quarta-feira, 31 de julho de 2024

Tesourinhas

Não se trata aqui, leitores, de instrumentos cortantes, e sim de uma avezinha muito simpática (Tyrannus savana), que o brigadeiro Cunha Matos avistou ao viajar pelo interior do Brasil pouco depois da Independência, na região do Rio Tesouras em Goiás: 
"[...] Ao lado esquerdo nasce um córrego, que encostado a um cordão de morros vai entrar no rio de Tesouras. Os caminhos desta marcha são extremamente pedregosos, e tudo deserto. [...]" (¹).
Foi então que passou a falar do pássaro que o encantou:
"[...] A geração humana parece estar morta por estes lugares, mas a ornitologia oferece uma raridade bem digna da meditação do naturalista. Neste deserto (²) há um pequenino pássaro preto [...], a cauda é forcada, e as penas compridas cruzam-se em forma de tesouras, e por este nome é conhecido. O passarinho quando bate as asas dá estalos com a cauda. [...] Esta pequena ave deu o nome ao rio e extinto arraial de Tesouras." (³) 
Felizmente a ave não é tão rara quanto Cunha Matos deve ter suposto. E, para leitores que não a conhecem, vão aqui duas fotos, que fiz há algum tempo.

Tesourinha

Tesourinha no ninho

(1) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 178.
(2) Cunha Matos falava em "deserto" com o sentido de lugar pouco habitado, não de uma região árida. 
(3) MATOS, Raimundo José da Cunha. Op. cit., p. 178.


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segunda-feira, 29 de julho de 2024

A Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil e os livros existentes na Bahia

Era 28 de julho de 1591. Nesse dia foram publicados na Cidade da Bahia, ou Salvador, primeira capital do Brasil, os Editos da Fé e da Graça, pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça, naquela que é conhecida como a Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil.
Nunca houve na colônia portuguesa na América um tribunal fixo do Santo Ofício. A Inquisição, por aqui, foi, por assim dizer, ambulante, com as "Visitações", que iam a um determinado lugar, apenas temporariamente. Na mesma data em que se publicaram os Editos da Fé e da Graça, com toda a solenidade que o lugar comportava, fez-se também pública uma ordem do visitador que demonstra muito bem até onde ia a repressão à liberdade de consciência nesses tempos que, felizmente, já vão longe: "[...] li  mais estes capítulos em que o dito senhor visitador mandava e declarava certas coisas, a saber, que lhe levassem todos os livros ou os róis de livros que tinham, e que não saísse ninguém da igreja antes de se acabar o ato [...]" (*).
Surpreendente? Não, porque vigorava, na época, o Index Librorum Prohibitorum, lista de livros proibidos, para publicação, posse ou leitura. Portanto, o visitador estava, legalmente, no direito de exigir conhecimento dos livros existentes na Cidade da Bahia e, se fosse o caso, de apreendê-los e destruí-los. É verdade que não deviam ser muitos os livros, porque pouca era a gente letrada para isso, mas, em tempos nos quais se julgava que ideias divergentes no campo religioso - as chamadas heresias - deviam ser extirpadas como se fossem doenças altamente contagiosas, a Inquisição começava por investigar onde poderiam estar as sementes do suposto joio. Ao visitador caberia descobrir, porém, que, no Brasil, muito mais frequentes que ensinos pouco ortodoxos, eram as práticas ofensivas às regras da Igreja, não só entre a gente comum, mas inclusive entre o clero da Bahia.

(*) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 12.


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sexta-feira, 26 de julho de 2024

Horário de refeições e descanso adotado por jesuítas no Brasil Colonial

Ordens religiosas sempre foram muito estritas no cumprimento dos horários prescritos nas respectivas regras. Sim, mas no Brasil Colonial talvez houvesse necessidade de adaptações. Sabe-se, por exemplo, que a catequese de indígenas praticada por jesuítas seguia uma rotina, não dos padres, mas dos ameríndios. Até mesmo os religiosos que viviam nos colégios jesuítas estabelecidos em terras portuguesas na América tinham uma rotina adaptada às condições locais, conforme se lê na Informação da Província do Brasil, escrita em 1585, presumivelmente por José de Anchieta, depois da observação um tanto curiosa de que o Brasil era "terra desleixada e remissa e algo melancólica" (¹):
"No verão se levantam os nossos às quatro e se deitam aos três quartos para as nove, e no inverno levantam-se às cinco e deitam-se aos três quartos para as dez. Comem o jantar no verão às dez e ceia às seis; e no inverno jantam às onze e ceiam às sete da noite." (²)
Recomendo aos leitores uma comparação com os hábitos dos brasileiros quanto ao horário das refeições, a partir da leitura de uma postagem já existente neste blog, "Horário das refeições no Império Romano e no Brasil Colonial". Não se deve esquecer, contudo, que nas reduções jesuíticas estabelecidas em outras áreas da América do Sul a rotina diária e semanal era, quanto ao trabalho e às práticas religiosas, estritamente observada, e, a quem se interessar pelo assunto, recomendo outra postagem, "A rotina de catequese e trabalho em reduções jesuíticas na América do Sul".

(1)  ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 425.
(2) Ibid.


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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Centauros

Na mitologia grega, centauros eram seres que tinham o corpo parcialmente humano - tronco, braços e cabeça - e o restante, de equinos. Os espanhóis comandados por Hernán Cortés que invadiram o Império Asteca devem ter-se achado mais ou menos centáuricos, ou os indígenas que os combatiam é que isto pensaram deles, ainda que nada soubessem sobre os seres mitológicos da Grécia Antiga.
O soldado Bernal Díaz del Castillo, que acompanhou Cortés em sua aventura de conquista e destruição do Império Asteca, registrou isto em suas memórias da guerra, ao falar de como os povos indígenas reagiam ao ver cavalos:
"[...] Vimos chegar os que combatiam a cavalo, e como aqueles esquadrões [indígenas] estavam envolvidos em nos fazer guerra, não perceberam tão prontamente os que vinham a cavalo, porque vinham pelas costas; e como o campo era plano e os cavaleiros montavam muito bem, e alguns dos cavalos eram agitados e corriam muito, deram-lhes uma boa carga, usando as lanças como queriam (¹) e como a ocasião requeria [...]. Assim os índios acreditaram que o cavalo e o cavaleiro formavam um só corpo, porque nunca antes haviam visto cavalos [...]." (²) 
O caso é que os homens que acompanhavam Cortés nada tinham de centauros, não eram seres mitológicos e muito menos divinos. Como os povos indígenas logo iriam descobrir, eram bastante humanos, com os piores objetivos fundados na cobiça e na sede por enriquecimento rápido. Segundo Bernal Díaz del Castillo, pelo menos oitocentos indígenas morreram nesse que foi o primeiro combate na guerra de conquista. É pouco provável que alguém tivesse se dado ao trabalho de contar os corpos dos que morreram, mas, como gente prática em guerras, talvez não errassem na estimativa, ainda que seja possível admitir algum exagero para valorização da façanha.

(1) A cavalaria costumava ir ao combate tendo lanças como arma, que cada cavaleiro era treinado a conduzir. 
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Como era a comitiva que conduzia diamantes do Distrito Diamantino ao Rio de Janeiro durante o governo joanino

Comboio de diamantes, de acordo com Rugendas (¹)

A segurança no transporte de ouro e diamantes que pertenciam à Coroa, desde as minas até o Rio de Janeiro, devia, necessariamente, ser reforçada. Mas o que significaria isso no tempo em que as estradas eram pouco melhores que trilhos, cercadas por vastidões de mato e árvores, onde era muito fácil que gente de más intenções se escondesse, sabendo que a força militar que fazia a escolta nem sempre era tão numerosa e equipada como  a situação requeria?
Há um relato interessante do barão de Eschwege que explica muito bem como era a comitiva que escoltava os diamantes tão desejados pela Coroa. 
"A produção anual é encerrada em uma bela caixa forrada de marroquim vermelho, preso por tachas amarelas. É nessa caixa que os diamantes são enviados para o Tesouro do Rio de Janeiro, acompanhados durante toda a viagem por um empregado escolhido pelo Intendente, que lhe dá por escolta forte destacamento do corpo de cavalaria e dos pedestres. 
A caixa dos diamantes vai dentro de uma canastra, que o comissário leva consigo. Alguns cavalarianos partem à frente, a uma certa distância, seguidos logo depois por alguns pedestres, que conduzem a mula, coberta de uma manta onde se veem as armas reais. Logo atrás seguem outros pedestres, precedendo imediatamente o comissário, que nunca perde de vista o cargueiro e é seguido por novos cavalarianos, que fecham a marcha." (²)
Eschwege deve ter examinado o assunto com os próprios olhos porque veio ao Brasil por solicitação do governo joanino (³), e permaneceu até o início de 1821, tempo suficiente, portanto, para verificar o que acontecia. Talvez tenha achado graça na pompa dessa tensa remessa anual, quando, mais importante que qualquer outra coisa, seria zelar pela segurança do que se transportava. O contrabando de diamantes, contudo, geralmente ocorria por outras rotas. Era do local de extração que as pedras extraviadas sumiam, para que Sua Majestade jamais pusesse nelas as suas reais mãos.

(1) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 497.
(3) Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777 - 1855) era especialista em minas. A ideia de D. João era que estudasse o que podia ser feito para reativar a produção aurífera no Brasil, que, nesse tempo, estava em notável declínio. 


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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Para ser inquisidor

Requisitos para quem pretendesse ser inquisidor, de acordo com o Regimento de 1774


Embora defendida por muitos e apoiada por monarcas que se beneficiavam dela, a Inquisição nunca foi propriamente amada. Quando foi publicado, sob as ordens do cardeal da Cunha, o novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal em 1774, a Inquisição já não se impunha com tanta facilidade como nos dois séculos precedentes; em consequência, o dito Regimento era mais brando, ao menos em relação ao de 1613. Contudo, era exigente quanto a quem poderia ser inquisidor, conforme se vê no Livro I, Título II:
  • Os inquisidores deveriam "ser licenciados por exame privado em alguma das Faculdades de Teologia, Cânones ou Leis";
  • Deveriam ter "ao menos trinta anos de idade";
  • Deveriam ser "pessoas nobres e de Ordens Sacras";
  • Deveriam ter, anteriormente, "servido de deputados" no Santo Ofício, tendo "dado provas de prudência, letras e virtudes, assim para a decisão das causas [...] como para nelas se haverem com a precisa inteireza e igualdade";
  • Deveriam ser "pessoas de tanta autoridade, que correspondendo ao muito de que delas confiamos, desencarreguem no seu ministério a nossa consciência e a sua", dizia o cardeal da Cunha. 
Não há dúvida de que a Inquisição, já sob a crítica e influência do pensamento iluminista do Século XVIII, procurava assumir o aspecto de tribunal justo e piedoso. Mas era, ainda, a Inquisição, e, como tal, um instrumento poderoso de censura à liberdade de pensamento e consciência, limitando, por consequência, também a liberdade de expressão.  


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quarta-feira, 17 de julho de 2024

Introdução da varíola entre os astecas e outros povos indígenas

A varíola não era conhecida na América antes da chegada de europeus. Foi assim, segundo Bernal Díaz del Castillo (¹), que a doença se introduziu entre indígenas, ao tempo em que Montezuma, imperador Asteca, caíra prisioneiro de espanhóis, e que Hernán Cortés se vira obrigado a combater os homens de Pánfilo de Narváez, que vinha contra ele:
"[...] Voltemos agora ao Narváez e a um negro que trazia cheio de varíolas, [..] que foi causa que toda a terra se enchesse delas, de que se seguiu grande mortandade, porque, conforme diziam os índios, nunca antes tinham tido tal enfermidade, e como não a conheciam, lavavam-se muitas vezes, e [...] morreram muitos deles." (²) 
Bernal Díaz também relatou que a varíola foi responsável pela morte de muitos chefes indígenas:
"[...] como naquele tempo a varíola andou tão comum na Nova Espanha, morreram muitos caciques [...]" (³).
Sem qualquer imunidade contra a terrível doença, os indígenas morriam depois de muito sofrimento. Vê-se, portanto, que não só de cavalos, armas de fogo e soldados se fez a chamada "conquista" do Império Asteca e de outros povos da mesma região. A introdução, intencional ou não, de novas doenças, foi muito importante para debilitar a resistência dos povos nativos em sua tentativa de conter os invasores espanhóis. 

(1) Soldado a serviço de Hernán Cortés, o autoproclamado conquistador do México. 
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid.   


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segunda-feira, 15 de julho de 2024

Nomadismo indígena

No poema A Confederação dos Tamoios, Gonçalves de Magalhães, poeta brasileiro do Século XIX, dedicou alguns versos ao nomadismo indígena, que ele entendia como produto da liberdade:

"Como preza a andorinha a liberdade.
E por instinto sói cantar errante,
Errante fabricar ligeiros ninhos;
E se no aéreo cárcere encerrada
Triste pende a cabeça, encolhe as asas,
Cala o trinado que soltava livre,
Rejeita tênue grão, suspira e morre:
Não menos estes filhos das florestas
Errante vida e liberdade estimam.
Ora aqui, ora ali erguem choupanas,
E onde frondosas árvores estendem
Pejados ramos de gostosos frutos
Aí é seu país, aí se abrigam." (¹)

Apenas umas poucas considerações:
  • Nem todos os povos indígenas eram nômades;
  • Muitos eram seminômades, porque plantavam, também, alguns alimentos, e viviam em um dado lugar enquanto aguardavam a colheita;
  • Havia grupos com aldeias estabelecidas, cercadas de uma espécie de paliçada, e mais duradouras, portanto;
  • O nomadismo se explica, em parte, porque a maioria dos povos indígenas tinha poucos pertences a transportar. 
De qualquer modo, Gonçalves de Magalhães não errou em atribuir-lhes o gosto pela liberdade. Indígenas tinham-no, todos devemos ter. Característica da humanidade, não apenas dos povos indígenas do Brasil. 

Indígenas do Brasil depois de caçar (²)

(1) MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. A Confederação dos Tamoios. Rio de Janeiro: E. T. Dous de Dezembro, 1857, p. 13.
(2) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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sexta-feira, 12 de julho de 2024

O que era uma cidade para os romanos

Muitos povos da Antiguidade passaram, gradualmente, da condição de nômades ou seminômades a sedentários, à medida que se fixaram em uma localidade e constituíram espaços urbanos. Embora nem todas as cidades do passado fossem iguais, sob alguns aspectos as características coincidiam. Marco Túlio Cícero (¹), político, escritor e orador romano, definiu assim o que entendia como uma verdadeira cidade, e é provável que tivesse Roma em mente, quando escreveu:
"Este ajuntamento é, primeiro, o lugar de moradia, escolhido pela situação favorável, e então fortificado, e recebe, pela construção de residências, edifícios públicos e templos, a denominação de cidade [...]." (²)
Vale a pena dissecar esse pequeno texto de Cícero. Povoações eram formadas quando um grupo de pessoas decidia viver em vizinhança, ou seja, perto umas das outras, e não isoladas. Por que o fariam? Talvez logo percebessem que era mais fácil a defesa contra outros grupos quanto mais numerosos fossem, e que, além disso, podiam prestar ajuda mútua na agricultura e cuidado de rebanhos. Havia vantagem, também, e isso não é pouco relevante, quando se vivia em um grupo numeroso, por maiores possibilidades para um casamento - os romanos antigos que o dissessem, se é que aquela história do rapto das sabinas é verdade. 
Para formar uma povoação, contudo, era preciso sabedoria na escolha do lugar. Devia haver um suprimento confiável de água, pastagens para os animais, campos para cultivo. Também seria bom não ser lugar de temperaturas extremas, nem muito perto de outras povoações, para evitar disputas por território, tanto mais prováveis se, por acaso, na área estivessem povos caçadores. 
Depois que o lugar era escolhido, era preciso pôr mãos à obra e construir algum tipo de fortificação, que podia ser, no princípio, uma simples paliçada, mas que, com o passar do tempo, à medida que a população aumentava e cresciam as forças, devia ser substituída por uma verdadeira muralha. Algumas cidades da Antiguidade tiveram sistemas complexos de muralhas - Babilônia e Jerusalém, por exemplo - e Roma também teve as suas. 
Supõe-se que, com essas características, a cidade deveria prosperar. O gradual aumento da riqueza permitiria a construção de melhores casas e de templos, porque a religião foi, na Antiguidade, um instrumento importantíssimo para o fortalecimento de vínculos políticos e sociais. Prédios públicos, finalmente, como um fórum ou outro lugar de reunião dos cidadãos e de exercício da justiça, deveriam ser erguidos como símbolo do orgulho cívico dos moradores. A isso os romanos, segundo Cícero, davam o nome de cidade. 

(1) 106 a.C. - 43 a.C.
(2) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica. c. 51 a.C. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 10 de julho de 2024

Boiadas no sertão

Pecuária colonial no Nordeste brasileiro


Era assim no Brasil Colonial, particularmente no sertão nordestino: boiadas com duzentas e até trezentas cabeças eram conduzidas à procura de lugar em que fosse possível achar pastagem, e onde houvesse gente interessada na compra dos animais para abate. 
André João Antonil (¹) fez a seguinte descrição do modo como as boiadas seguiam pelo sertão:
"[...] Os que as trazem, são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se, indo uns adiante cantando, para serem desta forma seguidos do gado; e outros vêm atrás das reses tangendo-as e tendo cuidado, que não saiam do caminho e se amontoem. [...]" (²)
O mesmo autor passa, então, a descrever como eram as marchas de homens e gado pelo sertão, enfrentando o cansaço e a escassez de água:
"[...] As suas jornadas são de quatro, cinco e seis léguas (³), conforme a comodidade dos pastos, onde hão de parar. Porém onde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem, onde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça e nadando, mostra às reses o vau, por onde hão de passar." (⁴)  
No auge da produção açucareira voltada à exportação, a pecuária nordestina era vista como atividade secundária e complementar; mas o declínio do açúcar, em parte pela concorrência estrangeira, ao mesmo tempo em que a extração aurífera se expandia no interior do Brasil, fez com que a pecuária, que se adaptara tão bem às difíceis condições naturais do sertão, crescesse em importância, porque era preciso fornecer carne para alimentar os famintos do ouro.

(1) Pseudônimo do jesuíta Giovanni Antonio Andreoni.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 188 e 189.
(3) No Brasil Colonial, uma légua correspondia a aproximadamente seis mil e seiscentos metros.
(4) ANTONIL, André João. Op. cit., p. 189.


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segunda-feira, 8 de julho de 2024

Alfeloeiras

Como a palavra quase não tem uso há muito tempo no Brasil, comecemos por explicar que alféloa é um doce, um tipo de bala feita com açúcar, trabalhado até ficar completamente branco, semelhante às famosas balas de coco artesanais, que muita gente aprecia. 
Coisa curiosíssima: segundo as Ordenações do Reino, leis que vigoravam em Portugal e, no Brasil, durante os tempos coloniais, a venda de alféloas e outros doces e confeitos era trabalho reservado exclusivamente às mulheres. Homens que se intrometessem nesse ofício deviam ser punidos com severidade. É o que se lia no Livro V, Título CI:
"Mandamos que nenhum homem, nem moço, de qualquer qualidade que seja, venda alféloas, nem obreias, em nenhuma parte de nossos Reinos, publicamente, nem escondido. E o que o contrário fizer, seja preso e açoitado publicamente com baraço e pregão. Porém, se algumas mulheres quiserem vender alféloas e obreias, assim nas ruas e praças, como em suas casas, podê-lo-ão fazer sem pena." 
Na época, com suas quase infinitas restrições e imposições sociais, entendia-se que havia poucas atividades profissionais que pudessem ser exercidas por mulheres que precisassem ganhar o próprio sustento, daí a "reserva de mercado" que lhes era feita, tanto em fazer como em comercializar confeitos. É nesse quadro que se insere Joaninha, menina órfã, personagem criada por José de Alencar em As Minas de Prata. Alencar fez dela uma alfeloeira, ou seja, vendedora de alféloas, nas ruas e praças de Salvador, lá pelos fins do Século XVI e início do XVII:
"Ninguém sabia de seus pais; mas quase toda a gente a conhecia por causa de sua profissão de alfeloeira ou mercadora de doces e confeitos, que ela vendia pelas ruas numa cestinha de palha; nesse mister ocupava todo o dia, percorrendo de uma extrema à outra a cidade do Salvador [...]." 
Quem se aventura a ler As Minas de Prata descobre que seu autor faz uma pausa no fluir da obra literária para um pitaco em assunto de legislação:
"Sentiram os antigos legisladores a necessidade de garantir a mulher contra a indecorosa concorrência do homem na exploração dessas indústrias, femininas por sua natureza. [...].
Por que não será aproveitada na legislação moderna tão salutar disposição?
A liberdade do trabalho tem limites; e nenhum mais justo e sagrado do que a proteção devida pela sociedade às órfãs do século e pupilas da lei. Se a especulação do homem não disputasse à mulher o seu direito ao trabalho, quem sabe quantas misérias não seriam remidas do vício? [...]" 
Alencar estudara Direito em São Paulo e Olinda, e nem todos sabem, mas foi político durante o Império, nas fileiras do Partido Conservador. Nota-se que sua filiação partidária não poderia mesmo ser outra.


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sexta-feira, 5 de julho de 2024

Cegonhas da Tessália

Uma dentre as várias espécies de cegonha
É uma dessas tolices populares que, no entanto, têm alguma graça: quando um bebê nasce, se diz que foi trazido pela cegonha. Isto é coisa dos tempos em que não se contava às crianças como os bebês de fato eram concebidos e, diante de perguntas indiscretas, era preciso inventar uma boa história. Em algumas culturas se dizia aos pequenos que haviam nascido de um repolho...
Hoje essas explicações já não têm muita justificativa, mas ainda se ouve, de um casal que aguarda o nascimento de um filho, que os dois "estão esperando a cegonha". Se esperarem por ela, provavelmente não terão filho nenhum.
Na Antiguidade, as cegonhas foram muito estimadas, mas por outra razão. Conforme Plínio, O Velho (¹), talvez o maior estudioso das ciências entre os romanos, as serpentes eram "numerosas na Tessália (²), e, porque as cegonhas as destruíam, eram muito apreciadas, de modo que se considerava que matar uma cegonha merecia pena capital, idêntica à atribuída aos homicidas" (³). Haveria lugar melhor que a Tessália para uma cegonha viver feliz?

(1) 23 d.C. - 79 d.C. 
(2) Região da Grécia.
(3) PLÍNIO, o Velho. Naturalis historia, Livro X. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 3 de julho de 2024

Cláudio Manuel da Costa e a procura do ouro nas Gerais

Cláudio Manuel da Costa foi um dos integrantes mais notáveis da Inconfidência Mineira. Nascido em Minas Gerais em 1729, foi ao Reino, estudou em Coimbra e voltou ao Brasil, para viver e atuar como advogado e escritor em Vila Rica. 
A capital das Minas Gerais nesse tempo era não apenas um centro urbano importante, mas, para os padrões da época, um polo cultural significativo. Ali se lia muito, se estudava, se discutia. A riqueza proporcionada pelo ouro permitiu que a arquitetura sacra se desenvolvesse e, apesar de guiada pela estética barroca, ostentasse, também, algumas características nacionais. Não é surpreendente, portanto, que também questões políticas fossem ventiladas. Mesmo proibidas, as obras de autores iluministas acabavam chegando a quem sabia o francês e, de mão em mão, circulavam e iam encontrar abrigo junto às cabeças pensantes da Capitania. 
Como sempre, é preciso escrever um "porém": porém a produção aurífera entrava já em declínio, ainda que a Corte, distante, não se desse conta disso e esperasse receber os mesmos quintos de sempre. Mas era impossível, e temia-se a "derrama", cobrança forçada dos impostos atrasados. A partir daí, fermentou a revolta, que não passou de palavras e projetos. Delatores correram ao governador, visconde de Barbacena, e deram com a língua nos dentes. Desses, o mais famoso é, de longe, Joaquim Silvério dos Reis, mas é certo que não foi o único. O governador agiu rápido, os supostos conjurados foram presos. Entre eles, estava Cláudio Manuel da Costa. Alegou-se que, em 4 de julho de 1789, cometeu suicídio na prisão, mas desde sempre houve questionamentos. Talvez tenha sido assassinado, e parece que havia mesmo quem tivesse motivos para tanto. É por isso que, ao contrário de outros inconfidentes de 1789, não foi levado ao Rio de Janeiro para o processo conhecido como Devassa. De um modo ou de outro, morreu antes.
Entre as obras de Cláudio Manuel da Costa está o poema Vila Rica, escrito em 1773 sob o pseudônimo de Glauceste Satúrnio, conforme era costume na época. Nestes versos, o autor descreve a busca por ouro no Brasil Colonial, salientando a pouca experiência em mineração dos homens que escavavam o solo:

"A continuar a marcha se dispunha
O herói, que um vivo zelo testemunha
Em todos os que o seguem; repartidos
Aqueles a quem são mais conhecidos
Os sertões pela margem se espalhavam
À direita do rio e se empregavam
Em socavar a terra, em diligência
Do metal, de que têm verde experiência." 

Em outro trecho, o poeta retrata o trabalho dos escravos na extração do ouro:

"Passa este quadro, e logo outra pintura
Nova imagem propõem, nova figura,
Que retrata uns mortais de negras cores,
Regando o aflito solo de suores
À força das fadigas, com que cavam
As brutas serras, e nos rios lavam
As porções extraídas, separando
As pedras do metal, que andam buscando."

Era essa, em poesia, a realidade das minas, que Cláudio Manuel da Costa presenciava, a todo instante em Vila Rica, a que hoje chamamos Ouro Preto.  


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segunda-feira, 1 de julho de 2024

Tempo para os deveres religiosos dos missionários que iam ao sertão

Relógios de pulso são coisa relativamente recente na história da humanidade. Mesmo relógios com ponteiros para minutos não contam mais que alguns séculos. Por muito tempo, já era moderno o bastante, na torre de uma igreja ou na sede da administração municipal, ter um relógio capaz de marcar as horas. Afinal, a urgência na contagem do tempo é coisa que caminha ao lado do desenvolvimento tecnológico e, por consequência, da aceleração no ritmo das atividades humanas.
No Brasil, missionários jesuítas adaptavam sua rotina às necessidades da catequese de indígenas, embora os que viviam nos colégios conservassem a rotina prevista na regra da Ordem. Precisavam, contudo, ter algum tipo de relógio quando, indo ao sertão em suas missões, ainda assim cumpriam seus deveres religiosos. Por informação do padre André de Barros, sabemos qual o procedimento adotado pelo também jesuíta padre Antônio Vieira (¹), nas ocasiões em que ele e outros missionários estavam longe dos respectivos colégios:
"Ainda nas missões, ou caminhando, ou navegando só com os índios, aos tempos determinados para a oração e exames, tocava ele [Antônio Vieira] a campainha, que sempre levava, e relógio de areia para medir o tempo; e como se estivesse nos colégios, observava a obediência e regularidade deles." (²)
Um relógio de areia não seria muito útil para nós, hoje, a não ser como decoração. Mas bastava para os padrões do Século XVII, e dificilmente deixaria de funcionar, daí porque ainda era o preferido de muita gente.  

(1) 1608 - 1697. 
(2) BARROS, André de, S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 592.


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