segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Algodão para a roupa dos escravos

Grupo de escravas, de acordo com Thomas Ender (¹)

Nos tempos coloniais, eram frequentes as reprimendas do clero contra senhores que sequer tinham a preocupação de prover vestuário decente para seus escravos. Aos poucos, ao menos nesse aspecto, práticas mais civilizadas foram introduzidas, embora seja fácil perceber, pelas obras de desenhistas da primeira metade do Século XIX, que, mesmo no Rio de Janeiro, capital do Brasil, havia escravos verdadeiramente maltrapilhos percorrendo as ruas.
Na opinião do segundo barão de Paty do Alferes, todo fazendeiro deveria, em suas terras, cultivar algodão, ainda que apenas à beira dos caminhos, "embora essa não seja a cultura especial do agricultor, pois além de muitos outros usos domésticos e constantes, o algodão fiado fornece a melhor linha para coser a grosseira roupa dos escravos." (²)
Um pouco depois da Independência, um militar alemão de nome C. Schlichthorst, que esteve Brasil contratado como oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros de Primeira Linha, observou que na capital do Império as mulheres de condição livre tendiam a usar, ao menos em público, roupas pretas ou coloridas, porém jamais peças brancas, e logo explicaria o motivo:
"As senhoras e moças vestem-se de preto ou de cores variegadas, cada qual seguindo, quanto a cores, seu gosto pessoal e não os rigores da moda. [...].
Em casa e nos passeios, senhoras e moças trazem vestidos coloridos de casa. Nunca brancos, pois esta cor é reservada ao trajar dos negros." (³)
Se é verdade que os registros de Schlichthorst eram às vezes inexatos (quer por um lapso de memória ou por falta de informação), neste caso ele estava correto, ao menos em parte: escravos, é fato, não tinham, necessariamente, que vestir roupas brancas, mas havia entre pessoas livres algum preconceito quanto a usar traje branco, que se imaginava uma característica dos cativos, já que muitas peças de vestuário usadas por escravos nos tempos do Império eram feitas com tecido rústico de algodão cru, embora camisas de tecido listrado, para os homens, e saias e turbantes coloridos, no caso das mulheres, não fossem incomuns. O caso é que, malgrado a pouca ou nenhuma delicadeza do tecido, não podemos deixar de notar que, em termos de cor, o vestuário dos escravos, com a predominância do branco, acabava sendo mais adequado ao clima de grande parte do Brasil do que eram as roupas usadas por pessoas de condição livre. No Rio de Janeiro, ao longo do Século XIX e mesmo mais tarde, a casimira inglesa, sempre em circunspectas cores escuras, tinha a preferência para a confecção do vestuário masculino usual entre a gente que se supunha de alguma importância. Imagine-se o que é que tal coisa significava sob um típico sol de verão!...
Mas voltemos ao vestuário dos escravos. 
Em algumas fazendas, o tecido de algodão era feito a partir da produção local. Porém, como muitos fazendeiros reservavam quase a totalidade de suas terras para culturas como café ou cana-de-açúcar, além da produção de gêneros de subsistência, havia espaço, no mercado, para quem se dispunha a fornecer o tecido pronto e na metragem desejada. Um anúncio de uma fábrica de tecidos de algodão do município de Magé, que apareceu no Almanque Laemmert de 1853, trazia a seguinte explicação:
"Esta fábrica [...] é de cardar, fiar, torcer e tecer algodão, tocada por água [...]. Fabrica panos grossos superiores aos de Minas, para roupas de escravos e sacaria [...]." (⁴)
Para maior comodidade dos interessados em compras, informava também ter depósito na capital:
"O depósito destes algodões é no Rio de Janeiro, Rua do Hospício, Casa de Samuel Southam &; C., únicos agentes, Rua dos Pescadores, 26." (⁵)

(1) O original pertence ao acervo da BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. 
Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 22.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, 92.
(4) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1853. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1853.
(5) Ibid.


Veja também:

6 comentários:

  1. Interessante, sem dúvida, o facto de as pessoas de condição livre da época, num país com muito sol, evitarem as roupas brancas por uma questão preconceitual.
    Grato, Marta, por estes apontamentos históricos.

    Um beijinho :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, havia o preconceito; entretanto, um outro fator a ser considerado é que aqueles que tinham recursos para tanto, procuravam imitar as modas europeias, ainda que sacrificando o conforto.

      Excluir
  2. Parece anedota, imagino o calor que as damas e os cavalheiros deviam sofrer.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Haha, e não é só: vestidos desse modo, tinham por hábito, em dias quentes, irem às ruas usando guarda-chuvas como proteção contra o sol...

      Excluir
  3. interessante, s roupas dos judeos e arabe seram desse tecido? vejo que para roupas tingidas outras peças artesanais são lindissimos. Mas valeu o historico. sou artesã.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Lorena Damasceno, seja bem-vinda ao blog História & Outras Histórias. Como você não especificou a época, suponho que esteja falando do vestuário desses povos na Antiguidade. Neste caso, os tecidos de linho e lã estavam entre os mais comuns para vestuário.

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.