terça-feira, 11 de outubro de 2011

Senhores de engenho: ainda que poderosos, nem sempre bem-vestidos

"Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a filha de um senhor de engenho de Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro genro certo plano de produção de açúcar, por meio de uma união de engenhos e de um mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu expor os lineamentos principais da ideia.
- Havemos de falar nisso outra vez, disse Melchior; por que não vai ao nosso engenho?"
                                                                                                                            Machado de Assis, Sales

Se considerarmos a hierarquização social do Brasil no período colonial e até mesmo no Império veremos que, na maior parte do tempo, os senhores de engenho reinaram absolutos. Donos das grandes propriedades que não apenas cultivavam cana mas, principalmente, produziam o valorizado açúcar, esses homens ocupavam posição com a qual sonhavam quase todos colonizadores. Eram respeitados, sua vontade era decisiva não apenas no âmbito de sua família ou de seu engenho, mas sobre toda a população que, de uma maneira ou outra, dele dependia - cultivadores de cana, trabalhadores livres, moradores das povoações adjacentes e, por suposto, escravos, fossem de origem africana ou indígena.
É legendária a observação de Antonil: "O ser Senhor de Engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser Senhor de Engenho, quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino." (¹)

Engenho Junqueiro, aquarela de F. S. Scholla, 1844 (²)
Ninguém deve imaginar, no entanto, que esses poderosos da Colônia viviam em luxo extremado. Ao contrário, como em toda a vida rural do período, a simplicidade era a regra. Mais de um século depois de Antonil, um outro registro, esta vez de Auguste de Saint-Hilaire, retrata o modo de vida de um senhor de engenho do Rio de Janeiro e, embora seja provável que o naturalista francês tivesse em mente um senhor em particular, é perfeitamente razoável entender que outros senhores viviam de modo semelhante. Vejamos:
"A posse de engenho de açúcar confere entre os lavradores do Rio de Janeiro como que uma espécie de nobreza. De um "Senhor de Engenho" só se fala com consideração e adquirir tal preeminência é a ambição geral. [...]
Em casa usa roupa de brim, tamancos, calça mal amarrada e não põe gravata; enfim, indica-lhe a toilette que é amigo do comodismo.
Mas, se monta a cavalo e sai, é preciso que o vestuário lhe corresponda à importância e então enverga o jaleco, as calças, as botas luzidias, usa esporas de prata, cavalga sela muito bem tratada.
Um pajem negro fardado com uma espécie de libré, é-lhe de rigor. Empertiga-se, ergue a cabeça e fala com a voz forte e o tom imperioso que indicam o homem acostumado a mandar em muitos escravos." (³)
Malgrado o intervalo de tempo e de lugar - um trecho é do início do século XVIII, outro do XIX, um refere-se particularmente ao Nordeste açucareiro, outro ao Rio de Janeiro - há evidentes similaridades entre essas citações. A alta posição social que ocupavam, a admiração geral proporcionada pela condição de senhor, o mandar sem contestação, todas características muito valorizadas em uma sociedade em que o trabalho manual era visto como próprio de camadas baixas, contrastam com as observações de Saint-Hilaire quanto ao prosaico trajar dentro de casa (⁴). Afinal, o que contava mesmo era a aparência diante do público, e quanto a isso (depreende-se facilmente do texto), os senhores eram sempre muito cuidadosos. Toda essa pompa e autoridade que permeavam o imaginário popular somente viriam e encontrar concorrência à altura nos poderosos Barões do Café. Mas isso, só mesmo na segunda metade do século XIX. 

(1) ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.
(2) O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 17.
(4) Ainda sobre a questão do vestuário dos moradores da casa-grande, escreveu Capistrano de Abreu:
"O dono da casa-grande, como toda a população masculina, exceto quando viajava, andava de ceroula e camisa, geralmente com rosários, relíquias, orações cuidadosamente cosidas e escapulários ao pescoço. Nas ocasiões solenes, recebendo visitas, revestia-se de quimão, timão ou chambre. "Quando um brasileiro põe-se a usar um desses hábitos talares começa a se considerar personagem importante (gentleman) e com título portanto a muita consideração", informa Koster. A roupa caseira das mulheres constava de camisa e saia; o casebeque só apareceu mais tarde."
(ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998 p. 204)


Veja também:

4 comentários:

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.