sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Algumas considerações sobre o ensino ideológico de História

A revista paulistana A Cigarra, em sua edição de 15 de junho de 1914, trazia:
"Numa aula de História:
- Diga-me alguma coisa sobre a vida de Tiradentes.
- Não está nos meus hábitos intrometer-me na vida alheia..."

Às vezes fico pensando de onde vêm as informações sobre a vida das "grandes personagens da História", que aparecem em algumas publicações. Sim, a pesquisa histórica pode, eventualmente, revelar detalhes curiosos, até picantes, sobre os famosos do passado, mesmo que não seja exatamente isso que o historiador esteja procurando. O problema aparece quando meras conjecturas ou lendas sem qualquer documentação comprobatória acabam sendo guindadas ao posto de verdades incontestes. A partir daí, são repetidas na mídia, e a repetição empresta ares de autenticidade às suposições, a tal ponto que, sem nenhuma compostura, comparecem às salas de aula, seja pela voz de um professor menos informado, seja pelas perguntas de alunos que ainda ficam espantados quando os docentes asseguram que tudo não passa de balela. Pior é quando, no cúmulo do desastre, a suposta informação chega aos estabelecimentos de ensino através de livros didáticos. Vê-se, portanto, o tamanho da responsabilidade de quem os escreve.
Não digo que nunca se possa referir uma ou outra anedota. Estará bem, desde que fique muito claro para quem lê que a coisa ou é ficcional ou, no mínimo, duvidosa. Mas tanta sinceridade não casa bem com a construção deliberada de heróis, que personifiquem os valores e/ou ideais defendidos com propósitos ideológicos, seja por quem deseja espaço para controlar a sociedade, seja por quem já manda mesmo. 
Acha que estou exagerando, leitor? Procure, então, livros didáticos de História adotados nos tempos do Estado Novo ou aqueles usados por escolares no Brasil dos anos setenta do Século XX. Não será preciso ir muito longe na leitura para verificar, na prática, como é que o fenômeno ocorria. 
No extremo oposto (que não anda difícil de encontrar), o da desconstrução total, nada do que se fez no passado valeu a pena, tudo tinha intenções perversas, todas as personagens eram figuras ridículas, verdadeiras minas de defeitos, tudo é alvo para anedotas descabidas, e por aí vai.
Mesmo respeitando as vozes discordantes, afirmo que escola não é lugar para entalar ideologia em cabeça de criança. Escola é sim, lugar em que crianças e jovens devem ser ensinados a pensar com a própria cabeça, e isso vale para qualquer área do conhecimento - não é exclusividade para as aulas de História. Acesso à informação, ainda que vital, não basta, é indispensável que se faça acompanhar do desenvolvimento da capacidade de interpretação crítica. 
Não é minha intenção propor alguma fórmula mágica, até porque diferentes realidades pedem diferentes soluções. Porém defendo o incentivo ao pensamento independente, à liberdade de decisões, à capacidade de ler criticamente, como ferramentas que formarão um legado que todo estudante deve ter o direito de levar consigo ao final de seus anos escolares, e que farão enorme diferença para a vida toda, quer no âmbito pessoal, quer no exercício pleno da cidadania.
Vejam os leitores que não estou fazendo das minhas ideias uma verdade suprema. Não tenho e nunca tive tal pretensão. Estou, com este post, abrindo espaço para um debate. Portanto, deem aqui (*) seus palpites, sem medo e sem preconceito. Mãos à obra!

(*) Se preferirem, podem usar o Twitter.


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4 comentários:

  1. Desenvolver o sentido crítico, eis um conceito defendido por muitos mas que, na prática, teima em não vislumbrar carta de alforria. Estarão os governos interessados, verdadeiramente, nisso?

    Uma boa semana, Marta :)

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    1. Penso que, infelizmente, para a maioria dos governos, a educação tem importância relativamente secundária.
      A questão é que, ao menos no Brasil, há também, além das escolas públicas, um número elevado de escolas particulares, com razoável autonomia para adoção das linhas pedagógicas que julgarem mais convenientes, e não se pode dizer que em todas elas ocorre muita preocupação com o desenvolvimento da capacidade crítica dos alunos (embora haja notáveis exceções). Ou seja, o problema não está apenas ligado a decisões governamentais. Passa também pela necessidade de ruptura com práticas de ensino consolidadas, mas não muito eficientes.

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  2. Os factos históricos ao serem relatados ou ensinados, deveriam enfatizar as circunstâncias temporais e espaciais e assim compreendidos.
    Ao ler a História sob o olhar critico dos códigos da sociedade atual, estamos a distorcer o contexto, de forma a que possa caber na nossa moldura justiceira de moralidade.

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    1. Olá, José, obrigada por comentar. Este assunto é complexo, não?

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