quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Reflexões sobre a dignidade humana e os limites à ação do Estado

Peço licença, leitor, para uma breve interrupção na série de postagens A Arquitetura Sacra Paulista e Mineira nas Regiões Cafeeiras. Como se verá, essa pausa é por uma boa razão.
Você já parou para pensar no que é, efetivamente, a função do Estado na sociedade contemporânea? Ou talvez, dizendo melhor, no que deveria ser a função do Estado? No que justificaria sua existência? Pois vai aqui minha concepção sobre a matéria.

1) O Estado existe com a obrigação precípua de legislar e mediar as relações entre os cidadãos, com o propósito de preservar a integridade do tão falado e, ao mesmo tempo, tão incompreendido pacto social.
2) Ao Estado jamais deve ser atribuído o direito de intrometer-se na privacidade dos cidadãos. Não pode e não deve legislar sobre questões de opinião (seja essa opinião de caráter político, religioso, ou de qualquer outra natureza), nem sobre coisas que somente interessam aos cidadãos enquanto indivíduos, não resultando em dano aos demais. Tornando isso mais claro, quero dizer que ao Estado não compete interferir na área da moral privada. Quando muito, isso é terreno para a educação e a religião, sem que haja, porém, qualquer ação coercitiva. Isto posto e, para exemplificar o que digo, não cabe ao Estado legislar, por exemplo, no terreno da moral sexual de pessoas adultas, desde que na esfera das relações mutuamente consentidas, devendo, por outro lado, fazê-lo no sentido de proteger crianças e adolescentes, na medida em que se supõe que não estão ainda aptos a decidir nesse terreno por si mesmos. Um outro exemplo, talvez ainda mais elucidativo, é que o Estado tem a obrigação de proteger a vida dos cidadãos do eventual ataque de terceiros, e, por isso, deve punir um assassinato, mas não deveria ter o direito de criminalizar o suicídio, que é questão exclusivamente do âmbito pessoal, ainda que possa prestar assistência para evitar que, levado pelo desespero, um ser humano venha a optar pela "solução extrema".
3) Por último, deve o Estado preservar sua laicidade, sem qualquer relação promíscua que venha a interferir no livre exercício de suas legítimas atribuições.

Sim, leitor, são pouquíssimos os Estados que se enquadram nesse perfil, mas isso, a meu ver, é um ideal a ser perseguido e será tanto mais facilmente alcançado quanto maior for o grau de desenvolvimento de uma dada sociedade. Por outro lado, sempre que se concede ao Estado o direito de legislar em questões, não da ética (na relação dos cidadãos entre si), mas da moral (em assuntos do cidadão para consigo mesmo), os resultados são funestos. Está-se no caminho do totalitarismo, no qual os interesses do Estado são supremos e estarão sempre acima dos interesses dos cidadãos, seja individual ou coletivamente. Remova-se o véu dos Estados que o fazem e acabar-se-á encontrando, inevitavelmente, Auschwitz, Treblinka ou Sobibor, ainda que em escala (talvez) menor, mas não menos esmagadora da dignidade humana.
Ora, considerações de Realpolitik têm impedido, com uma certa frequência, que regimes detratores dos mais elementares direitos humanos sejam tacitamente condenados diante do cenário mundial, regimes que, sendo geralmente incapazes de proporcionar aos cidadãos condições de vida satisfatórias, conseguem apenas equilibrar-se na posição de autoridade com base no binômio corrupção e repressão, a primeira para perpetuar-se no poder através de farsas chamadas de eleições e a segunda para aterrorizar, calando as vozes que, num gesto supremo de coragem, tenham o atrevimento de levantar-se contra a situação vigente. E, nesse caldeirão de atrocidades, cabe quase tudo: mulheres são apedrejadas sob a acusação de adultério (onde estarão os homens adúlteros?), homossexuais são condenados à morte, ladrões banais são mutilados, jovens estudantes que protestam contra o regime são assassinados em plena via pública, parecendo não haver limites e, o que é pior, muitas vezes em nome da religião ou da pátria.
Dir-se-á que o apedrejamento é - perdoem-me o trocadilho - um costume da Idade da Pedra. Entretanto, pétreos são os cérebros que pretendem mantê-lo em nossos dias. Aliás, pergunto-me, lembrando Cesare Beccaria (*), se é razoável, para punir um assassinato, cometer outro. Mas isso já é outra questão. O que fica evidente é a necessidade de imediata reação da comunidade internacional civilizada e coesa no sentido de pressionar pelo fim de regimes fundamentalistas de qualquer tipo (estou longe de pensar apenas em questões religiosas), ou aquilo que é hoje um caso individual, ainda que emblemático, pode vir a ser um drama de proporções mundiais. O exemplo do passado é suficiente para assegurar que minhas preocupações não são descabidas.
 
(*) Dei Delitti e Delle Pene


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