A casa das fornalhas, instalação existente nos engenhos de açúcar do Brasil Colonial, foi frequentemente comparada ao inferno, conforme se pode ver pelos escritos de vários autores da época - Antonil, entre eles. Antes, porém, que Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas fosse publicado em 1711, outro autor colonial teve a ideia de comparar as fornalhas ao que, na imaginação popular, deveria ser o inferno:
Contudo, frei Antônio do Rosário não se limitou a uma comparação que, pela frequência com que era feita, devia ser voz corrente em seus dias. Ciente da vida miserável a que eram submetidos os escravizados no Brasil, não economizou palavras para advertir senhores de engenho do que os aguardava quando tivessem de prestar contas de seus atos no Juízo Final. O trecho é um tanto longo e talvez mais erudito do que a maioria dos leitores de hoje é capaz de apreciar, mas vale a menção. Portanto, vamos a ele:
"Debaixo da casa das caldeiras estão as fornalhas, que com os negros metedores de fogo parecem vivas pinturas do inferno [...]." (¹)Quem escreveu tal coisa? Frei Antônio do Rosário, franciscano, nascido no Reino e falecido no Brasil no começo do Século XVIII, que publicou um pequeno livro em Lisboa com o título de Frutas do Brasil. Nada de descrições botânicas: a obra tinha caráter religioso, marcada por reflexões alegóricas muito ao gosto da época.
Contudo, frei Antônio do Rosário não se limitou a uma comparação que, pela frequência com que era feita, devia ser voz corrente em seus dias. Ciente da vida miserável a que eram submetidos os escravizados no Brasil, não economizou palavras para advertir senhores de engenho do que os aguardava quando tivessem de prestar contas de seus atos no Juízo Final. O trecho é um tanto longo e talvez mais erudito do que a maioria dos leitores de hoje é capaz de apreciar, mas vale a menção. Portanto, vamos a ele:
"[...] O açude do engenho do Juízo universal será de fogo, para que se saiba que geralmente o rigor da divina justiça explicada pelo fogo será maior do que foi no princípio do mundo; mas particularmente será de fogo, e não de água, o açude do engenho do Juízo, para castigar os que moem com sangue nos seus engenhos; aos que moendo com a água, ou com as bestas, mais moem com o sangue dos escravos, que com a água dos açudes [...]." (²)Há mais:
"[...] Os engenhos em que trabalham os escravos famintos, despidos e faltos de todo o alimento d'alma e corpo, ainda que moam com água, moem com o sangue que desumanamente lhes tiram os senhores por tormentos, que mais parecem martírios de tiranos da fé, do que castigos de senhores católicos: mas lá está o Vale de Josafá (³), o Vale do corte, In valle concisionis, onde se há de armar o engenho do Juízo, e aí serão bem moídos e remoídos com fogo os senhores de engenho, que moem como tiranos, mais com sangue que com água [...]." (⁴)Reafirmo que o pequeno livro de Frei Antônio do Rosário foi publicado no começo do Século XVIII, quando senhores de engenho eram, ainda, vistos como figuras cuja autoridade e prestígio derivavam do poder econômico. Poucos teriam a audácia de enfrentá-los tão abertamente, e muitos, até mesmo entre o clero, eram os que fechavam os olhos para a brutal exploração da força de trabalho dos cativos. Sim, é verdade que frei Antônio do Rosário não travou combate contra a escravidão como sistema de trabalho, opondo-se somente à brutalidade a que eram submetidos os escravizados. Mesmo assim, sua denúncia vigorosa foi um ato de coragem.
(1) ROSÁRIO, Frei Antônio do. Frutas do Brasil. Lisboa: Oficina de Antonio Pedrozo Galram, 1702, p. 95.
(2) Ibid., p. 89.
(3) Local mencionado na Bíblia no livro do profeta Joel, capítulo 3, versículos 12 e 14, e associado à ideia do juízo divino: "Consurgant, et ascendant gentes in vallem Josaphat, quia ibi sedebo ut judicem omnes gentes in circuito. [...] Populi, populi in valle concisionis, quia juxta este dies Domini in valle concisionis."
(4) ROSÁRIO, Frei Antônio do. Op. cit., pp. 90 e 91.
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