segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Jangadas

Jangada ao mar... (¹)

Já faz bastante tempo, leitores, mas quando estava com uns sete anos, eu tinha de praticar uma lição de piano cuja letra dizia: "Minha jangada de vela, que vento, queres levar..."  Lembrando a cançãozinha irritante, trato hoje justamente das jangadas e, como não poderia deixar de ser, da importância histórica dos jangadeiros.

Jangadas indígenas

Dentre as embarcações usadas por indígenas do Brasil, as jangadas despertaram a curiosidade dos colonizadores europeus devido à simplicidade com que eram feitas, aliada à eficiência quando era preciso vencer as ondas na navegação costeira do Atlântico. Escrevendo no Século XVI sobre o fato de que os ameríndios eram hábeis na pesca, Pero de Magalhães Gândavo explicou, em sua História da Província de Santa Cruz:
"Também se sustentam de muito marisco e peixes que vão pescar pela costa em jangada, que são uns três ou quatro paus pregados nos outros e juntos de modo que ficam à maneira dos dedos da mão estendida, sobre os quais podem ir duas ou três pessoas ou mais se mais forem os paus, porque são muito leves e sofrem muito peso em cima d'água." (²) 
Quase um século mais tarde o jesuíta Simão de Vasconcelos descreveria a jangada dos indígenas de modo semelhante: 
"No mar usam por embarcação de jangada, que vem a ser três até quatro paus boiantes ligados entre si, onde levam linhas e anzóis, e pescam peixe grosso." (³)

A jangada indígena ganhou uma vela

Os leitores que conhecem as jangadas que ainda hoje andam em uso devem ter notado que nas descrições dos primeiros tempos coloniais falta alguma coisa - a vela. Vê-se, portanto, que houve, neste caso, uma fusão de elementos da cultura indígena e do conhecimento náutico que sobrava aos portugueses. Assim, a pequena embarcação usada pelos nativos ganhou um modo de tirar partido dos ventos. A nova versão foi muito bem descrita por François Biard, pintor francês que esteve no Brasil entre 1858 e 1859:
"Uma velazinha parece surgir de dentro do mar; caminha na nossa direção com vento a favor. Vemos apenas uma vela, sem sabermos qual o seu ponto de apoio. [...]. "São jangadas, diz-me ao ouvido um marselhês que vivia há anos em Buenos Aires. O senhor vai ver daqui a pouco como são embarcações seguras, embora não o pareçam." Efetivamente, era segura. Meia dúzia de paus amarrados entre si, um banco e, ao centro, um furo onde se fixava o mastro. Nada mais. Nessa espécie de embarcações não se vai ao fundo, é verdade, porém tem-se os pés sempre dentro d'água, e, às vezes, um pouco mais do que os pés." (⁴)

Jangadas e jangadeiros cearenses na luta abolicionista

Ocorre que as jangadas do Ceará e, naturalmente, os respectivos jangadeiros, tiveram participação importantíssima à época em que fervia a campanha abolicionista. Foi entre 1880 e 1881, e, para bom entendimento da questão, será preciso dizer que, nesse tempo, eram os jangadeiros que transportavam, desde os navios, aqueles passageiros que queriam ir à cidade de Fortaleza. Isto posto, vamos ao que explicou Osório Duque-Estrada, relativamente à ação antiescravista dos jangadeiros cearenses:
"Desde 1867, constituíra-se o Ceará em centro do comércio exportador de escravos para as províncias do Sul para onde seguiam constantemente, separados para sempre de filhos, esposas e mães, levas e levas de míseros escravizados. 
Francisco do Nascimento, que gozava de grande influência na sua classe, reuniu logo todos os jangadeiros e obteve deles o juramento de que nenhum escravo seria mais embarcado, para entrar ou para sair, no porto de Fortaleza." (⁵)
Com grande probabilidade, a maioria dos jangadeiros devia ser composta por gente de pouca instrução formal, o que torna ainda mais surpreendente o nível de consciência cívico-política de sua decisão. Ora, não satisfeitos com esse notável serviço que já prestavam ao Brasil, os jangadeiros foram além, e decidiram não desembarcar os deputados que haviam participado da articulação com vistas a impedir o que viria a ser a Lei dos Sexagenários (aprovada em 1885):
"Um telegrama de Fortaleza, publicado na Gazeta da Tarde, anunciava que os jangadeiros reunidos no dia 6 de agosto, haviam resolvido impedir o desembarque dos representantes do Ceará que votaram a moção contra o gabinete Dantas.
Esse fato deu lugar a sátiras e humorismo de quase todos os jornais ilustrados da época." (⁶)
Convenhamos: não era para menos!

(1) KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1816. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 138.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 126.
(4) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 25.
(5) DUQUE-ESTRADA, Osório. A Abolição. Brasília: Ed. Senado Federal, 2005, pp. 97 e 98.
(6) Ibid., p. 122.


Veja também:

6 comentários:

  1. Querida Marta, que pequenas pérolas nos trazes hoje. Não sabia que a soma da vela à jangada se tinha feito por influência portuguesa.
    Deixe-me responder também ao seu comentário lá n'O Berço. Respondo aqui, como respondi lá, "lamento desapontá-la, minha querida, mas para a maioria das pessoas, desfiar factos históricos é deveras maçador. Sei que não está incluída nesse rol, mas somos, claramente, aves cada vez mais raras...."
    Beijinhos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hmmm, talvez seja possível contar os fatos de uma maneira interessante, e ir além do simples relato, mostrando que muita coisa no passado explica o que anda a acontecer hoje em dia. Há também a importância de se estabelecerem relações entre acontecimentos contemporâneos, relações de causalidade, etc., até como exercício mental, se não servir para outra coisa...
      Mas, convenhamos, a História tem um tremendo charme, ainda que, de fato, não seja para todo mundo.

      Excluir
    2. Estou plenamente de acordo com tudo isso. Assino por baixo

      Excluir
    3. Haha, eu também......................

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.