terça-feira, 27 de junho de 2017

O mito do caipira preguiçoso e improdutivo

A grande luta social do Século XIX foi a da abolição da escravatura. A favor da abolição militaram alguns dos cérebros mais brilhantes de que o País dispunha; contra ela estavam, como é óbvio, muitos proprietários de escravos, bem como aqueles que tinham empreendimentos que lucravam com a escravidão. Destes, vinha a pergunta: Se não tivermos escravos, quem é que vai trabalhar?
Quase ninguém considerava que os ex-escravos poderiam ser contratados como trabalhadores livres. Até parece que, na cabeça de muita gente, a abolição seria uma espécie de evento mágico, por meio do qual os escravos simplesmente desapareceriam. A lei que aboliu a escravidão sequer fazia menção a eles (¹).
Era desejada e estimulada a vinda de imigrantes europeus (²), cujas características eram apresentadas como diametralmente opostas às dos trabalhadores livres nacionais, os chamados "caipiras", citados, algumas vezes, como verdadeiros acervos ambulantes de todos os defeitos. Existe deles uma descrição que, para os propósitos de nosso estudo, é um verdadeiro primor, e, apesar de um pouco longa, merece ser lida com atenção. Foi escrita por Augusto Emílio Zaluar e publicada no ano de 1862, quando o assunto da abolição ia esquentando e já se falava em intensificar o apoio à imigração europeia:
"À exceção das pessoas mais ilustradas, dos fazendeiros e comerciantes, o resto da população (³) é naturalmente indolente, preguiçosa e alheia a todos os regalos da civilização [...].
Como a terra é aqui abundante e toca a todos, esses homens [chamados] caipiras cultivam a ferro e fogo o torrão que possuem, e plantam-lhe milho, feijão e arroz. Colhido o seu produto, que sem muito trabalho podem haver, levam-no ao mercado, onde o vendem para comprar a roupa que lhes é necessária durante o ano, e regressam a casa, entregando-se outra vez aos seus hábitos de ociosidade, confiados na fertilidade do solo, que lhes fornece abóboras, aipim, batatas e outros gêneros, bem como das matas, que lhes oferecem palmitos, aves e outras muitas qualidades de caça, assim como nos rios, que os alimentam com muitos, variados e gostosos peixes." (⁴)
Leitores, sei que vocês são perspicazes, e, a esta altura, já devem ter esboçado um sorriso. Preguiçosos, os caipiras? Desde quando o solo produz milho, feijão, arroz, abóboras, aipim e batatas espontaneamente, sem qualquer esforço e intervenção de seres humanos? Alguém já ouviu falar de caça e peixes que, por conta própria, aparecem abatidos à porta de quem quer que seja?
Mas o trecho em questão é ainda contraditório. Afinal, se os caipiras eram tão preguiçosos como se afirmava, como é que cultivavam "a ferro e fogo o torrão" em que viviam? Notem, meus leitores, que, ao mesmo tempo em que se lhes imputava ociosidade, eram criticados pelo apego ao cultivo da terra!...
Com isso, já chegamos à questão central da má vontade que imperava (⁵) para com os trabalhadores livres nacionais no Século XIX: eles contrariavam os desejos dos latifundiários, à medida que, tendo um pequeno pedaço de terra que cultivavam para viver, não estavam dispostos a se sujeitar ao trabalho assalariado, em qualquer condição que fosse, nas terras de grandes fazendeiros, quase sempre interessados em explorar a mão de obra, quer de escravos, quer de trabalhadores livres (⁶). À acusação recorrente de que usavam métodos primitivos na prática da agricultura, bem poderiam os caipiras levantar a seguinte questão: Não faziam o mesmo os grandes fazendeiros (⁷), em cujas terras o implemento agrícola mais moderno era a enxada?

(1) Um dos problemas relacionados à Lei Áurea é que nela não se estabeleceu nenhuma provisão para que os ex-escravos tivessem condições dignas de existência.
(2) Havia razões políticas para isso, dentro e fora do Brasil.
(3) Zaluar estava se referindo a uma povoação do Vale do Paraíba, que é hoje uma cidade muito importante no Estado de São Paulo.
(4) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, pp. 165 e 166.
(5) Isso não é um trocadilho.
(6) Este fato explica dois outros, também do Século XIX: a intenção de restringir o acesso à terra (através da Lei de Terras de 1850) e as revoltas de imigrantes europeus, que acusavam os latifundiários de tratá-los do mesmo modo que faziam com os escravos.
(7) É certo que uma minoria de proprietários rurais adotava práticas modernizadoras na lavoura, mas isto era exceção, e não regra.


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4 comentários:

  1. Para além da má vontade contra uma situação economicamente desvantajosa, com certeza havia aí muito preconceito. De resto, tal como hoje, o ser humano teme o que desconhece e, para disfarçar, não raras vezes, trata de depreciar o "outro".
    Como já advoguei aqui muitas vezes, não evoluímos tanto assim.
    Abraço amiga historiadora
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. É o que poderíamos chamar de preconceito "útil", porque servia muito bem aos interesses da classe latifundiária. Você tem razão, porque, procurando, não será difícil encontrar fenômenos semelhantes na atualidade.

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  2. É da história dos homens: quem tem privilégios não os quer perder, quem se sente injustiçado revolta-se para ter justiça. Uma história antiga, sempre actual, que não diminui no seu perpetuar. O poder, sempre a questão do poder...!

    Excelente post, Marta.

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    1. O que eu acho mais curioso é a criatividade dos argumentos usados pelos detentores dos vários tipos e níveis de poder, quando não querem "largar o osso" rsrsrssss...

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