quarta-feira, 16 de julho de 2014

Galinhas e gado ao mar!

Na postagem anterior (¹) mostrei que, pelas alturas do Século XVIII, o mais comum alimento na navegação do Brasil para Portugal era o feijão. Agora, veremos que outros suprimentos eram também usuais.
À nau "Nossa Senhora da Ajuda", já em viagem no Atlântico Norte, deparou-se pavorosa tempestade, que bem poderia tê-la submergido para sempre. Ora, o autor da Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa, relatou alimentos que se perderam em meio à fúria da tormenta:
"A desordem que isto causava deu motivo a se lançarem ao mar as coisas soltas, e algumas de muito valor, que se achavam em movimento. As capoeiras das galinhas entraram neste número, e por isso se perderam todas as aves, que passavam de oitocentas cabeças. O gado não achando, nem se lhe podendo dar algum asilo, quebrava as mãos, pescoços e pernas, e assim mortas ou moídas se lançaram ao mar mais de vinte e cinco reses." (²)
Cabe aqui a explicação, a bem da clareza, que "capoeiras" eram gaiolas para aves. Bem, a lamentação do alferes Elias Alexandre e Silva não era, por certo, pela vida das galinhas - elas iriam morrer de qualquer jeito - era justamente por não terem ido para a panela. Vale exatamente o mesmo para as cabeças de gado (e não só para as cabeças, claro está).
A oficialidade que viajava precisava, no entanto, de um pouco mais que feijão e alguma quantidade de carne. Logo mais, no desenrolar da tempestade, isso também se perderia:
"Os barris de manteiga, azeite, vinagre, queijos , açúcar e todos os comestíveis menos grosseiros se viam perdidos ou espalhados pelo convés [...]." (³)
Finalmente, para completar o drama, até mesmo alguns tonéis de água se foram:
"Até cinco tonéis de água se abateram no porão, tais eram os nunca vistos balanços!" (⁴)
Afinal, meus leitores, havemos de considerar, a bem da História, que a desdita da gloriosa nau "Nossa Senhora da Ajuda" faz, hoje, a nossa boa sorte. Não fora a notável tempestade em que se meteu, e o alferes Elias Alexandre e Silva não teria assunto relevante para escrever. Teve, porém, e de sobra, pela experiência dramática da qual foi testemunha ocular, o que nos permite, hoje, bisbilhotar com facilidade sobre o que abastecia a cozinha de uma grande embarcação naqueles tempos.

(1) A postagem de hoje será melhor compreendida com a leitura da anterior, "Viagem atrasada por falta de feijão".

(2) SILVA, Elias Alexandre e. Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, p. 40.
(3) Ibid., pp. 40 e 41.
(4) Ibid., p. 41.


Veja também:

2 comentários:

  1. Com certeza o alfares prefereria comer galinha do que ter "assunto de interesse" para relatar. Mas os historiadores agradecem, né? E a propósito de carne, respondendo ao seu comentário lá n'O Berço, não só a carne de camelo é cara e muito apreciada como colocam uma cabeça do animal, por cima da banca da carne (sem qualquer refrigeração, claro). Não vão vender "gato por lebre"
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Arrrrgh... Respeito e aprecio as diferenças culturais (a maior parte delas contribui muito para enriquecer a humanidade), mas, em se tratando de comida, não há como fazer certas concessões. Cabeça de camelo? Nem pensar!

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