terça-feira, 2 de maio de 2017

Casamentos indígenas (na visão de colonizadores europeus)

De acordo com Gabriel Soares, que foi autor, colonizador e senhor de engenho do Século XVI, o casamento entre indígenas (¹) não era usualmente assinalado por grandes cerimônias: "Não têm em seus casamentos outra cerimônia mais que dar o pai a filha a seu genro, e como têm ajuntamento natural, ficam casados" (²). A poligamia não era incomum, principalmente no caso dos grandes chefes. Cada homem e mulher tinha, na habitação coletiva, sua própria rede de dormir e, supondo a curiosidade que há de passar pela cabeça dos leitores, já vai aqui a resposta à questão que imaginaram: "Quando o marido se quer ajuntar com qualquer delas [suas mulheres], vai-se lançar com ela na rede, onde se detém só aquele espaço deste contentamento [...]." (³)
Adiante, leitores! 
Para a maioria dos autores dos tempos coloniais, indígenas casados pareciam viver muito bem, sendo raro, entre eles, algum desentendimento. Não obstante, há frequentes menções ao fato de que, em uma aldeia indígena, as mulheres faziam quase todo o trabalho, enquanto os homens, ocupados com a caça e a pesca, viam nessas atividades quase um lazer, e não uma obrigação para a subsistência. (⁴)
Hércules Florence, desenhista francês que andou pelo interior do Brasil com a Expedição Langsdorff, afirmou em 1827 que mulheres indígenas preferiam o trabalho nas fazendas à vida na aldeia de origem: "Mais facilmente acostumam-se as mulheres [indígenas] nas fazendas, porque em sua tribo são escravas e infelizes." (⁵) E, ao descrever o desenho que fizera de uma índia bororo, explicou que, quando a tribo ia de um lugar para outro, era às mulheres que competia levar toda a carga:
"Carrega às costas um fardo, que posto em terra era da altura dela. Esse fardo compõe-se de esteiras, couros, peles enroladas e jacás cheios de vários objetos (⁶), peso enorme para essas infelizes mulheres que são os animais de carga daqueles índios. Tudo aquilo é amarrado com embiras e suspenso por uma faixa mais larga que lhes passa pela cabeça, acima da testa, o que as obriga a abaixarem o pescoço e a fronte, e a curvarem o corpo para diante.
Com tal carga, levam por cima uma criança escanchada nos ombros e um cãozinho. Ainda não é tudo, pois quando os maridos matam um porco-do-mato ou qualquer outra caça, metem-no num dos jacás que elas trazem às costas." (⁷)
Alguém poderá conjecturar que esse tratamento desumano para com as mulheres seria fruto da desestrutura social provocada pela colonização - afinal, as observações de Hércules Florence foram feitas no Século XIX, em ocasião um pouco posterior à Independência. Entretanto, o capuchinho francês Yves d'Évreux, que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, observou algo muito semelhante entre indígenas daquela área (⁸):
"[A mulher indígena] acompanha seu marido carregando na cabeça e às costas todos os utensílios necessários ao preparo da comida, às vezes a própria comida, ou os víveres necessários à jornada, como fazem os burros de carga com a bagagem e alimentação dos seus senhores." (⁹)
É óbvio que esses registros (de Florence e d'Évreux) não cobrem, nem de longe, a totalidade dos povos indígenas do Brasil. São casos específicos, mas parecem mostrar, ainda que em âmbito restrito, o que acontecia dentro dos grupos observados. Há quem argumente que os homens indígenas caminhavam livres de carga porque deviam estar prontos para a defesa do grupo.
Bem, já que falamos no padre d'Évreux, vamos a um incidente que prova que toda regra tem exceção, ao menos quanto às frequentes afirmações de que casais indígenas costumavam viver em paz. Às vezes, porém... Vejamos o que escreveu o capuchinho francês, testemunha ocular de um espetáculo digno de gladiadores da antiga Roma:
"Enquanto aí morei, aconteceu aborrecer-se um selvagem do mau gênio de sua mulher, a ponto de empunhar com a mão direita um cacete, e na esquerda segurar os cabelos dela, querendo experimentar se este óleo e bálsamo adoçaria o azedume de seu mal, porém admirou-se de ver, que caindo o fogo na chaga mais o aumentasse, porque podendo escapar-se de suas mãos, à vista dos vizinhos, tomou também ela outro cacete, quis fazer o mesmo ao marido, e depois de se haverem espancado reciprocamente com grande aplauso de todos [sic!!!], ficaram ambos em igualdade de circunstâncias frente a frente um do outro, sendo depois o marido a fábula e o assunto de todas as conversas, quer dos grandes, quer dos pequenos." (¹⁰)
Entendo, leitores, que podemos ficar por aqui, pois já temos asteriscos demais. O incidente não carece de maiores considerações...

(1) Neste caso, em particular, Gabriel Soares falava dos tupinambás.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 311.
(3) Ibid.
(4) Ver, sobre essa questão, o que escreveu Jean de Léry no Século XVI, relativamente aos tupinambás, em Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil.
(5) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 180.
(6) A descrição fornece uma ideia do que eram os pertences usuais nesse grupo indígena.
(7) FLORENCE, Hércules. Op. cit., p. 182.
(8) D'Évreux parece falar dos indígenas em geral, que conheceu no Maranhão, e não de algum grupo específico.
(9) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 81.
(10) Ibid., p. 91.


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2 comentários:

  1. Pois eu acho que carece de bastantes considerações, ainda que os observadores achassem o comportamento dessa mulher inusitado, é digno de admiração assim como deve ser aplaudida toda a mulher que se tenta defender num momento violento. Bravo para ela.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Um quadradinho de chocolate não faz mal a ninguém

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    1. 1) Ninguém consegue ficar em apenas um quadradinho de chocolate.

      2) É certo que todo e qualquer ato de violência deve ser condenado, e que a pessoa agredida tem direito à defesa. O curioso, neste caso, é o modo como d'Évreux descreveu o incidente, que parece ter saído do âmbito da violência doméstica para o de uma luta quase "olímpica". É provável que o capuchinho francês não tivesse essa intenção, mas seu relato é importante no sentido de fazer a imagem do quotidiano indígena mais realista, sem aquela ideia de "sociedade ideal", que até parece uma coisa boa, mas que acaba sendo uma desumanização. Em seus relacionamentos, indígenas acertavam e erravam, como todos os humanos.

      Por outro lado, o incidente pode ser entendido de pelo menos duas formas:
      a) Não era usual entre indígenas, daí o espanto que causou;
      b) Era usual entre indígenas, mas inaceitável para a mentalidade de d'Évreux, daí a surpresa de sua parte, que transparece no relato.

      De um jeito ou de outro, dá o que pensar...

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