sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Terríveis paulistas (como quase todos os demais colonizadores)


Acampamento de bandeirantes (¹)

Entre autores dos séculos XVII e XVIII não são raras referências nada elogiosas à conduta dos paulistas; já no Século XIX, o Padre Ayres de Casal observou:
"Os paulistas de hoje passam por uma boa gente; mas seus avoengos não o foram certamente." (²)
Perguntará alguém dentre os leitores: Até que ponto essa observação era procedente? Para dar resposta à questão, vejamos, primeiro uma pequena lista, na qual todos os itens são provenientes da Nobiliarchia Paulistana, obra de genealogias escrita no Século XVIII, com evidente finalidade de exaltar os feitos dos paulistas:

1. Era comum que os patriarcas de Piratininga e adjacências tivessem muitos índios escravizados, centenas deles, a despeito dos protestos dos jesuítas envolvidos na catequese da população ameríndia; quando um sujeito tinha muitos desses índios escravizados, afirmava-se que era um "potentado em arcos"... O mais curioso é que os pobres escravizados eram, eufemística e legalmente, chamados "administrados", nunca "escravos", como de fato acontecia. Pior ainda, dizia-se que os índios eram "extraídos do sertão para o grêmio da Igreja".

2. Na busca por indígenas para a escravização, paulistas logo descobriram que era "bom negócio" atacar as missões e/ou reduções, já que nelas, aos cuidados dos padres, os índios viviam desarmados e, além disso, aprendiam ofícios mecânicos, fato que contribuía para torná-los mais valiosos para a venda.

3. Dinheiro amoedado era raro na Capitania de São Vicente, por sua distância da Europa e pequeno comércio direto com a Metrópole lusitana, de modo que o fenômeno da falsificação de moedas não era, em absoluto, desconhecido, a despeito das severíssimas leis previstas nas Ordenações do Reino para esse crime. Em carta à Câmara Municipal de São Paulo, datada de 1709, dizia El-Rei:
"E porque o mesmo Pedro Taques me representou a grande perturbação que causou nesse povo as moedas falsas que se acharam nessa capitania, vos ordeno que neste particular procedais com aquela diligência e cuidado que pede matéria tão importante." (³)

4. Não era incomum em São Paulo que houvesse homem obrigado a casar-se, usando a linguagem da época, "à força das armas" - os senhores leitores devem imaginar a causa. Outro eufemismo corrente era "casou por força de consciência".

5. Levantes e rebeliões também não eram incomuns. Enquadra-se aqui, por exemplo, a chamada "Aclamação de Amador Bueno", ocasião em que parentes desse rico fazendeiro pretenderam fazê-lo, nem mais e nem menos, que o rei de São Paulo! A coisa só não prosseguiu porque Amador Bueno teve juízo suficiente para rejeitar o posto que lhe queriam conferir.

6. A querela entre as famílias Pires e Camargo provocou arruaças e assassinatos por anos a fio nas ruas de São Paulo.

7. Os testamentos de paulistas estavam repletos de referências a filhos "bastardos mamelucos" e/ou "filhos naturais" (essa expressão é ótima - como seriam filhos artificiais?!!!), ou seja, nascidos fora do casamento reconhecido pela Igreja.

8. O rapto de mulheres também não era desconhecido na povoação; a poligamia seguia pelo mesmo caminho.

9. Há relatos de envenenamentos, bem como de apropriação indébita de herança que pertencia a parente(s).

10. Finalmente (como a lista já está muito longa), vale recordar que, tão afeiçoados eram os paulistas em escravizar índios que, a despeito de se considerarem bons católicos, não tiveram escrúpulos em promover a expulsão dos jesuítas em 1640, de tal forma que aos padres somente foi permitido o retorno após longa negociação.

Que dizer de tudo isso?
Antes de mais nada, é bom lembrar que feitos igualmente meritórios podem ser encontrados em quase todas as povoações de alguma importância existentes no Brasil daqueles dias. No caso dos paulistas, o isolamento em que viviam talvez explique, ao menos em parte, muitas das infrações. Ilhados no interior da Colônia, estavam livres para aprontar, como bem entendessem, com quase nenhuma restrição. O governo estabelecido por Portugal estava longe e, nessas condições, obedecer era mais uma opção do que uma obrigação.
Ora, vez por outra, o próprio governo precisava deles e, assim tinha que negociar. Amostra disso foi o que ocorreu quando se necessitou, desesperadamente, de gente disposta a lutar contra os holandeses no Nordeste. Solução? Proclamou-se anistia completa aos paulistas que houvessem cometido quaisquer atrocidades em suas andanças pelo sertão no apresamento de índios, desde que se alistassem para combater "o holandês". Preocupada em desmantelar Palmares, a administração lusa não hesitou em contratar os serviços de experientes bandeirantes que seguiam Domingos Jorge Velho. Estando "tão exausta" a Real Fazenda, foi aos sertanistas de São Paulo que recorreu o monarca português, incitando-os à procura de ouro, enquanto acenava com honrarias, em caso de sucesso.
Sedentos de glória e riqueza, paulistas arriscaram os bens e a vida à cata de metal precioso. Uns poucos lucraram bastante com a aventura. A maioria, anonimamente, saiu-se muito mal. Enquanto isso, graças aos avanços desses tipos descalços, famintos e maltrapilhos pelo interior da América do Sul, a Linha de Tordesilhas ia para o espaço e o mapa do Brasil tomava contornos algo parecidos aos que tem atualmente.
Não vale a pena generalizar. Devia haver gente excelente em São Paulo, mesmo nos difíceis dias da povoação de Piratininga. A maioria, no entanto, como ocorria com os mais colonos Brasil afora, era mesmo do arco da velha.

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 222.
(3) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana.


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2 comentários:

  1. Porque será que os actos dos nossos antepassados nos deixam um travo de remorso?! Sinto-me sempre um pouco triste e envergonhada quando leio a forma como os colonizadores trataram e subjugaram os indígenas, um pouco por todo o planeta. É uma espécie de responsabilidade histórica, muito estranha por sinal...
    Um abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Nunca tive livros proibidos lá em casa, mas a biblioteca familiar era realmente pobrezinha.

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    Respostas
    1. Acho que somos responsáveis apenas por nossos próprios atos, não pelos dos nossos antepassados. Do contrário, estaríamos todos fritos!
      De qualquer modo, a reflexão sobre o que andou mal no passado pode ser muito útil. Como todo mundo sabe, pode evitar erros futuros. O problema é que, como espécie, os humanos parecem ter uma enorme dificuldade de aprendizagem...
      Sobre livros proibidos, tenho verdadeira adoração por eles. Não posso negar.

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