domingo, 10 de março de 2013

Um relógio de areia no tribunal mais importante do Reino

A imagem da areia que escoa em uma ampulheta - relógio de areia - já foi muitas vezes usada com a intenção de descrever a brevidade da vida e das ações humanas. Como passa a areia, ininterruptamente, de um lado para outro, assim parece escoar cada segundo de uma existência, sempre ao mesmo ritmo, suave, talvez, contudo implacável.
Ora, no passado, mandavam as Ordenações do Reino, que regiam Portugal e seus domínios (o que incluía o Brasil, portanto, no Período Colonial), que a mais alta corte de justiça, a Casa da Suplicação, tivesse seu horário de trabalho regido, nem mais e nem menos, que por um relógio de areia, e por razões que nada tinham a ver com algum conceito de brevidade da vida. Constava no Livro Primeiro, Título Primeiro (¹):
(§ 2) "O Regedor, todos os dias que não forem feriados, pela manhã virá à Relação, e fará vir [sic] os desembargadores cedo, porquanto o desembargo dos feitos há de durar quatro horas inteiras ao menos, passadas pelo relógio de areia que será posto na mesa, onde o Regedor está, o qual tempo se não gastará em práticas ou ocupações outras não necessárias ao ato em que estão."
Era costume que os magistrados ouvissem missa antes que as tarefas diárias tivessem início; seguem, as Ordenações, ainda dispondo sobre a disciplina de trabalho que sempre deveria ser adotada, chegando às raias do humor (para quem bem o entender, em meio à rigidez do texto jurídico), ainda no mesmo Livro e Título:
(§ 4) "Acabada a missa, os desembargadores entrarão logo em despacho, e tanto que entrarem, não consentirá o Regedor que se levantem das mesas em que estiverem, para outra alguma parte, salvo por tal necessidade que se não possa escusar, a qual, sendo passada, se tornarão logo a seus assentos e desembargos, de maneira que se não possa perder tempo algum."
Para nós que vivemos em tempos de brutal aceleração das atividades quotidianas (²), podem nos parecer ridículas tais disposições. Não há, porém, como não louvar a sabedoria de quem legislou há mais de quatro séculos (³) sobre a seriedade no emprego do tempo - neste caso, por parte de magistrados - mas que bem pode valer para qualquer ocupação. Mesmo em nossos dias. (⁴)

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra; conforme procedimento usual neste blog, os documentos antigos são, salvo, exceções, transcritos no português contemporâneo do Brasil.
(2) Considera-se que a Revolução Industrial constitui um marco na aceleração do trabalho, à medida que massificou o trabalho assalariado em grandes unidades de produção (as fábricas), nas quais o tempo e a atividade dos trabalhadores eram intensamente controlados.
(3) Mandaram-se coligir as Ordenações em 1595; a publicação da primeira edição impressa data de 1603.
(4) Ainda que não se possa saber, com exatidão, o quanto eram estritos os regedores em zelar pelo cumprimento dessas normas.


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