quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Os títulos dos monarcas: modéstia e humildade não eram virtudes

A Declaração Universal dos Direitos da Criança afirma que toda criança tem "direito a um nome e a uma nacionalidade". Nosso nome nos identifica, quer gostemos dele, quer não. Mas, como há muitos nomes iguais (apesar da incrível capacidade de imaginação dos progenitores), temos, muitos de nós, um segundo nome e pelo menos um sobrenome. E, se isso não for suficiente, existem ainda os apelidos, que, a não ser em casos excepcionais, não são parte oficial do nome, mas são tão poderosos, a ponto de não reconhecermos certas pessoas a não ser por esses subtítulos. Os monarcas do passado sabiam muito bem da importância de tais apelidos, para si mesmos e para seus antecessores, de modo que entre a casta de funcionários públicos que os rodeava, havia sempre aqueles encarregados de proclamar a lista de títulos que ia ficando maior à medida que as conquistas e outras realizações eram adicionadas ao currículo dos mandatários. E, nesse aspecto, pode-se afirmar que a modéstia nunca foi a grande virtude dos poderosos, pelo menos no que se refere à maioria deles. Os títulos eram, isso sim, um instrumento de poder que continuou a ser muito bem empregado séculos afora.
Hamurabi, no famoso Código, é chamado "o príncipe exaltado", "o rei sábio", "rei protegido (dos deuses)", "o rei que domina entre os reis de todas as cidades", "o legislador, que é como um pai para seus súditos", "o rei da justiça".
Já no Egito, Os faraós consideravam-se (e eram considerados, uma coisa não funciona sem a outra, pelo menos quando se trata de governar), filhos dos deuses. Tutmés III, em um relato muito unilateral sobre a famosa batalha de Kadesh, afirma: "Seguramente como sou amado por Rá e protegido por meu pai Amon...". Explico: para os egípcios, Amon-Rá era o rei dos deuses e o originador da vida. Politicamente, Tutmés III não poderia ter elegido melhor paternidade.
Não imagine, leitor, que essa moléstia (a falta de modéstia) ficou circunscrita à Antiguidade. Embora seja discutível a origem do título de "rei-sol" para Luís XIV, da França, é bastante provável que "L'État c'est moi" tenha sido afirmação dele mesmo. Mas, como já dissemos, não foi ele quem inaugurou o costume. Apenas como amostragem, Luís I, da França, é conhecido como "o Piedoso", Filipe IV, também da França , é "o Belo" e, em outras terras, Afonso V, de Aragão, é "o Magnânimo", Afonso X de Castela e Leão é "o Sábio" e D. João I, de Portugal, o Mestre de Avis,  é chamado "o de boa memória". Aliás, nesse caso de D. João I, é relevante notar como a denominação foi crescendo, já que entre 1385 e 1415 foi chamado "pela Graça de Deus, Rei de Portugal e do Algarve" mas, com a vitória no norte da África, passou, a partir de 1415, a ser "pela Graça de Deus, Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta".
Compreensivelmente, as grandes navegações tiveram um impacto considerável em agregar títulos ao monarcas lusitanos. D. João IV, "o Restaurador" (em referência ao fim da chamada "União Ibérica"), reinou de 1640 a 1656, sendo designado "pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.". Já D. João VI, regente desde 1792 e rei de 1816 a 1826, ficou conhecido como "o clemente", com a designação, até 1825, de "Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc." e, desde então, "Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.". É fácil perceber que o reconhecimento da independência do Brasil emagreceu um pouquinho a grandiloquência do título.
Vale acrescentar que, obviamente, a mesma ferramenta podia servir para infamar soberanos por alguma razão pouco estimados, como  Maria I, da Inglaterra e Irlanda, conhecida como "a sanguinária", Pedro I, de Portugal, "o Cruel" e Ivan IV, da Rússia, "o Terrível".
Ora, além de tudo isso, que dizer da imensa lista dos chamados "grandes" ou "magnos"? Só vai aqui também uma pequena amostra, porque uma relação mais abrangente seria quase interminável: Alexandre, o Grande ou Magno, Herodes I, o Grande, Constantino I, o Grande ou Magno, Papa Gregório I, Magno, Papa Leão I, Magno, Carlos Magno, ou o Grande, Rei dos Francos, Pedro I, da Rússia, o Grande (nesse caso particular a estatura parece ter tido um papel decisivo), Catarina II, da Rússia ou Catarina, a Grande, Frederico II, da Prússia, o Grande - como diriam os antigos, arre! Haja grandeza!
Vê-se que nessa humilde lista estão incluídos até papas. Como esperar que os que não tinham obrigação de santidade escapassem a tão grave pecado? Pode-se argumentar que, quase sempre, esses títulos eram dados por admiradores, seguidores, etc., não pelos próprios homenageados. Em que isso muda alguma coisa? Como bem expressou Charles-Louis de Secondat, aliás "barão de Montesquieu", o poder corrompe. E, até mesmo quando se quis combater os desmandos da monarquia, o hábito dos títulos não desapareceu. Saint-Just não foi "o arcanjo do Terror" e Robespierre, quem diria, "o Incorruptível"?

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