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terça-feira, 19 de julho de 2011

Os senhores que mantinham seus filhos como escravos

Nossa sociedade dá como certo e natural o vínculo de afeto entre pais e filhos. Olha-se com horror para casos de abandono de recém-nascidos ou de pais idosos, embora esses fatos lamentáveis estejam cada vez mais frequentes. Mas, nem sempre foi assim. Em muitas sociedades costumava-se deixar viver apenas os bebês saudáveis (oh, Esparta!) e entre diversos povos os idosos, que já não tinham como contribuir com a vida comunitária, eram abandonados em lugares ermos, para morrerem longe das vistas de seus parentes. O fato é que séculos e séculos de moral judaico-islâmico-cristã nos conduziram a pensar no cuidado de pequeninos e velhos como atos de amor, além de estrita obrigação.
Desvios desse comportamento, no entanto, sempre existiram. É o caso dos senhores de escravos no Brasil que, tendo filhos com suas escravas, conservavam cativa a prole resultante desses relacionamentos. É o que sugere Antonil em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas (¹):
"E contudo eles e elas da mesma cor (²), ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte, porque com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias e talvez de seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam, e parece que se não atrevem a repreendê-los, antes todos os mimos são seus."
Faz, todavia, uma ressalva:
"... salvo quando por alguma desconfiança ou ciúme, o amor se muda em ódio, e sai armado de todo o gênero de crueldade e rigor."
Não cabe aqui, por hora, discutir eventual preconceito contido nessa asseveração do jesuíta Antonil. No século XIX Saint-Hilaire, naturalista francês, deparou-se com a mesma questão e registrou:
"É, pois, imperioso reconhecer que o número de mulatos cresceu, não somente pela união dos mestiços dos dois sexos, como, também, por um contingente de filhos de negras com brancos, pelo que se pode afirmar que existiam homens livres de nossa raça, de alma bastante cruel para deixar os próprios filhos sujeitos à escravidão." (³)
Ora, pensará o leitor, por que razão os todo-poderosos senhores de engenho não alforriavam os filhos provenientes dessas uniões com escravas? Maldade? Eventualmente, até podia ser, mas esse não era o único aspecto envolvido.
A lista de motivos para que a alforria não ocorresse incluía desde os ciúmes da esposa, passando por preconceito racial, constrangimento diante da sociedade (hipócrita o bastante para tolerar o adultério desses homens, o que às vezes podia incluir abusar sexualmente das escravas, mas incapaz de aceitar o reconhecimento dos filhos), receio de perturbar a "ordem" entre os escravos, (quase sempre submetidos a condições de vida extremamente degradantes), indo até à espinhosa questão do direito de herança, no contexto de uma sociedade absolutamente patriarcal, ao menos quanto ao princípio da autoridade.
Havia, porém, aqueles que, fosse por sentimento de humanidade, remorso ou, sabe-se lá, medo do inferno, deixavam em testamento o reconhecimento que não haviam ousado em vida, amparados no pressuposto de que aos mortos quase tudo se perdoa. Nesse caso, a tardia confissão vinha acompanhada de uma súplica aos descendentes no sentido de conceder alforria aos meios-irmãos, quase sempre sem qualquer obrigação, porém, de alguma outra providência. E isso não se restringia a filhos tidos com escravas africanas, mas passava também pelo caso de filhos provenientes de relações com índias escravizadas, como bem o demonstra a documentação do período colonial que ainda se conserva, principalmente no caso de São Paulo, onde os mamelucos (⁴) eram numerosos . Há testamentos nos quais simplesmente era ordenada a alforria, obviamente após a morte do testador, sem qualquer menção do motivo, o que poupava a família senhorial de maiores "constrangimentos", embora, sob essa situação, deva-se reconhecer que nem todos os casos incluíam problemas relativos à paternidade.

(1) Página 24 da edição original de 1711.
(2) Refere-se aos mestiços, no Brasil chamados mulatos.
(3) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília, Senado Federal, 2002, p. 224.
(4) Refere-se aos descendentes de brancos e índios.


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