quarta-feira, 30 de junho de 2010

Lobos, ovelhas e política internacional

Na postagem anterior tratei de contos de fadas supostamente destinados a crianças. Hoje falaremos de historinhas para adultos.
Contou-nos Esopo que lobos e ovelhas travavam continuamente uma guerra, que, a despeito da fragilidade das ovelhas, era equilibrada pela presença dos cães pastores que as defendiam. Tendo muito tempo assim se passado, vieram um dia os lobos fazer às ovelhas uma proposta de paz, cujos termos eram os seguintes: lobos e ovelhas viveriam em perfeita harmonia e, para garantir o cumprimento do acordo, ficavam as ovelhas obrigadas à entrega dos cães pastores aos lobos; por sua vez, os lobos deixariam seus próprios filhotes aos cuidados das ovelhas.
As ovelhas deliberaram entre si e, finalmente, concluíram que, tendo em vista a proposta de que deixariam seus filhos como reféns, era evidente a boa fé dos lobos, razão pela qual logo um pacto de eterna fraternidade foi celebrado.
Supondo-se em segurança, as ovelhas voltaram às pastagens. Todavia, ao anoitecer, os lobinhos deram pela falta das mães e começaram a berrar por elas, o que levou os lobos, que andavam à espreita, a comparecerem imediatamente, acusando as ovelhas de atentado contra seus filhotes, o que significava um escandaloso descumprimento do tratado de paz. Isso, diziam os lobos, era legítima justificativa para imediata retaliação. Portanto, toda a alcateia atacou o rebanho que, sem ter os cães pastores como defesa, foi completamente aniquilado.
Sabemos pouquíssimo a respeito de Esopo, a genial figura que criou esta e muitas outras fábulas. Não temos certeza sobre a cidade de seu nascimento, embora pareça certo que morreu em Delfos. Provavelmente não sabia escrever (como muitos dos antigos autores da Grécia), mas suas histórias, preservadas oralmente, foram compiladas por volta de 325 a.C. por Demétrio de Falero, e foi desse modo que chegaram a nós. Ou seja, a fábula é antiga, mas você, leitor, observando o panorama internacional do momento, não terá por certo dificuldades em concluir qual é a moral da história...


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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Não atirem um pau no Gato de Botas!

O Gato de Botas,
gravura de Gustave Doré (*)
Há muitos e muitos anos... Eu adorava ler contos de fadas. Gostava especialmente (até hoje não sei o motivo) d'O Gato de Botas, uma historinha bem instrutiva.
Veja só, leitor: Crispim, o mais novo dos três filhos de um moleiro, recebe como herança um Gato que usa botas. Os dois irmãos mais velhos, que haviam herdado, respectivamente, o moinho e o burro, ficaram em boas condições para prover o próprio sustento, mas Crispim se lamenta, decepcionado, supondo que o bichano lhe é absolutamente inútil. Está, porém, completamente enganado, pois o gato, muito habilidoso, acaba fazendo com o que o rapaz se case com a filha do rei, para, finalmente, reinar em seu lugar. Narração inocente? Nem tanto.
Em primeiro lugar, e sem discutir eventuais interpretações subjacentes à narrativa, o Gato engana o rei seguidamente, dizendo que os presentes que lhe traz são enviados pelo "Marquês de Carabás". Segue enganando, ao propor que os camponeses digam ao rei que as terras por onde passa, ao percorrer o país, pertencem ao mesmo supracitado Marquês. Mente, dizendo que Crispim foi atacado por ladrões, que roubaram sua roupa e o jogaram no rio com a intenção de matá-lo. E por aí vai, mas não é só.
Que rei é esse que se deixa enganar por um gato? Que rei é esse que desconhece os próprios domínios? Bela lição para as crianças sobre a autoridade governamental. Quer mais? Tudo o que o gato faz sucede porque seu amo, cansado de procurar trabalho, lhe diz que seu sonho é ser rei. Ora, só se pode concluir que ser rei é ótimo porque um governante vive muito bem e não precisa trabalhar!
Quem acha que tais imposturas são coisa apenas d'O Gato de Botas, engana-se e muito. O respeito aos mais velhos é amplamente propalado pelo lobo que engana e ataca a vovó, lobo esse que em seguida é ecologicamente assassinado pelos caçadores, Cinderela chega a ser princesa não por esforço próprio, mas por obra da fada-madrinha, a princesinha é chantageada pelo sapo, primeiro para levá-lo ao quarto, depois para beijá-lo...
É por isso que os contos de fadas são deliciosos e, embora haja quem queira reescrevê-los, tornando-os politicamente corretos, percebe-se que essas investidas editoriais em geral não são muito bem sucedidas, mesmo porque travam uma batalha inglória contra a natureza humana. Gostamos de ambientar nossos contos em tempos remotos (ótimo, sei de muita gente que se interessou por História Medieval por causa deles), realizamos através deles nossas fantasias que, na vida real, são impossíveis, mas não somos tolos a ponto de supor em nós mesmos uma perfeição que não temos, embora aceitemos, candidamente, chamar os contos de fadas de histórias infantis.
Há algum tempo vi um guri ser repreendido pela mãe que insistia para que cantasse "Não atire um pau no gato", em lugar da versão tradicional que você, leitor, conhece muito bem. Diga-me, quem já viu alguém tiranizando algum gato por causa da tal música? Pois eu não vi, e o fato de que a criançada continue a cantar e os felinos proliferem como sempre mostra que ninguém sai por aí a matar gatos a pauladas só porque cantou algum dia "Atirei um pau no gato-tô..." Como vê, estamos diante de profundas reflexões!

(*) HOOD, Tom. Fairy Realm. London: Ward, Lock, and Tyler, 1865. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 17 de junho de 2010

Fogueiras de São João

Em tempos nos quais uma parte expressiva da Europa ainda era pagã (não gosto do termo, prefiro a expressão pré-cristã), era comum que a época do solstício de verão fosse celebrada com festas que incluíam o acendimento de enormes fogueiras. Os missionários cristãos que ousavam aventurar-se entre povos bárbaros ficavam perplexos com isso, pois defrontavam-se não apenas com uma questão religiosa, mas com costumes profundamente arraigados e que pareciam difíceis de substituir. Nesse caso, como em muitos outros, tornou-se usual adotar uma prática sincrética, de modo que gradualmente os festejos do solstício de verão passaram a homenagear santos católicos, tais como Santo Antônio de Pádua (falecido em 13 de junho de 1231), São João Batista (cujo nascimento comemora-se a 24 de junho) e São Pedro (cujo martírio é oficialmente relembrado no dia 29 de junho). Restaram, no entanto, as fogueiras, e as festas juninas, trazidas pelos portugueses, talvez sejam, ao lado do Carnaval, as celebrações populares mais amplamente difundidas no Brasil. Compreende-se: os festejos coincidem com a temporada de safra em boa parte do país, e a fartura de abóbora, variedades de batata-doce, milho, pinhão, amendoim, enseja um compartilhar alegre que, guardadas as devidas proporções, tem um toque de Thanksgiving tupiniquim.
Curiosamente, no entanto, vários folcloristas assinalam que as festas juninas nem sempre tiveram a conotação "caipira" que geralmente as caracteriza. Isso teria sido obra do Estado Novo, como parte de um projeto mais amplo de suprimir as diferenças regionais, que devia incluir as disparidades quanto aos hábitos culturais de cada região. O projeto varguista seria incentivar as escolas a assumirem a realização (e padronização) dos festejos juninos, adotando um modelo típico do Sudeste, que chegaria, desse modo, a suplantar outras modalidades que porventura existissem.
Não resta a menor dúvida quanto às intenções de Vargas em estabelecer um governo altamente centralizado, como o episódio da queima das bandeiras estaduais bem pode ilustrar. Mas o momento o favorecia, já que o rádio havia se tornado popular e era um fator poderoso para espalhar novas ideias e divulgar novos padrões de comportamento, principalmente quando devidamente controlado pelo famoso D.I.P. (o Departamento de Imprensa e Propaganda, que durante o Estado Novo tinha, entre outras atribuições, a responsabilidade de controlar os meios de comunicação).
Seja como for, algumas das mais famosas canções típicas do período junino tiveram sua primeira gravação durante a Era Vargas, ainda que não necessariamente durante o Estado Novo. Só como exemplo, "Sonho de Papel", de Alberto Ribeiro ("E um balão vai subindo / Vem caindo a garoa / O céu é tão lindo / E a noite é tão boa...") tem ótima gravação com Carmen Miranda em 1935,  enquanto "Pedro, Antônio e João", de Benedito Lacerda e Oswaldo Santiago, foi gravada por Dalva de Oliveira em 1940. É quase supérfluo dizer que essa foi uma época importante para a discografia brasileira, independente do que a política governamental procurasse estabelecer. Muita gente já dispunha de algum tipo de toca-discos e quem tivesse meios para isso podia, se quisesse, comprar os discos com as músicas que tinha ouvido no rádio. O que chega a ser divertido é observar que, no Brasil, deu-se um processo inverso ao que transformou, na Europa, as fogueiras do solstício de verão em festividade cristã - os santos católicos Santo Antônio, São João e São Pedro tornaram-se gente comum, de modo que João é sogro de Antônio e Pedro tem o desplante de fugir com a noiva "na hora de ir pro altar"...
Andei tentando fotografar uma boa festa junina, bem tradicional, mas por toda parte o que tenho encontrado são apenas bandeirinhas verde-amarelas, não por excesso de patriotismo, mas como referência futebolística. E como já não cai a garoa (o tempo tem estado muito seco nessa época, faz alguns anos), espero que o balão não suba, para bem das (poucas) matas e tranquilidade dos bombeiros. Ou seja, cada vez mais a fogueira ficará só no coração.


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quarta-feira, 9 de junho de 2010

Casarão antigo e belo

Eu estava fazendo a foto que está ao lado desta postagem quando duas simpáticas vovós passaram perto e me perguntaram: "Por que você está tirando fotografia dessa coisa feia?"
Como você  deve imaginar, leitor, expliquei a elas que, como historiadora, tinha interesse em construções antigas que, aliás, acho lindas. Conversamos mais um minutinho, depois do que elas seguiram caminhando, aparentemente sem acreditar que eu, de fato, pudesse ver alguma beleza em um casarão velho e abandonado há bastante tempo, como a aparência sugere.
A questão é que, observando esse prédio antigo e, como se diz, caindo aos pedaços, começo a pensar: Esse casarão já foi novo e habitado - quem terá morado nele? Possivelmente terá sido palco de dias de glória - a época provável e a excelência da técnica da construção, a qualidade do madeiramento das janelas, que mesmo o total abandono não consegue apagar, os azulejos portugueses no alto da edificação, apontam para o período áureo, ainda que fugaz, da hegemonia cafeeira. Em seus aposentos, quem saberá dizer que saraus, que bailes se realizaram, que encontros políticos sigilosos podem ter acontecido para decidir os rumos do governo sob os interesses dos oligarcas rurais? Por que terá sido abandonado?
Não obstante, as casas, como as pessoas, envelhecem, mas não precisam perder o encanto. Para as vovós "essa coisa feia tem até uma samambaia horrível lá em cima". Para mim, tem a magia que só os casarões centenários podem guardar.

Observação muito importante: As casas, ao contrário das pessoas, podem ser completamente restauradas. Embora esse edifício em ruínas ainda possa esbanjar charme, uma restauração adequada acrescentaria muito ao patrimônio histórico da cidade à qual ele pertence e deveria ser considerada com seriedade.


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quarta-feira, 2 de junho de 2010

Coisas do futebol

Reflexões sugeridas por uma competição mundial de futebol


Fui buscar em minha modestíssima coleção de selos (em que não punha as mãos há muito tempo) essas pequenas "relíquias filatélicas" de Copas do Mundo. E o resultado aí está. Se você, leitor, gostar de futebol, terá, quem sabe, algum divertimento.
Não, não vou discutir a tal "geopolítica do futebol"; não vou tentar mostrar os motivos pelos quais o futebol, ao contrário de outros esportes, tem muitos de seus principais atletas provenientes de países pobres; nem mesmo pretendo discorrer sobre o estranho fenômeno de que meninos subalimentados possam vir a ser atletas de excepcional compleição física, a despeito de suas origens. Mas não posso fugir a algumas reflexões que me parecem inevitáveis.
As Copas do Mundo de Futebol têm ainda muito pouco tempo de existência (em se tratando de proporções históricas, claro). Hoje sabemos que as Olimpíadas da antiga Grécia tiveram uma importância que transcendeu sua época, sendo um fator de influência até nossos dias, ao menos no plano ideológico, mas só o passar do tempo permitirá verificar se o mesmo poderá ser dito das Copas, ou se serão um fenômeno de importância restrita a apenas um século ou dois. Mas isso fica para os historiadores do futuro.
Entretanto, mesmo sendo breve, é inegável que a história das Copas revela muito sobre a história do século XX como  um todo. Para se ter uma ideia, podemos falar da influência fascista nas competições de 1934 e 1938 (vencidas pela Itália), do impacto exercido pela Segunda Guerra Mundial (já que as Copas de 1942 e 1946 não foram realizadas), do drama da Guerra Fria na vida pessoal de muitos atletas (como Puskás, que competiu em 1954 pela Hungria e em 1962 pela Espanha), ou do uso político da Copa de 1978 por parte do governo ditatorial na Argentina. Podemos, em se tratando de eventos mais recentes, falar do intenso movimento migratório decorrente da globalização, evidenciado pela quantidade de jogadores "estrangeiros" atuando pelas seleções europeias, o que poderia, aparentemente, descaracterizar a Copa do Mundo como uma competição entre países ou, por outro lado, dar a falsa impressão de que a humanidade chegou a um patamar superior de aceitação e entendimento. E, contudo, quando a bola rola, ressurgem os velhos nacionalismos, cujo óbito tinha sido erroneamente constatado... Vê-se que foram inumados vivos e que apenas aguardam o momento dos hinos nacionais, antes de cada partida, para saltarem da cripta do passado para as arquibancadas dos estádios.
Senhores leitores, talvez guardemos em nós mais vestígios tribais do que em geral pensamos!



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