentar.
Nem é preciso dizer que o tremor foi sentido muito além de Lisboa - e não apenas por razões sismológicas. Era preciso reconstruir a mais importante cidade do Reino, de tal modo que os tremores da Europa acabaram por atingir... as terras da América banhadas pelo Atlântico Sul.
Numa situação dessas, o monarca português solicitava que seus súditos enviassem "contribuições" que, todavia, nada tinham de voluntárias, embora, nesse tempo, os brasileiros de origem europeia ainda se considerassem plenamente portugueses e, apesar de terem que arcar com novos impostos, tinham um certo orgulho em participar da reconstrução da capital do Reino. De acordo com Affonso de E. Taunay, a cidade de São Paulo teve de contribuir, a cada ano, com treze contos de réis, provenientes de taxas sobre alguns alimentos, bebidas e até sobre o trânsito de animais de carga. (⁵) O total da contribuição anual do Brasil orçava pela casa de quarenta contos de réis. Era o tempo da exploração do ouro nas Gerais, em Mato Grosso e em Goiás. As minas do Brasil participaram, pois, significativamente, da reconstrução de Lisboa.
Porém...
Porém, uma vez completada a reconstrução, o imposto persistiu e, de acordo com Varnhagen, ainda se cobrava em 1831, quando o Brasil já era, há vários anos, nação independente. (⁶) Enxertado no preço de uma porção de coisas, as pessoas pagavam sem nem saber direito que o faziam.
Como nas antigas fábulas, senhores leitores, vamos terminar com a "moral da história", embora, neste caso, não estejamos tratando de nenhuma fábula. São capazes de adivinhar qual é?
Aqui está ela: Instituir impostos pode não ser muito complicado; difícil, mesmo, é acabar com eles. Vê-se nisto um fato algo recorrente na história da humanidade e de seus respectivos governos, através dos tempos.

(1) O terremoto de Lima a que se refere Pangloss é, provavelmente, o de 28 de outubro de 1746, que, como o de Lisboa, também foi seguido de tsunami. Foi violentíssimo, estimando-se em 9,0 a sua magnitude. Vê-se, portanto, que Voltaire cometeu um erro quanto à data, que pode ser, talvez, explicado pelo tempo que uma notícia levava, então, para sair da costa do Pacífico, no Continente Americano, e finalmente alcançar a Europa.
(2) A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Quem estiver interessado em mais detalhes, pode ler Candide, ou l'Optimisme.
(4) Segundo Varnhagen, essa brilhante ideia saiu da cabeça do famoso Padre Gabriel Malagrida, jesuíta italiano, desterrado para Setúbal e, mas tarde, acusado diante da Inquisição, primeiro garroteado e depois queimado. Veja, sobre isso: VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 925.
Vale recordar que, pelas alturas do terremoto de Lisboa, já andavam os jesuítas às turras com a administração pombalina, de modo que, posteriormente, o Marquês acabaria por livrar-se deles, expulsando-os de todos os domínios do Reino (o que, por suposto, incluía o Brasil).
(5) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 184.
(6) VARNHAGEN, Op. cit., ver nota de rodapé nº 2 na página 978; também na página 1065 menciona-se o mesmo imposto, dizendo o autor que esses tributos eram "abusivamente conservados, ainda depois da independência, durante o reinado do primeiro imperador!".


Veja também:

2 comentários:

  1. Hahaha, muito bom e muito actual, querida Marta. Cada dia temos um novo imposto deste lado do Atlântico, por causa da crise (que tem costas larguíssimas).
    Graças ao terremoto que, como disse, foi terrível, Lisboa tem hoje uma planta organizada, avenidas largas e grandes parques, graças à visão do Marquês de Pombal. Mas muitos outros monumentos portugueses sofreram graves consequências desse tremor de terra e até mesmo a Catedral de Salamanca, em Espanha, teve que fazer reparações.
    Obrigada por este momento de instrução.
    Beijinho, um doce domingo
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Pode acreditar: a prática de criar e/ou de aumentar impostos é uma praga verdadeiramente universal. Obrigada por visitar o blog. Tenha uma ótima semana.

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