quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Quando começam os festejos do Natal

Estamos no final de outubro e já vejo lojas oferecendo artigos natalinos. Se isto continua, chegará um tempo em que o ano todo será Natal, e, com isso, perde-se a graça da festa. É mais ou menos o que acontece em relação à Páscoa, quando ovos de chocolate são postos à venda desde fins de janeiro. 
No dizer de Joaquim Manuel de Macedo, referindo-se ao Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, era esta a duração dos festejos de Natal durante o Século XVIII, e mesmo no XIX:
"As festas de Natal estendiam-se, como ainda hoje, do dia 25 de dezembro do ano que acabava até 6 de janeiro do novo que começava. Nelas, porém, predominavam os dias de Natal, de Ano Bom e de Reis." (¹)
De acordo com Macedo, os festejos de Natal eram, então, assinalados por missas, ceias e presépios:
"O dia de Natal era notável pela missa chamada do galo, pelas ceias alegres que a precediam (²) e que tão famosas eram, e pelos presépios que se abriam ao público, e a que concorriam chusmas de visitadores." (³)
Não havia muita novidade à disposição de quem vivia no Rio de Janeiro - como em todo o Brasil - durante o Século XVIII. Por isso, os presépios que anualmente eram abertos, talvez os mesmos, ano após ano, eram tão atraentes. Macedo referiu a existência de três, que mais se destacavam no Rio de Janeiro:
"No fim do Século passado (⁴), os presépios mais estimados do Rio de Janeiro eram três. O da ladeira de S. Antônio, que os religiosos franciscanos apresentavam anualmente. O do convento da Ajuda, mais pequeno [sic] que o precedente talvez, porém mais curioso e atrativo, porque ao mesmo tempo em que se viam as figuras do presépio, se ouviam cantos religiosos e análogos ao assunto, entoados pelas freiras. E incontestavelmente superior a ambos, o presépio do Livramento, na casa que fica ao lado direito da capela de N. S. do Livramento.
Estes presépios conservavam-se abertos e patentes ao público em todas as noites, desde a do Natal até a de Reis." (⁵) 
Uma coisa é certa; os festejos de Natal eram, em essência, religiosos. O elemento comercial não havia, ainda, se infiltrado neles.

(1)  MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 389.
(2) A missa do galo era celebrada à meia-noite; portanto, as ceias de Natal vinham antes dela.
(3) MACEDO, Joaquim Manuel de. Op. cit., p. 389.
(4) Referia-se ao Século XVIII.
(5) MACEDO, Joaquim Manuel de. Op. cit., p. 389.


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segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Dois caminhos

O conceito de que há dois caminhos diante de qualquer pessoa que nasce neste mundo, um que leva ao mal, outro ao bem, ocorreu em várias culturas do passado. Os gregos, por exemplo, também refletiram sobre essa ideia, conforme se vê em Os Trabalhos e os Dias, obra atribuída a Hesíodo, poeta grego que teria vivido entre os Séculos VIII e VII a.C.:
"É fácil fazer o que é mau, porque o caminho para isso não só é curto como está perto de nós; para fazer o que é certo, o trabalho é grande, e até os deuses lutam para alcançá-lo. O caminho para a virtude é longo e cheio de obstáculos, mas, quando alguém se aproxima do cume, vai-se tornando mais fácil." (*)
Dilema ético altamente complicado para toda a humanidade, que ficará mais complicado ainda se for introduzido um grupo de questões inquietantes: O que se considera mau ou bom é o mesmo em qualquer cultura? E quanto à virtude? Quase certa de que você que lê terá respondido com um não, então, por que não? Existem valores absolutos, válidos para toda a humanidade? Fique, leitor ou leitora, com esses pensamentos. Boas ideias podem se tornar comentários logo abaixo, sim?

(*) HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Arraial ou povoado

O que era um arraial ou povoado nos Séculos XVIII e XIX? Hércules Florence (¹) fez esta descrição:
"Ver um povoado no Brasil, é vê-los quase todos. Uma praça oblonga com a igreja e a cadeia nos lados estreitos; uma ou duas ruas de cada lado traçadas a cordel; casas baixinhas, eis o que compõe um arraial." (²)
Florence estava certo e estava errado. Estava errado, porque a expedição da qual participou, não percorreu o Nordeste brasileiro e, portanto, sua definição não dá conta de todas as particularidades. Não viu, também, arraiais em Minas Gerais, onde o arruamento era completamente irregular, plantado no ritmo do estabelecimento de moradias para os que trabalhavam na mineração. Mesmo os que cresceram e se tornaram cidades de respeito - Ouro Preto é um ótimo exemplo - conservaram características herdadas desses dias em que a mineração começava e a coisa mais importante que um homem julgava fazer era procurar ouro e conseguir dele tanto quanto pudesse, sem se importar em demasia com outras questões que pudesse resolver mais tarde. 
Mas Hércules Florence também estava certo, se considerarmos os vilarejos por onde passou a Expedição Langsdorff, da qual participou. Nascidos como resultado da extração aurífera no centro-oeste brasileiro, nem todos prosperaram. Mais comum do que se imagina era que, tão logo o ouro superficial se esgotasse, os mineradores abandonavam o arraial e seguiam adiante, indo explorar outro local. Disso resultaram os vilarejos fantasmas, com casinholos vazios, quase sem habitantes, ou sem nenhum, mesmo. 

(1) Francês, Hércules Florence atuou como desenhista na Expedição Langsdorff (que saiu de Porto Feliz - SP em 22 de junho de 1826, e se estendeu até 1829). 
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829, trad. Visconde de Taunay. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 188.


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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cocos e coqueiros

Coqueiro
Não, senhores e senhoras, o coqueiro (Cocos nucifera) não é nativo do Brasil. Isto os surpreende? Pois fiquem sabendo que portugueses, em suas viagens oceânicas nos Séculos XV e XVI, toparam com coqueiros no Sudeste asiático. Levados para outras regiões, se adaptaram tão bem a algumas delas que até parecem nativos, embora não sejam (¹). Foi o que aconteceu no Brasil. 
Os cocos deviam ser pouco conhecidos na Europa por volta da terceira década do Século XVI, porque Antonio Pigafetta, um italiano que participou da primeira viagem conhecida de circum-navegação, teve o cuidado de descrevê-los minuciosamente nos registros que fez da expedição, para que aqueles a quem pretendia entregar seus escritos tivessem uma ideia correta de como eram os frutos produzidos pelos coqueiros, que atraíram a atenção dos navegadores que acompanharam Fernão de Magalhães nas ilhas por onde passaram, em busca das Molucas (²):
"O fruto do coqueiro tem o tamanho da cabeça de um homem, e pode ser até maior. A parte exterior é verde, tem dois dedos de espessura e é dotada de fibras que servem para se fazer cordas com que [os ilhéus] amarram as embarcações. Há dentro outra casca, mais rígida e grossa que uma casca de noz [...]. Dentro está uma camada branca, de um dedo de espessura, que é comida com carne e peixe, como se fosse pão. [...]" (³) 
Não andou mal o senhor Pigafetta nessa descrição. Concluiu-a fazendo menção à parte que era, talvez, a que mais interessava aos navegadores que viviam enfrentando problemas com a falta do que beber em viagem: "No centro [do coco] há um líquido doce e transparente [...]." Falava, naturalmente, da água de coco, que vai muito bem em dias quentes (⁴). 
A polpa parece ser a parte mais apreciada pelo primatinha da foto que foi incluída aqui, para tornar a postagem mais simpática. Que tal?

Sagui no coqueiro

(1) Há outras palmeiras que crescem muito bem no Brasil, mas que não são nativas. São exemplos a palmeira-imperial (Roystonea oleracea), originária da Jamaica, e a belíssima palmeira-azul (Bismarckia nobilis), de Madagascar. 
(2) A descrição do fruto produzido pelo coqueiro está ligada a acontecimentos de 1521, um pouco antes da batalha em quw Magalhães foi ferido e em consequência da qual morreu. 
(3) Os trechos citados do Diário de Antônio Pigafetta foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Como hoje, enquanto esta postagem é escrita. 


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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Por que as cigarras cantam?

As cigarras estão fazendo uma gritaria louca lá fora. Melhor dizendo: as cigarras machos estão gritando loucamente para atrair as fêmeas. Bem, se elas gostam, também têm todo o direito às suas expressões românticas, do jeito que as entendem, naturalmente. 
Isto me fez lembrar de uma fábula de Esopo, um grego que viveu entre os Séculos VII e VI a.C. Aqui vai ela, contada a meu modo: 
Um agricultor andava à procura de gafanhotos que lhe devoravam a lavoura. Sempre que achava um, tinha uma satisfaçãozinha mórbida em moê-lo com os dedos. Olhando aqui e ali, viu uma cigarra e já ia triturá-la, também, quando o pobre inseto falou (por isso mesmo é fábula, porque há um animal que fala):
- Não faça isso! Tenha piedade desta pobre cigarra... Se tivesse o costume, como os gafanhotos, de devorar sua plantação, seria justo que me matasse, mas...  Que mal lhe fiz eu? 
Reflexões à parte, as cigarras do Brasil, ou, especificando, as cigarras do Maranhão, atraíram o interesse do padre Yves D'Évreux, missionário franciscano que andou por terras maranhenses entre 1613 e 1614. Em seu relato do que presenciou, pode-se ler:
"[...] No Maranhão, como em parte alguma (¹), tem muitas cigarras, que fazem em tempo próprio um barulho infernal, como eu não acreditaria se não ouvisse: há de diversas variedades, tamanhos e cantos.
São umas grossas, têm seis polegadas de comprimento, e voz forte e alta a ponto de ferir-nos vivamente os ouvidos. Não cantam no inverno, e sim no estio (²), e quando se aproximam as chuvas gritam tanto a ponto de estalarem pelos lados, como me contaram os selvagens [sic], sendo isto causado pelo bater das asas quando se esforçam e se incham para dar mais harmonia à voz." (³)
Não, senhor D'Évreux, não desprezando a graça de seu escrito, há que se dizer que as cigarras não estouram de tanto cantar. As supostas cigarras mortas, que deram origem a essa crença equivocada, não passam de exoesqueletos. Como muitos outros artrópodes, as cigarras passam por ecdise: à medida que crescem, trocam o esqueleto externo, abandonando aquele que já está inadequado ao seu tamanho. E continuam a cantar (se forem machos), e a ouvir com interesse (se forem fêmeas). 

(1) D'Évreux conhecia pouca coisa do Brasil, e não poderia falar com propriedade das cigarras de outras áreas. 
(2) Em perfeito acordo, portanto, com outra fábula, aquela que trata da cigarra e da formiga.
(3) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 163.


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sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Guerras Púnicas

As Guerras Púnicas, travadas entre Roma e Cartago entre 264 a.C. e 146 a.C. têm esse nome porque os romanos se referiam aos cartagineses como punos. Podem ser divididas em três grandes fases, assim datadas:
  • Primeira Guerra Púnica: 264 a.C. - 241 a.C.;
  • Segunda Guerra Púnica: 218 a.C. - 201 a.C.;
  • Terceira Guerra Púnica: 149 a.C. - 146 a.C.


Algumas curiosidades sobre as Guerras Púnicas


1. De acordo com Aneu Floro (¹) em Rerum Romanarum:
  • Ao final da primeira guerra púnica, em sinal de paz, "foram fechadas as portas do templo de Jano, pela primeira vez, desde o tempo de Numa". (²) 
  • Ao final da Segunda Guerra Púnica, "comparando-se o dano a ambos os povos [romanos e cartagineses], viu-se que era semelhante para vencedores e vencidos". (³)
  • No último cerco de Cartago, ao final da Terceira Guerra Púnica, a mulher de Asdrúbal, para não cair nas mãos dos romanos, abraçou-se aos dois filhos e juntos lançaram-se às chamas. O fogo na cidade somente se extinguiu depois de dezessete dias. Foram os próprios cartagineses que atearam fogo à cidade, para que os romanos nada tivessem para levar ao triunfo. (⁴)

2. De acordo com Políbio de Megalópolis (⁵) em Historiae:
  • Aníbal, general cartaginês, teria permanecido dezesseis anos na Itália com suas tropas. (⁶)
  • As tropas de Aníbal eram compostas por africanos, espanhóis, celtas, fenícios, italianos e gregos. (⁷)
  • As barracas dos cartagineses em seus acampamentos eram feitas de folhas e ramos de árvores. (⁸)
  • Referindo-se ao combate entre as tropas de Cipião e de Aníbal na batalha de Zama, em 19 de outubro de 202 a.C., Políbio afirmou: "Na manhã seguinte, ambos os generais aprontaram os exércitos para a batalha, lutando os cartagineses por si mesmos e por toda a África, e os romanos pelo império e domínio do mundo." (⁹)
  • Ainda sobre a batalha de Zama, Políbio escreveu: "Os romanos perderam  mais de mil e quinhentos homens, enquanto que dos cartagineses morreram mais de vinte mil, e outros tantos foram feitos prisioneiros. Esse foi o resultado da batalha entre Cipião e Aníbal, que deu aos romanos o domínio do mundo." (¹º)
(1) Contemporâneo do imperador Adriano.
(2) FLORO. Rerum Romanarum, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 
(4) Cf. FLORO. Rerum Romanarum, Livro II.
(5) Século II a.C.
(6) Cf. POLÍBIO. Historiae, Livro XI.
(7) Ibid.
(8) Cf. POLÍBIO. Historiae, Livro XIV.
(9) POLÍBIO. Historiae, Livro XV. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.  
(10) Ibid. 


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quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Por que os antigos gregos sacrificavam um porco antes de cultivar um campo

A maioria dos povos da Antiguidade tinha algum tipo de ritual relacionado ao plantio e à colheita, que geralmente incluía sacrifícios ao deus ou deusa que supostamente regia essas atividades. Esperava-se que as divindades protetoras afastassem as pragas, fizessem germinar as sementes, cair chuva em quantidade adequada e, finalmente, que enchessem os campos com uma colheita farta. Os antigos gregos, em particular nos tempos primitivos, não fugiam à regra, prestando culto à sua deusa da agricultura, Deméter (¹) - Ceres, para os romanos - quase sempre representada com uma foice na mão. Como a foice era usada na colheita dos cereais, o símbolo era apropriado. Hoje poderia significar outra coisa.
Chegava a primavera, e os agricultores gregos sabiam que não havia tempo a perder, se pretendiam cultivar o solo em condições climáticas favoráveis. Era hora de ir ao trabalho, mas nada se fazia sem um ritual curioso e sangrento. Um porco era levado aos campos que seriam cultivados e, depois, o pobre animal era sacrificado em honra de Deméter. 
Qual o significado disso?
Uma interpretação possível é que o porco era considerado malfazejo para a agricultura, por seu costume de cavar o chão, supostamente impedindo a germinação das sementes (²) e, assim, era sacrificado para demonstrar o que se pretendia que Deméter realizasse com quem procurasse atrapalhar a lavoura. Mas é sabido que porcos eram muito frequentemente sacrificados em honra dos deuses gregos (³), não só no caso dos rituais campesinos de primavera, mas em muitas outras circunstâncias em que se desejava prestar culto e obter o favor dos deuses. Neste caso específico, culto a uma deusa, cuja ajuda se esperava para o sucesso das lides agrícolas anuais. 

(1) Deméter era uma divindade menor no panteão grego, mas nem por isso desprezada pelos agricultores que levavam a sério seu culto. 
(2) Os egípcios, ao que parece, gostavam de ter a ajuda dos porcos na lavoura. Quando as águas do Nilo se retiravam, ficando a terra fértil para o cultivo, as sementes eram espalhadas e, em seguida, os porcos eram deixados nos campos, para que pisoteassem o que se plantara. Assim enterradas na lama, as sementes poderiam germinar mais facilmente.
(3) Basta dar uma olhada na Ilíada, de Homero.


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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Penalidades para falsificadores de moeda e para os que extraviavam os quintos do ouro no Brasil Colonial

As leis de Portugal sobre falsificadores de moeda eram severíssimas. Em termos claros, um falsificador era condenado à morte. Era queimado vivo. Porém... E se fosse conveniente uma pena mais leve, digamos, para falsificadores no Brasil, que, em teoria, estavam sujeitos às mesmas leis que vigoravam no Reino, assim como para os que faziam "desaparecer" os quintos do ouro encontrado?
Em Pluto Brasiliensis, o barão de Eschwege, que esteve no Brasil a convite do governo joanino, incluiu um documento muito interessante, uma Carta Régia que trazia a data de 29 de outubro de 1698, na qual o próprio rei sugeria a Artur de Sá e Menezes, governador entre 1697 e 1702, que fosse mais brando quanto aos falsificadores:
"[...] Foi-me presente vossa carta datada de 30 de maio deste ano (¹), incluindo o bando que fizestes proclamar a respeito das fraudes do quinto [...] e agradeço pelo vosso zelo. Porém quanto às penas que determinastes para aqueles que fazem moedas falsas, entre outras, por exemplo, aquela que determina que sejam queimados, parece-me que esta pena deve ser aplicada unicamente contra aqueles que desencaminham cunhos falsos para selar ouro, e aqueles que desencaminham o quinto deverão ser punidos de maneira que percam o ouro, sendo ainda obrigados a pagar o seu tríplice valor [...]." (²) 
Estaria o rei "dando um jeitinho", porque, afinal, era mais interessante um falsificador vivo que um queimado?
Provavelmente. O Reino estava longe, as condições de fiscalização não eram as mais rigorosas e, afinal, essa gente que sumia com os quintos ou que falsificava moedas sabia onde encontrar ouro e como arrancá-lo da terra. Melhor negócio seria aplicar, para eles, um castigo exemplar, e, depois, deixá-los vivos e soltos, para que voltassem a procurar ouro, mais instruídos quanto às consequências do descumprimento das leis de Sua Majestade, que mostrara tanta bondade para com eles.

(1) 1698.
(2) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 144.


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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Aclamação de D. Pedro como imperador do Brasil em 12 de outubro de 1822

Aclamação de D. Pedro I como imperador do Brasil no Rio de Janeiro (¹)

Em 12 de outubro de 1822 o príncipe D. Pedro foi oficialmente aclamado imperador do Brasil, embora a coroação somente viesse a acontecer em 1º de dezembro do mesmo ano. Agora D. Pedro era imperador "de verdade", mas talvez a coroa ainda lhe trepidasse na cabeça. Foi assim em praticamente todo o tempo em que exerceu o poder como imperador no Brasil.
Em São Paulo, a aclamação do jovem imperador foi assinalada por festejos ordenados pela Câmara Municipal. Em 30 de setembro de 1822 um ofício vindo da Câmara do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, foi lido na Câmara de São Paulo, e foi assim registrado na ata correspondente:
"[...] abriu-se um ofício do Senado da Câmara da Corte do Rio de Janeiro em data de 17 do corrente, em que comunica a esta Câmara que no dia doze do próximo outubro pretende aclamar a Sua Alteza Real o Príncipe Regente Defensor Perpétuo do Brasil primeiro Imperador Constitucional do novo Império Brasiliense [sic], visto que esta é a vontade geral do povo e tropa daquela Corte e Província [...]." (²) 
Em resposta, a Câmara de São Paulo decidiu que a mesma aclamação ocorreria na área de sua jurisdição, "[...] no mesmo dia 12 de outubro [...] natalício de S. A. R. (³), [...], por ser esta a vontade geral da nobreza, povo e tropa desta cidade, tão energicamente desenvolvida ao momento que se divulgou tão interessante resolução." 
Tomaram-se providências, ainda em 30 de setembro, para que a cerimônia fosse digna da ocasião: 
  • "[...] lavraram-se editais para luminárias nesta cidade por nove dias sucessivos, principiando do dia da Aclamação";
  • Foram enviadas cartas às vilas de Santana de Parnaíba, Jundiaí, Bragança e Atibaia, para informar sobre a Aclamação que deveria ocorrer em 12 de outubro;
  • A proclamação do Edital da Câmara seria feita na cidade de São Paulo com toda a solenidade, incluindo oficiais a cavalo, guarda, música e fogos de artifício.
Chegou o grande dia, afinal!... Na ata correspondente registrou-se que, em presença das autoridades locais "[...] povo e tropa, foi por todos unanimemente acordado que declaram a sua independência dos Reinos de Portugal e Algarves, e por ela protestam dar a própria vida, e que certificados oficialmente pelo Senado da Câmara da Corte e Cidade do Rio de Janeiro, de que Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil e seu Defensor Perpétuo, o Senhor Dom Pedro de Alcântara, é hoje, dia aniversário do seu natalício, aclamado ali, e em algumas Províncias coligadas, Primeiro Imperador Constitucional do Brasil a bem deste, igualmente por tal o aclamam, como herdeiro imediato do trono português, e lhe juram obediência e fidelidade, debaixo da condição de que o mesmo senhor prestará previamente o solene juramento de jurar, guardar, manter e defender a Constituição Política que fizer a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa Brasílica, fundada em sólidas bases e interessante a todo Império do Brasil [...]". Seguia adiante a dita ata, com uma infinidade de palavras no mesmo rumo, e foi assinada pelos que compareceram à Aclamação. Política, na época, era considerada como coisa para homens somente. Pode-se ler a lista imensa dos que assinaram, e não se achará uma só mulher (o que não significa que algumas, pelo menos, não estivessem lá).  
No dia seguinte, 13 de outubro de 1822, houve cerimônia religiosa em ação de graças na Catedral; novo ofício religioso, com toda a solenidade, foi marcado para o dia 28 de outubro. Além disso, "[...] se ordenou ao procurador que mandasse pintar as novas Armas da sala desta Câmara, que se acham no forro da mesma sala, ajustando com o pintor a nova pintura das ditas Armas do Imperador deste Império do Brasil" (⁴), e que se fizesse o novo selo com as Armas do Império (⁵). 
Têm caráter burocrático algumas das medidas adotadas pela Câmara de São Paulo, necessárias como eram diante da nova ordem política que se estabelecia; os festejos tão numerosos devem ser interpretados pela necessidade dos camaristas de tornar explícita sua adesão à causa da Independência, cujo reconhecimento formal pela antiga metrópole apenas aconteceria em fins de agosto de 1825. Até lá, era melhor não deixar nenhuma dúvida quanto ao lado em que estavam. 

(1) Cf. DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839.  O original pertence à Brasiliana USP. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) S. A. R.: Sua Alteza Real.
(4) Cf. Ata de 20 de novembro de 1822. 
(5) Cf. Ata de 23 de novembro de 1822. 


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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Menino escravo

Com a cesta no braço, vai subindo a rua.
- Salsinha, cebolinha, tomilho, manjericão!... Hortelã...
Do outro lado, sentado em uma cadeira posta na calçada, um homem lê o jornal. Da porta semiaberta logo atrás, sai uma mulher com um avental branco, muito limpo e engomado. Atravessa a rua, escolhe os temperos e entrega a moedinha correspondente. A hora do jantar não tarda.
O menino apalpa as moedas no bolso. Quer ter certeza de que todas ainda estão lá. Continua, ladeira acima.
- Salsinha, cebolinha, tomilho, manjericão!... Hortelã...
Logo se ouve um pateado rápido sobre as pedras da rua. O cavaleiro, ao passar pelo homem que lê o jornal, leva a mão ao chapéu, em cumprimento. O leitor levanta os olhos, acena com a cabeça, e volta a ler. O ruído das ferraduras sobre o calçamento logo desaparece na curva que a rua faz à direita.
 - Salsinha, cebolinha, tomilho, manjericão!... Hortelã...
Cinco meninos brincam com uma bola. Riem, provocam, as janelas de madeira parecem não se importar. Isso é medo apenas para vidraças.
Um erro no jogo e a bola desce, sem governo, até onde está o pequeno escravo. Olhinhos brilhantes, deixa a cesta no chão por um momento e devolve a bola. A brincadeira recomeça.
- Salsinha, cebolinha, tomilho, manjericão!... Hortelã...
A senhora não gosta de vê-lo voltar com sobras. Apalpa de novo as moedinhas no bolso, o coração dispara, falta uma... Não, está logo ali, do outro lado. Os pezinhos que desconhecem sapatos se apressam em subir a ladeira. É preciso estar de volta antes do acender dos lampiões.


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segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Antônio Conselheiro, uma celebridade?

Em 22 de julho de 1894, mais de dois anos antes, portanto, do início da Guerra de Canudos, Machado de Assis escreveu em sua coluna A Semana, na Gazeta do Rio de Janeiro:
"Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com dois mil homens perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem dizem que fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos."
Parece que o mito se formava, já, muito antes que o conflito armado contra as tropas governamentais tivesse início. Estaria o Conselheiro se tornando uma celebridade? Sim, ao modo do Século XIX, talvez não no sentido popular que a palavra ganhou em nossos dias. Em 14 de fevereiro de 1897, quando as armas contra Canudos já não eram apenas as da palavra, e na capital do Brasil os ânimos se exaltavam em debates quanto a ser ou não o movimento de caráter monarquista, Machado de Assis, também na Gazeta de Notícias, voltou a falar do Conselheiro, a partir de um pequeno incidente que presenciara:
"Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de São José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:
- Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
- Quem?
Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem que briga lá fora" é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é "esse homem que briga lá fora". A celebridade, caro e tapado leitor, é isso mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta, à porta da estalagem, ou no quarto em que residem.
Esta é a celebridade."
Pois bem, celebridade ou não, o Conselheiro não escapou à morte durante a luta travada para esmagar o movimento que suscitara com suas pregações feitas entre o povo castigado pela pobreza e pela seca no Nordeste brasileiro. Aparecera ainda quando o Brasil era Império, e, segundo descrição feita por Euclides da Cunha em Os Sertões, usava "camisolão azul, sem cintura, chapéu de abas largas, derrubadas, e as sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão abreviada e as Horas Marianas". Citada também em Os Sertões, a Folhinha Laemmert de 1877 dizia:  
"Apareceu no sertão do norte um indivíduo que se diz chamar Antônio Conselheiro (¹), e que exerce grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto, Revela ser homem inteligente, mas sem cultura." 
Euclides da Cunha provavelmente nunca viu o Conselheiro vivo, mas viu-o depois de morto. A última resistência do arraial de Canudos foi vencida em 5 de outubro de 1897, e, na manhã do dia seguinte, o cadáver do místico foi desenterrado, conforme se lê em Os Sertões:
"Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. 
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do "famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato e esquálido, olhos fundos cheios de terra (²) - mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
[...]
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista."
Segundo Euclides da Cunha, tiveram a ideia, depois, de cortar a cabeça do Conselheiro, para exibi-la como prova da vitória. Mas já estava morto... Muitos prisioneiros não tiveram a mesma sorte. Foram degolados - vivos.

(1) Antônio Vicente Mendes Maciel.
(2) Como poderia ser diferente?


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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Caçando bugios

Bugio (¹) 

O método de caça aos bugios descrito em Diálogos das Grandezas do Brasil (²), obra do começo do Século XVII, é tão famoso que até deu origem a fábulas. Mas vamos a ele:
"Tomam-nos com laços e armadilhas, dos quais um escravo meu lhes fazia uma assaz galante; a qual era que tomava uma botija de boca estreita e a meava de milho, e assim a punha lançada no chão com alguns grãos por fora ao redor da boca dela; e tendo assim a botija preparada da parte onde os bugios costumavam a vir fazer seus furtos, tanto que algum chegava a ela, vendo os grãos de milho, depois de os comer, olhava pelo buraco a ver se achava mais, e tanto que os divisava dentro, metia a mão pela boca da botija, e quando a queria tornar a tirar para fora já cheia de milho, o não podia fazer, porque, como a metera vazia, pôde bem caber no buraco, mas trazendo-a cheia, não lhe era possível podê-la tornar a tirar para fora, por esse modo ficava preso; [...] o que fazia era somente dar muitos gritos até que ao rebate deles acudia o caçador a lhe lançar um laço, com o qual depois de quebrar a botija, o trazia para casa." (³) 
Bugios um tanto estranhos (⁴)
O que é que, afinal, passava pela cabeça de colonizadores que aprisionavam bugios?
É fato que muitos achavam que esses primatas eram especialistas em roubar frutas e outros artigos agrícolas e, portanto, era preciso, ao menos, diminuir o número de seus assaltos. Mas havia duas razões principais para a sua captura:
  • Muitos colonizadores gostavam de aprisionar animais silvestres para tentar domesticá-los, e bugios eram particularmente apreciados para isso, em tempos nos quais não havia, ainda, nenhuma proibição ao seu cativeiro;
  • Mais sórdido era o gosto que alguns colonizadores desenvolveram de capturar bugios e outros macacos para nada menos que fazer sopa, ou "caldo de macaco", como se dizia. Pobres animais!
Assim, fosse pelo método descrito nos Diálogos, fosse com qualquer outra estratégia, os bugios corriam perigo, mas, sempre comilões, não resistiam a uma possibilidade de comida farta e saborosa, caindo, vez após vez, nas mãos de captores, nem sempre benevolentes.  

(1) Cf. SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 44. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(3) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 281.
(4) Cf. BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 535. Desenho de E. Riou, sobre esboços de F. Biard. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Eclipse solar durante a Guerra do Peloponeso

Ocorre eclipse solar, todo mundo sabe, quando a Lua se interpõe entre a Terra e o Sol. Todo mundo sabe hoje, mas não era assim na Antiguidade. 
Foi Cícero (¹), romano, quem contou: durante a Guerra do Peloponeso (²), atenienses, horrorizados pela ocorrência de um eclipse, não queriam ir ao combate. Intervém então ninguém menos que Péricles, e, com algumas palavras, move o ânimo de sua gente, fazendo-a deixar de lado a superstição paralisante:
"[...] disse aos concidadãos que aprendera na escola de Anaxágoras (³), em que fora ouvinte, que eclipses eram fenômenos periódicos, que aconteciam quando a Lua estava diante do Sol [...]. Argumentando racionalmente, fez desaparecer o medo entre o povo. Parece que Tales de Mileto (⁴) foi o primeiro a compreender que eclipses aconteciam pela sobreposição da Lua ao Sol, coisa que antes era desconhecida. [...]" (⁵) 
O pânico gerado pelo eclipse, mesmo entre os instruídos atenienses, pode ser compreendido porque se supunha que a escuridão fora de hora era resultado da irritação dos deuses, e quem é que ousaria entrar em combate, se o Olimpo estava de mau humor? Umas poucas palavras sensatas de conhecimento científico à moda (e com as limitações) do Século V a.C. foram, porém, suficientes para esclarecer os fatos e varrer o medo, ainda que continuasse escuro por mais algum tempo. Lamentável é dizer, contudo, que a guerra em andamento nos dias de Péricles iria, essa sim, eclipsar, para sempre, a glória de Atenas. Aviso sábio para os que manejam os rumos das nações.

(1) Marco Túlio Cícero (106 a.C. - 43 a.C.). Político, escritor, orador e jurista romano. 
(2) 431 - 404 a.C.
(3) Anaxágoras foi um filósofo do Século V a.C.
(4) Filósofo, Tales de Mileto viveu entre os Séculos VII e VI a.C.
(5) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, c. 51 a.C. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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