Estou, com esta postagem, procurando atender, ao menos em parte, à multidão de leitores que têm lotado a caixa de buscas do blog com pesquisas relacionadas à "história do bolo de milho". Explicando o título, direi que é mesmo histórias e bolos no plural porque, como se verá, a tradição culinária da humanidade é sempre muito diversificada, e abarca, neste caso, uma multiplicidade de práticas que levam ao preparo de comida, ora doce, ora salgada, ora nem uma coisa e nem outra, mas sempre chamada de bolo de milho. Então, leitor, peço-lhe, se de fato está interessado no assunto, que tenha a paciência de ler esta longa postagem em sua totalidade, pois, ao fim e ao cabo, acabará por divertir-se (perdoe-me a aliteração - e a redundância).
O milho é um vegetal que, ao que se sabe, é originário do Continente Americano. Independente de ser realmente assim, hoje seu cultivo é generalizado em muitas partes do mundo, de modo que autores portugueses já reportavam seu uso desde o século XVI, nas várias regiões que, naquela época, constituíam o império lusitano ultramarino. O que veremos é uma amostragem do que escreveram e que, de algum modo, sobreviveu até nossos dias.
No Arquipélago de Cabo Verde, por exemplo, escreveu-se que "do milho, ou comem as massarocas assadas, e também cozidas em leite azedo (a que chamam dormido), - ou depois de descascado o grão, pilado em pilão, e sacudido em um balaio, tirado o farelo, separam o xarém, espécie de rolão, que comem cozido com ervas, ou com feijão, ou com abóbora, - e da farinha fazem as suas batangas, bolos chatos cozidos no borralho como os bolos de milho, que se usam na Província do Minho, - e também dele preparam os cuscuz cozendo a farinha do milho depois de amassada em uma panela vazia furada no fundo posta sobre um tacho de água a ferver: depois de bem recozida a massa com este vapor se corta em talhadas, e se põe em panos a secar ao sol, e depois se guarda para toda a semana." (¹)
Veja, leitor, nesse trecho o autor afirma que na região do Minho, em Portugal, se fazem bolos semelhantes, mas não há mais detalhes quanto ao preparo ou ao sabor. Porém uma obra de culinária que fez sucesso entre os cozinheiros lusos no século XIX talvez possa nos ajudar na questão, pelo menos no que se refere à técnica de preparo:
"O bom pão de milho faz-se também da flor da farinha do mesmo milho, porém não deve ficar a levedar da véspera como o trigo, porque se azedaria, basta principiar de manhã cedo, e estará pronto para o jantar.
Sendo bolo quente para comer com mel, arrobe, ou manteiga, então basta desfazer a farinha em água morna dentro de uma pequena almofia, ou grande tigela, dar-lhe a precisa consistência, formar o bolo espalmado da espessura de um dedo, embrulhá-lo em duas folhas de couve, e depois cozê-lo no tabuleiro, como as outras coisas supraditas." (²)
Há também referência aos alimentos preparados com milho no Timor, o que pode revelar a utilidade que os colonizadores atribuíam a este cereal, em parte possivelmente pela sua adaptabilidade a outros solos, distantes de seu terreno de origem. Lemos que "o habitante de Timor é de uma frugalidade pasmosa. Em marchas e na guerra sustenta-se um dia inteiro com um punhado de farinha de milho e uma pouca de água, ou com uma apa, bolo de farinha de milho envolto em palha de bananeira. Quando está entregue aos ócios da paz, o seu sustento é menos parco, e consiste em milho quebrado cozido com ervas. Quando lhe falta o milho substitui-o pelo feijão; mas há uma qualidade deste legume, coto, que tem sido fatal a muitos timores, por ser veneno que mata em poucas horas, quando não é bem preparado." (³)
Agora, depois de fazer uma breve excursão pelos usos relacionados a bolos de milho em colônias portuguesas na Ásia e na África, além do uso na Metrópole, cabe verificar o que faziam do milho os nativos do Continente Americano. Encontrei dois textos muito interessantes. Vamos ao primeiro, no qual o autor relata um uso sui generis de uma variedade de bolo de milho:
"Nos funerais poucas cerimônias se observavam; abriam os parentes uma cova, acompanhavam até lá o corpo, dividiam entre si o espólio do finado, e esqueciam-no. Com singular costume porém manifestavam os Retoronhos, Pechuyos e Guarayos o seu sentimento pelos mortos: consumido o corpo, desenterravam os ossos, e reduziam-nos a pó, de que misturado com milho preparavam um bolo, oferecer ou participar do qual era o maior sinal de amizade.
Antes de saberem o que comiam foram alguns dos primeiros missionários regalados com este pão de família." (⁴)
Recupere o fôlego, leitor, e vamos a um caso relacionado a indígenas especificamente do Brasil. Quem fez o relato foi Botelho de Sampaio, em carta ao capitão-general de São Paulo, ao que parece no século XVIII, narrando sua própria experiência em travar contato com uma tribo indígena:
"Trouxeram milho, que ofertaram e da mesma forma bolos de milho, tão asquerosos, que só o desejo de lhes agradecer tirava o horror de os aceitar, sendo dificultoso achar meios de dilatar o comê-los, tanto instavam que o fizéssemos." (⁵)
Sim, o choque cultural pode trazer consigo situações algo embaraçosas...
Indo adiante, e já a caminho do final, quero referir-me a um relato que fez Gabriel Soares de Souza em 1587. Ora, tão distante no tempo, esse autor talvez traga a referência mais próxima daquilo que nós, hoje, conhecemos por bolo de milho, incluindo no preparo o uso de ovos e açúcar. Veja por si mesmo:
"Há outra casta de milho, que sempre é mole, do qual fazem os portugueses muito bom pão e bolos com ovos e açúcar. O mesmo milho quebrado e pisado no pilão é bom para se cozer com caldo de carne, ou pescado, e de galinha, o qual é mais saboroso que o arroz, e de uma casta e outra se curam ao fumo, onde se conserva para se não danar; e dura de um ano para outro." (⁶)
Já perguntei a vários fornecedores dos famosos bolos de milho de Piracicaba e de Águas da Prata, e todos eles juraram pelo céu, pela terra e pelos mais recantos do universo que suas receitas não incluem ovos. Mas seria demais pedir àqueles cujo ganha-pão é o bolo de milho, que revelem seus segredos. O que percebemos, depois de percorrer esses vários documentos de distintas épocas, é que o bolo de milho tem, em cada cultura, sua própria tradição, de acordo com os hábitos e preferências já muito arraigados, que fazem com que uma parte da humanidade ame aquilo que outra detesta e até acha nojento. Esse fato não ocorre, nem de leve, apenas com bolos de milho.
Vale a mesma coisa em relação ao curau. Em 1804, um alferes do regimento regular de Vila Rica, chamado Joaquim José Lisboa, publicou um poema, ao qual denominou Descripção Curiosa, exaltando o que se via no Brasil e incluindo, naturalmente, os comes e bebes. Como amostra, cito duas estrofes, mantendo, na escrita, tanto quanto possível, o falar regional:
"Temos a canjica grossa,
Pirão, bobôs, carajés,
Temos os jocotupés,
Orapronobis, tutus.
Também fazemos em tempo
Do milho verde o corá,
Mojangués e vatapá,
Pés de moleque e cuscuz." (⁷)
Em duzentos anos, apenas mudou-se o nome - de corá, para curau. Quanto ao sabor, vai cada vez melhor.
(1) _____________ Ensaios sobre a Estatística das Possessões Portuguesas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844, p. 106.
(2) _____________ Arte do Cozinheiro e do Copeiro. Lisboa: Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1845, p. 307.
(3) CASTRO, Affonso de. As Possessões Portuguesas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867, pp. 221-222.
(4) SOUTHEY, R. Historia do Brasil vol. 5. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, pp. 264-265.
(5) REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO BRASIL, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Laemmert, 1855, pp. 272-273.
(6) REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO BRASIL, vol. XIV. Rio de Janeiro: Laemmert,1851, p. 173.
(7) Florilégio da Poesia Brasileira, vol. 2. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850, pp. 558 e 559.
Veja também: