domingo, 18 de março de 2012

Ela, a palmatória - instrumento para torturar escravos

Se, na postagem anterior, tratou-se do uso da palmatória nas escolas, uso este fundado na suposição de que com elas a criançada era mantida no devido respeito, nesta ver-se-á que não eram apenas os pobres escolares que sofriam com os "bolos". Não, meus leitores, o uso já remoto (ao menos oficialmente) desse instrumento de tortura fez apagar da memória da maioria das pessoas o fato de que palmatórias eram usadas, também, para castigo dos escravos, em especial daqueles que trabalhavam dentro das casas de seus senhores, "escravos domésticos", como se dizia.
Há um trecho notável de O Mulato, de Aloísio Azevedo, que retrata muito bem esse hábito  pouco civilizado, mas que era extremamente comum no Brasil escravocrata, quando hipocritamente se dizia que os senhores repreendiam seus escravos do mesmo modo que os pais a seus filhos (o que não exclui a dura realidade de ser filho, na época):
"E aquele castigo covarde, que encontrava o lombo passivo do escravo, inerme e submisso, revoltava-o pelo desrespeito à reciprocidade dos deveres sociais e pela afronta ao direito natural do homem. E, como a mudança não fosse tão fácil, Raimundo contentava-se com passar parte dos dias no bilhar do único hotel da Província, não sem pena de abandonar as inocentes conversas da varanda.
Em breve criou fama de jogador e bêbado. O fato é que por tudo isto minava-o uma repugnância surda contra a Província e contra aquela maldita velha  - quando o estalo do chicote ou da palmatória rebentava no quintal ou na cozinha, Raimundo repelia o lápis ou a pena com que trabalhava no quarto, exclamando: - Lá está o diabo! Nem me deixa fazer nada! Arre!"

"Castigos Domésticos", obra de Rugendas (¹)

Tanto Rugendas quanto Debret deixaram excelentes imagens retratando esse costume selvagem, imagens que causam forte impressão mesmo após quase duzentos anos, e não é sem causa que surge a questão: poderia alguma coisa melhor derivar do escravismo? Se o sistema de trabalho era, em si, uma aberração, como esperar que, em seu círculo de ação, brotasse alguma coisa que contribuísse para a dignidade humana? Embora a imagem "clássica" do castigo de um escravo seja aquela do feitor espancando um pobre ser humano amarrado, sem qualquer possibilidade de defesa, não se pode negar que, em essência, o emprego da palmatória não era menos aviltante, posto que menos público, quase sempre circunscrito ao interior de residências e oficinas.
Espantoso é que tenha havido quem intentasse a defesa do sistema escravista, como bem o descreveu o líder da Independência, José Bonifácio, em um trecho algo longo, mas impagável, que vale a pena conhecer:
"[...] A cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia lançou sempre mão, e ainda agora lança de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a sua apologia: diz que é um ato de caridade trazer escravos d'África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos régulos; diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do Evangelho, que todo cristão deve promover e espalhar; diz, que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro doce, fértil e ameno; diz por fim, que devendo os criminosos e prisioneiros de guerra serem mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes é um favor, que se lhes faz, conservar a vida, ainda que seja cativeiro.
Homens perversos e insensatos! Todas essas razões apontadas valeriam alguma coisa, se vós fosseis buscar negros à África para lhes dar liberdade no Brasil, e estabelecê-los como colonos; mas perpetuar a escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que seriam, se alguns fossem mortos pela espada da injustiça, e até dar azos certos para que se perpetuem tais horrores, é de certo um atentado manifesto contra as leis eternas da justiça e da religião. E por que continuarão e continuam a ser escravos os filhos desses africanos? Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor? Saíram das trevas do paganismo para a luz do Evangelho? Não, por certo, e todavia seus filhos, e filhos desses filhos devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre." (²)

Oficina de sapateiro, com escravo sendo castigado, obra de Debret (³)

Quero apenas lembrar aos leitores deste blog que essa citação faz parte de uma memória que José Bonifácio pretendia expor diante da Assembleia Constituinte, a mesma que D. Pedro I dissolveu em novembro de 1823 para, após ela, outorgar a Constituição de 1824. Evidentemente ninguém pode adivinhar o que teria ocorrido se, não sendo dissolvida a Constituinte, Bonifácio tivesse a oportunidade de discutir a questão do sistema de trabalho vigente no Brasil. Teriam outros deputados apoiado a ideia de uma abolição, ainda que gradual? Não sabemos, mas quase se pode afirmar que, nesse caso, talvez não fosse necessário esperar 1888.

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SILVA, José Bonifácio de A. e. A Abolição. Rio de Janeiro: Lombaerts & Com., 1884, pp. 14 e 15.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

2 comentários:

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.