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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Carros de passageiros e vagões de carga em ferrovias paulistas no Século XIX

Locomotiva a vapor e carros ferroviários

"Sempre se viaja com mais facilidade e comodidade em um wagon de primeira do que no melhor carro de bois do tempo de Jacó."
Coelho Neto, A Bico de Pena

Voltem no tempo, leitores: vocês estão, agora, viajando em uma ferrovia paulista do Século XIX. Conseguem imaginar a potência da locomotiva e, como resultado, quão veloz é o deslocamento do trem? Não se esqueçam da fumaça, com o odor correspondente...
Mas o conforto, mesmo, ficava por conta dos bancos em que os passageiros eram acomodados. Para ajudar quem está, corajosamente, tentando formar uma imagem mental do que era uma viagem ferroviária naquela época, pode-se ler alguma coisa escrita em 1875 por J. Ewbank da Câmara. Comecemos pela célebre Companhia Paulista:
"Os carros de passageiros são ingleses da conhecida fábrica de J. Ashbury, de Manchester.
Os wagons de carga são abertos e fechados, da mesma fábrica inglesa, e de 7000 quilogramas de lotação." (¹)
Mais interessante, ainda, é o que foi dito quanto aos carros da Companhia Mogyana:
"Os carros salões de 1ª classe são elegantes, confortáveis, contém água e compartimento privado.
Além das molas comuns aos trucks, adotaram-se [...] espirais de ferro; os bancos de palhinha, por seu turno, descansam sobre pequenas espirais de ferro, que compensam os choques.
Na 2ª classe os bancos são dispostos longitudinalmente, e nos carros mistos, simples compartimento separa as duas classes." (²)
"Bancos de palhinha"... "Compensam os choques"... Querem ter uma experiência concreta de volta ao passado, leitores? Planejem um passeio de final de semana por uma das ferrovias turísticas, que têm locomotivas e carros perfeitamente restaurados. Depois disso, ficarão em extremo agradecidos por estarmos no Século XXI.

(1) CÂMARA, J. Ewbank da. Caminhos de Ferro de S. Paulo e a Fábrica de Ipanema em Agosto de 1875. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1875, p. 6.
(2) Ibid., p. 15.


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sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Como era a capital do Brasil na primeira metade do Século XVIII

Na primeira metade do Século XVIII, a capital do Brasil era, ainda, a Cidade da Bahia, ou Salvador, fundada com esse propósito no Século XVI pelo primeiro governador-geral, Tomé de Sousa. Sebastião da Rocha Pita (¹), que amava a cidade (²), descreveu-a nestes termos, que dão uma ideia de sua aparência:
"A cidade com prolongada forma se estende em uma grande planície elevada ao mar, que lhe fica ao poente, e ao nascente a campanha. Está eminente à dilatada povoação da marinha e aos repetidos portos de onde se lhe sobe com pequena fadiga por capacíssimas ruas. Tem duas portas, uma ao sul, e ao norte outra, em cujo espaço estão os famosos templos de Nossa Senhora da Ajuda, o da Misericórdia, que tem a si unido o magnífico recolhimento de mulheres, a majestosa igreja matriz, à qual está próximo o grande palácio arquiepiscopal, a igreja nova de S. Pedro da Irmandade dos Clérigos, o templo, o colégio e aulas escolásticas e doutas dos religiosos da Companhia de Jesus e o suntuoso templo e convento de S. Francisco." (³)  
Sim, Salvador já teve muros e portas! E que ninguém se surpreenda com a menção a tantas igrejas e outros edifícios a elas relacionados: assim se fazia, no passado, concedendo a prioridade a tudo o que se ligava às práticas religiosas.
Mas vamos adiante, para ver o que Rocha Pita dizia dos bairros da cidade:  
"Em seis bairros se divide a cidade: o das Portas de S. Bento, o de Nossa Senhora da Ajuda, o da Praça, o do Terreiro, o de S. Francisco e o das Portas do Carmo, além dos outros que ficam extramuros [...]." (⁴)  
Havia, ainda, praças e edifícios públicos, que evidenciavam os pilares em que então se apoiava a autoridade local, ou seja, Estado monárquico e Igreja:
"[...] Duas praças lhe aumentam a formosura, a de Palácio, quadrada com cento e sessenta e dois pés geométricos por face e vinte e seis mil duzentos e quarenta e quatro de área. Na frente tem o majestoso paço onde residem os generais; na parte oposta a Casa da Moeda; ao lado direito as da Câmara e da Cadeia; ao esquerdo a da Relação, e por seis formosas ruas se comunica a todas as partes da cidade.
A segunda praça, chamada Terreiro de Jesus, se prolonga com trezentos e cinquenta pés de comprimento e duzentos e vinte e oito de largura [...]. Tem no princípio a igreja do [...] colégio dos padres da Companhia, de que tomou o nome, e por todas as partes vai acompanhada e enobrecida de suntuosos edifícios, de que lhe resulta agradável perspectiva e contínua frequência; por seis ruas se franqueia a todos os bairros [...]". (⁵) 
O que é que fez Salvador envelhecer e deixar de ser a capital? Nada, na própria cidade, e sim o que ocorria fora dela. Tomé de Sousa a fundara sob ordens expressas do rei para que se fizesse cidade no coração do território açucareiro, de onde a exportação e consequente cobrança de impostos ocorresse pontualmente; devia ficar tão perto quanto possível do Reino, para facilitar a comunicação entre colônia e metrópole. Contudo, a descoberta do ouro, que não podia ser plantado onde bem se entendesse, mas que se devia arrancar da terra onde pudesse ser encontrado, provocou mudança significativa no eixo econômico do Brasil. Por um pouco de tempo, Paraty foi o porto de saída do ouro para Portugal; depois, a exportação passou a ser feita pelo Rio de Janeiro. Dentro da lógica colonial, o governo devia mudar de endereço. Salvador perdeu o status de capital, e o Rio de Janeiro passou a ser sede de governo em 1763, não por alguns anos ou décadas, mas até que, já bem adiantado o Século XX, alguém tivesse a ideia de, finalmente, transferir a capital da República para o centro do Brasil. 

(1) A primeira edição de sua História da América Portuguesa foi publicada em 1730.
(2) Os adjetivos e superlativos são disso uma prova acabada.
(3) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 35.
(4) Ibid. 
(5) Ibid. 


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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Mílon de Crotona

O maior atleta dos jogos olímpicos da Antiguidade


Crotona é hoje uma cidade italiana, mas foi fundada, na Antiguidade, por gente de origem grega - lembram-se do que era a Magna Grécia, leitores? Tornou-se uma cidade-Estado e nela nasceu, no Século VI a.C., aquele que pode ter sido o maior atleta a competir nos jogos olímpicos da Antiguidade. Seu nome era Mílon, e por causa da origem, ficou conhecido como Mílon de Crotona (*).
Era, portanto, candidato perfeito a se tornar herói de muitas lendas. Sagrou-se vencedor na luta várias vezes, mas em qualquer lenda respeitável é preciso que haja algum exagero. E há: teria carregado um touro de uma extremidade a outra da pista, em Olímpia, em que se realizavam corridas a pé, e, como se isso fosse pouca coisa, em seguida teria matado o touro e tratado de devorá-lo. Lenda, lenda, leitores! 
Não poderia, contudo, faltar um desfecho trágico, como em toda boa história grega da Antiguidade. Humano como era, apesar dos feitos mirabolantes, Mílon envelheceu, sem notar que a força espantosa de que era dotado ia, aos poucos, diminuindo. Um dia, ao passear por um bosque, viu um carvalho no qual lenhadores haviam aberto uma fenda, sem, contudo, concluir o trabalho. Por imaginar que ainda tinha as forças intactas, o herói quis separar as duas partes do carvalho, mas, à medida que puxava, foram-se acabando as energias e, então, as duas partes voltaram à posição original, prendendo os braços de Mílon, que gritou, berrou, esperneou, mas não conseguiu se livrar da prisão em que se colocara. Para cúmulo da desgraça, atraiu a atenção de lobos, que o devoraram. 
Avisei que era lenda, mas diz muito sobre a natureza humana, para quem quiser entender.

(*) Era comum, na Antiguidade, que pessoas fossem designadas pelo local de nascimento. 


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segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Como era feito o contrabando de ouro e diamantes

Extração de diamantes no Brasil (¹)

Muitos mineradores, e mesmo simples faiscadores de ouro do Século XVIII achavam que a cobrança dos "reais quintos" não passava de exploração. Afinal, eram eles que arrancavam o ouro da terra, à sua custa e à custa do suor de seus escravos, e ainda tinham que pagar um imposto extorsivo? A ideia de que o rei era "senhor natural" do território que governava e que, por sua muita bondade, fazia aos súditos a concessão para que explorassem o ouro não era nada popular no Brasil, e continuou a desfrutar de idêntica antipatia no Século XIX, mesmo com a distinta presença da Corte no Rio de Janeiro.
Em consequência, o contrabando de ouro e diamantes era enorme. A criatividade dos contrabandistas não conhecia limites. O barão de Eschwege (²) descreveu, em Pluto Brasiliensis, algumas das "técnicas" de contrabando, em particular quando era necessário passar por algum registro, que era um ponto de controle de carga e bagagem entre uma capitania e outra: 
"A fim de passar a salvo, usa de toda espécie de espertezas, já bastante conhecidas: caixas com fundo falso, sacos de couro cozidos nas almofadas das cangalhas, esconderijos de madeira nas canastras e fardos de algodão, apesar de estes poderem ser revistados por meio de uma agulha de ferro, que se atravessa em todas as direções. Um deles, quando conduzia uma boiada, teve a ideia de atar saquinhos com ouro na cauda de bois mansos.
Os diamantes eram também escondidos nas bengalas e nos cabos ocos dos chicotes, na coronha das espingardas ou das pistolas, no próprio cano das mesmas, ou no salto das botas." (³)
Eschwege escrevia sobre o que tinha visto, mas devia, também, ter ouvido muitas histórias. É impossível que houvesse presenciado tudo isso porque, afinal, viera ao Brasil a convite do governo joanino. Não era um funcionário público, mas não era, também, alguém em quem contrabandistas iriam facilmente confiar. Fica, porém, uma questão: se as artimanhas dos contrabandistas eram fartamente conhecidas, por que ainda eram usadas? Pode-se imaginar perfeitamente quanta corrupção acontecia nos registros, sem falar no aborrecimento dos funcionários que, dia a dia, precisavam fiscalizar cada caravana, cada tropa de mulas, cada grupo de viajantes que passava, monotonamente, no passo preguiçoso ou cansado de homens e animais. Como regra, não deviam achar razoável que as filas de verificação se tornassem demasiadamente longas. 

(1) SPIX, Johann B. von et MARTIUS, Carl F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777 - 1855), especialista em minas, esteve no Brasil a convite do governo joanino, que pretendia reanimar a extração de minerais preciosos no país. 
(3) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 525.


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sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A expedição de Fernão de Magalhães, antes de sair da Espanha

A esquadra liderada por Fernão de Magalhães, cinco navios ao todo, deixou Sanlúcar de Barrameda em 20 de setembro de 1519. Seguiu para as Canárias, onde se abasteceu de água e carvão, e de lá, para a América do Sul, já que a ideia que norteava a expedição era encontrar uma passagem no extremo sul do Continente, de onde pudesse ter acesso ao Pacífico e, então, depois de demonstrar na prática que as Molucas, pelo Tratado de Tordesilhas, pertenciam à Espanha, completar a primeira viagem de circum-navegação, retornando a seu ponto de partida na Europa. 
As pretensões eram grandiosas, os riscos, enormes. Exatamente por isso, Magalhães, muito religioso, como eram aliás, quase todos em seu tempo, ordenou algumas providências antes da partida, que, em seu entender, seriam uma preparação conveniente ao grande empreendimento. Antonio Pigafetta, um italiano que esteve entre os poucos que completaram a viagem, escreveu uma espécie de diário, no qual se lê:
"Pela manhã, todos iam a terra para ouvir missa na Igreja de Nossa Senhora de Barrameda; antes da partida, o comandante deu ordem para que toda a tripulação fosse se confessar e proibiu que, sob qualquer pretexto, alguma mulher fosse embarcada na esquadra." (*)
Considerava-se, na época, que, diante dos riscos, todos deviam estar preparados para morrer. O próprio Magalhães nunca voltou. Provou-se, porém, com essa expedição, que era possível dar a volta ao mundo. A esfericidade da Terra estava, portanto, demonstrada.

(*) O trecho citado do Diário de Pigafetta foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Expulsão de um maldizente da vila de São Paulo

Conhecem algum especialista em falar mal da vida alheia, leitores? Ao que parece, as povoações do Brasil Colonial não tinham falta de alguns desses espécimes. Na obra do poeta seiscentista Gregório de Matos é possível perceber, vez e outra, que as palavras foram usadas para castigar os fofoqueiros e maldizentes da primeira capital do Brasil, a Cidade da Bahia, hoje chamada Salvador. "Em cada porta um frequentado olheiro, / Que a vida do vizinho, e da vizinha / Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, / Para a levar à Praça, e ao Terreiro" - Quem é que não se recorda desses versos? (¹)
Pequena como era nas primeiras décadas do Século XVII, São Paulo teve, também, o seu maldizente de ofício, de cujas habilidades somos informados pela ata da Câmara com data de 5 de setembro de 1526:
"E logo pelo procurador foi requerido [...] a eles ditos oficiais mandassem botar fora desta vila a Belchior [...], porquanto é prejudicial para este povo por respeito de sua boca, não haver nesta vila homem honrado nem mulher honrada, por ser de ruim boca, e juntamente conste já papéis que nesta Câmara há em que consta por informação o botaram já da Bahia por ser ruim boca e procedimento de sua casa e dar muitos escândalos de sua boca e vida nesta terra, pelo que requeria a suas mercês o botassem fora desta vila [...]."  (²) 
Portanto, o tal homem já havia sido expulso da Bahia, por idênticos serviços. Mas em que resultou seu caso em São Paulo? 
Em 19 de setembro de 1826 o escrivão da Ata da Câmara voltou a se ocupar dele:
"[...] deferiram os ditos oficiais o requerimento que fez o procurador [...] contra Belchior [...], mandaram os ditos oficiais que o juiz ordinário Sebastião de Freitas tirasse nova prova de seu viver e costumes que tem o dito Belchior [...], para com isso darem cumprimento à lei e ao requerimento do dito procurador [...]."  
Depois disso, não sabemos o que ocorreu ao dito tagarela, se expulso da dita vila foi, se com sua dita língua foi atormentar outra povoação colonial, ou se, já cansado de tantas aventuras, abandonou seu dito mau comportamento e acabou virando gente de bem. Está dito! 

(1) Vejam, leitores, que seus estudos de Literatura nos tempos escolares foram muito úteis. 
(2) Os trechos de atas aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão. 


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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Para separar os grãos da palha

Os primeiros romanos eram gente dedicada à agricultura e ao pastoreio. Mesmo mais tarde, quando se esperava que homens de alta posição social dessem sua contribuição à vida política de Roma, ainda assim mantinham propriedades agrícolas que, bem administradas, eram um fator relevante para a prosperidade da elite. 
É por essa razão que vários autores importantes se dedicaram a escrever sobre técnicas de cultivo. Dentre eles, Lúcio Júnio Moderato, mais conhecido como Columella, que em Res rustica explicou como deveria ser feita a separação dos grãos que estivessem misturados com palha, situação muito comum pelos métodos então usados na colheita e preparo dos cereais para armazenamento:
"É por meio do vento que grãos misturados com palha devem ser separados. É particularmente recomendável fazê-lo quando o vento oeste sopra com suavidade [...]." (*)
Lançavam-se os grãos ao ar, de modo que a palha era levada para longe por ação do vento. Uma peneira podia ser útil, também. Apenas como curiosidade, esse método rústico, de que se serviam os antigos romanos há muitos séculos, foi usado durante bastante tempo no Brasil, e, em alguns lugares, para separar a palha de pequenas quantidades de certos produtos agrícolas, continua a ser praticado até hoje. 

(*) COLUMELLA, Lúcio Júnio Moderato. Res rustica. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Onças-pretas

Onça-preta
Famosas pela ferocidade que se lhes atribuiu desde o início da colonização, as onças foram perseguidas porque capturavam animais de criação, porque histórias reais (algumas) e lendas (muitas) faziam delas terríveis predadoras de humanos e por causa da beleza da pele, que se julgava ser apreciada com maior segurança se o animal de origem estivesse morto.
Que dizer, no entanto, das onças-pretas? Félix de Azara, espanhol que esteve na América do Sul encarregado da demarcação dos limites entre o que se pretendia pertencer à Espanha e a Portugal, fez algumas observações interessantes sobre o que chamou de "tigre negro". Explique-se, portanto, que, nesse tempo, as onças-pintadas eram chamadas muitas vezes de "tigres", enquanto as onças-pardas" eram chamadas "leões"... A confusão começou no início da colonização, quando poucos europeus já haviam visto tigres e leões de verdade, mas haviam ouvido falar deles e não foi preciso muito esforço, portanto, para que imaginassem ver feras asiáticas ou africanas na América. Absurda, como seja, a nomenclatura incorreta demorou a desaparecer. Mas voltemos a Azara e ao que disse sobre o animal que aqui nos interessa:
Onça-preta com muuuuuito sono
"Meia légua mais além o aguaceiro nos obrigou a entrar no rancho de um português, onde comemos um assado que o dono nos presenteou, e me informou ter matado nesse lugar um tigre negro. Já havia ouvido dom José Antonio Zabala dizer que tivera a pele de outro tigre igual, e como não tenho ouvido falar de outros, creio que os ditos tigres não são de espécie diferente dos comuns daqui, mas indivíduos a quem a mesma causa que faz outros tigres, animais e homens brancos, converteu-os em negros, isto é, creio que a causa que produz indivíduos albinos [...] ou os negros em alvos é a que dá a cor negra a alguns destes tigres." (¹)
Em essência, Azara estava certo. A onça-preta é uma variação melânica da onça-pintada (Panthera onca), e não uma espécie distinta. Quando observada atentamente, a belíssima pele da onça-preta revela ter manchas, especialmente visíveis quando sobre ela incidem os raios solares (²).  Bebês onças-pretas só vêm à existência se ao menos um dos progenitores também apresentar o melanismo, e, por isso, não são muito comuns. 

(1) AZARA, Félix de. Viajes Inéditos de D. Félix de Azara. Buenos Aires: Imprenta y Librería de Mayo, 1873, p. 193. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Basta observar as fotos. A onça-preta está entre os seres vivos mais bonitos que conheço. 


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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Brincadeiras do Reino para os meninos indígenas do Brasil

Na catequese de indígenas no Brasil Colonial, missionários jesuítas davam preferência às crianças, por julgarem que eram mais receptivas àquilo que se pretendia ensinar (¹). Nas aldeias controladas por padres da Companhia de Jesus, os meninos iam à escola, as meninas iam à doutrina (²), como parte da rotina diária a que se pretendia acostumá-los. Muita importância era dada, também, às grandes celebrações do calendário litúrgico, na expectativa de que indígenas adultos, que amavam as ocasiões festivas, também se interessassem pela religião. 
Ora, quem é que não sabe que crianças gostam de brincar? Também disso os padres não descuidavam, procurando, tanto quanto possível, afastá-las dos folguedos que pudessem atraí-las ao estilo de vida tradicional de sua comunidade de origem. A prova disso está em uma carta destinada aos irmãos de Ordem em Portugal, com data de 11 de setembro de 1560, e escrita pelo padre Rui Pereira, missionário jesuíta em uma aldeia indígena na Bahia:
"Para que mais se esqueçam de seus costumes e modos de folgar, ensinamos-lhes jogos que usam lá os meninos no Reino, tomamos também e folgamos tanto com eles, que parece que toda a sua vida se criaram nisso, desde que essa nova criação que cá se começa está tão aparelhada para nela se imprimir tudo o que quisermos [...]." (³) 
Não é possível deduzir, apenas por esse documento, que os jogos infantis portugueses fossem, de hábito, empregados intencionalmente em outras aldeias sob o controle de jesuítas, para aculturação dos pequenos catecúmenos. Observe-se, contudo, a jovialidade dos missionários, embora seja de se lamentar que o padre Rui Pereira, na carta citada, não tenha feito menção de quais eram os jogos dos meninos do Reino que costumavam ensinar. Teriam eles, de alguma forma, sobrevivido, através dos séculos, nas brincadeiras infantis tradicionais no Brasil?

(1) Ainda que, não poucas vezes, tenham se decepcionado com seus catecúmenos que, chegando à adolescência, decidiam voltar ao modo de vida de seus pais.
(2) Aprendizado da religião católica.  
(3) Cf. LISBOA, Balthazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 152.


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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Juízes de ofícios em São Paulo no Século XVII

Periodicamente, a Câmara de São Paulo mandava vir à presença das autoridades locais todos os juízes de ofícios existentes na vila, para que prestassem juramento, segundo o costume e legislação da época, e para que, com a assistência de um companheiro, que devia zelar pelos interesses do povo, fizessem uma tabela dos preços que podiam ser praticados por todos os que exerciam a mesma profissão. 
Assim, é possível, através da documentação existente, saber quais ofícios tinham quem os exercesse em uma determinada ocasião, e, por consequência, tem-se uma ideia do desenvolvimento econômico que, passo a passo, ocorria na localidade. Para o ano de 1628, por exemplo, foram juramentados em São Paulo:

a) Juiz dos carpinteiros, em 27 de maio de 1628:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Garcia Roiz, carpinteiro, para ser juiz dos carpinteiros que nesta vila há [...]" (¹);
b) Juiz dos barbeiros, também em 27 de maio:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Francisco Botelho, para servir de juiz do ofício de barbeiro e de tudo mais que tocar a ele [...]" (²);
c) Juiz do ofício de seleiro, igualmente em 27 de maio:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Antônio Alves, para que fosse juiz do ofício de seleiro (³) e fizesse o regimento e taxa das obras [...]"; 
d) Juiz do ofício de alfaiate, ainda em 27 de maio de 1628:
"[...] foi dado juramento a Gaspar Gonçalves, para ser juiz do ofício de alfaiate e faça o regimento e taxa das obras [...]";
e) Juiz do ofício de ferreiro, em 10 de junho de 1628:
"[...] apareceu Gaspar Dias, ferreiro, e pelo juiz lhe foi dado juramento para servir de juiz do ofício de ferreiro e fizesse o regimento e taxa do que hão de levar os oficiais ferreiros das obras que fizerem [...]";
f) Juiz do ofício de sapateiro, em 26 de novembro de 1628:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos a Francisco Roiz, sapateiro, para servir de juiz do ofício e debaixo do dito juramento faça a taxa e regimento [...]." 

Um indígena como juiz de ofício em São Paulo no Século XVII


Há, porém, um caso que foge ao padrão. Será melhor deixar que a ata correspondente, do dia 9 de setembro de 1628, fale por si: 
"[...] pelo vereador mais velho foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Antônio, moço da terra, da casa de Francisco Jorge, para ser juiz do ofício dos tecelões, por não haver homem branco que o seja, e o dito moço ser o melhor tecelão que há na terra, o qual examinará todos os negros (⁴) que tecem, ao que for perito lhe será dada sua carta de examinação [sic], e ao que não for para isso, que não trabalhe [...]." 

Que conclusões são possíveis, então?
A ata é explícita em afirmar que não havia na vila algum português, do Reino ou da terra, que fosse tecelão; é clara, também, em afirmar que o novo juiz dos tecelões, Antônio, era indígena ("moço da terra"), e provavelmente, escravo ("da casa de Francisco Jorge). Se for esse o caso, então todo o trabalho que fazia seria lucro para seu senhor, não para si mesmo, mas isso é apenas uma conjectura. Não há dúvida, porém, de que devia ser respeitado pela qualidade do trabalho que fazia. Finalmente, fica entendido que a preferência era, sempre, para juízes de ofício dentre os colonizadores, em cuja falta, porém, um indígena poderia ser admitido.

(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) No Século XVII, e mesmo muito depois, barbeiros não se encarregavam apenas de fazer a barba ou cortar o cabelo de seus clientes. Em geral, também extraíam dentes e faziam sangrias. 
(3) O ofício de seleiro tinha muita importância, porque cavalos e mulas eram indispensáveis ao transporte terrestre, além de usados em diversas tarefas na agricultura.
(4) O termo "negro", nesse tempo, nem sempre era empregado em sentido étnico. Era costume chamar "negros" a todos os escravizados, independentemente da origem, africana ou indígena. 


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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Viagem de Ouro Preto a Mariana no começo do Século XVIII

Ir de Ouro Preto a Mariana (ou de Mariana a Ouro Preto) é muito rápido. Mas nem sempre foi assim, por mais estranho que pareça, se considerarmos o quanto as duas cidades são próximas. Era mesmo uma viagem, feita em parte pelo leito de um ribeirão, segundo informou o Barão de Eschwege, que, tendo estado no Brasil no Século XIX, não precisou gastar no percurso o mesmo tempo requerido no começo do Século XVIII:
"[...] O percurso de Vila Rica, hoje Ouro Preto, à atual Mariana, era realizado em três dias, o que hoje se faz em duas horas, por estrada sofrível, aberta quase toda em rochas e aproximadamente a meia encosta da serra." (*) 
Nas primeiras décadas do Século XVIII havia muita pressa, que raiava ao desespero, em arrancar ouro da terra ou do leito de rios. Quem é que pensaria em abrir uma estrada decente? Mais tarde os senhores mineradores devem ter-se dado conta do prejuízo que resultava para si mesmos, se precisavam gastar dias em uma viagem que poderia durar no máximo algumas horas. E a estrada se abriu, apesar de todos os seus defeitos. Lembrem-se disso, leitores, se forem de Ouro Preto a Mariana e não gastarem, para tanto, mais que uma coleção de minutos. 

(*) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis, trad. Domício de Figueiredo Murta. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 46.


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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Lei Eusébio de Queirós

Eusébio de Queirós (¹)
A lei que efetivamente resultou na extinção do tráfico de africanos para escravização no Brasil foi a que recebeu o nº 581, de 4 de setembro de 1850, também conhecida como Lei Eusébio de Queirós. Ora, a Lei Eusébio de Queirós não pretendia proibir o tráfico - isso já fora feito pela lei de 7 de novembro de 1831, que, em se tratando de eficácia, não passara de boa intenção. O tráfico continuava a acontecer, livre e escandalosamente, como se nada houvesse de ilegal em sua prática. Mas agora, em 1850, a situação era diferente. A pressão interna e externa pela abolição do tráfico era enorme, e os fazendeiros que choramingavam junto ao poder público para não pôr de lado a escravidão começaram a perder a batalha.
Por que, então, a Lei Eusébio de Queirós funcionou, enquanto a de 1831 de nada valeu? Nenhuma lei desse tipo poderia ser eficaz se não viesse acompanhada de medidas de força para garantir seu cumprimento, e foi isso que a lei de 1850, encaminhada pelo então ministro da Justiça Eusébio de Queirós Coutinho Matoso Câmara, teve de novidade. Ela dispunha sobre as medidas práticas para garantir que africanos não mais fossem trazidos ao Brasil para escravização:
"Art. 1º - As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros ou mares territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação é proibida pela lei de 7 de novembro de 1831, ou havendo-os desembarcado, serão apreendidas pelas autoridades ou pelos navios de guerra brasileiros, e consideradas importadoras de escravos. Aquelas que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porém que se encontrarem com os sinais de se empregarem no tráfico de escravos, serão igualmente apreendidas e consideradas em tentativa de importação de escravos."
Mais ainda: quem insistisse no tráfico de africanos, podia ser enquadrado no crime de pirataria, com suas gravíssimas consequências:
"Art. 4º - A importação de escravos no território do Império fica nele considerada como pirataria, e será punida pelos seus tribunais com as penas declaradas no artigo segundo da lei de 7 de novembro de 1831. A tentativa e a cumplicidade serão punidas segundo as regras dos artigos 34 e 35 do Código Criminal."
Porém, o litoral brasileiro é extenso, e o patrulhamento, nas condições do Século XIX, deixava ampla margem para o tráfico ilegal e desembarque de africanos escravizados. Desembarques ilegais continuaram a acontecer, contudo foram se tornando mais e mais raros.  
Na fala do imperador, encerrando a Quarta Sessão da Oitava Legislatura da Assembleia Geral Legislativa em 4 de setembro de 1852 - exatos dois anos após a Lei Eusébio de Queirós - D. Pedro II afirmou:
"O tráfico de africanos está por assim dizer extinto. Para reprimir uma ou outra tentativa de ávidos aventureiros, que procurem ainda tirar lucros de tão imorais especulações, parecem suficientes as leis que tendes decretado, as quais continuarão a ser executadas vigorosamente." (²)
Até onde se sabe, a última tentativa de desembarcar escravizados vindos da África em território brasileiro teria ocorrido no começo da década de 1870. Mas já, aí, era caso esporádico.
Talvez você, leitor ou leitora, a essa altura esteja se interrogando quanto ao que acontecia aos africanos que fossem encontrados em embarcações detidas após a Lei de 1850. A própria Lei Eusébio de Queirós tem a resposta:
"Art. 6º - Todos os escravos que forem apreendidos serão reexportados por conta do Estado para os portos de onde tiverem vindo, ou para qualquer outro ponto fora do Império, que mais conveniente parecer ao governo, e enquanto essa reexportação se não verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do governo, não sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares."
Por que, no entanto, acabar apenas com o tráfico, e não com a escravidão como um todo? 
O imperador, ponderando interesses de alguns setores agrários, entendia que a abolição completa do trabalho escravo devia ser feita em etapas, na suposição de que assim procedendo, seriam evitados solavancos exagerados na política e na economia. Por essa lógica, não seria inconcebível que o Brasil chegasse ao Século XX ainda carregando a horrorosa situação de ter seres humanos que se consideravam proprietários de outros seres humanos. Todavia, desde a Guerra do Paraguai, a sociedade brasileira entrou em uma fase de mudanças importantes. Havia pressa, e a escravidão, formalmente, chegou ao fim em 1888, ainda que, nas várias províncias, abolições locais já estivessem em vigor antes disso. 

(1) Cf. SISSON, S. A. Galeria dos Brasileiros Ilustres, vol. 11. Rio de Janeiro, Lithographia de S. A. Sisson, 1861. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) AURORA PAULISTANA, Ano II, nº 71, 5 de outubro de 1852.


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segunda-feira, 2 de setembro de 2024

O pior cataclismo

Qual é a pior calamidade que pode sobrevir a um lugar? O que é mais difícil de controlar? Seria uma inundação? Uma erupção vulcânica? Um terremoto? Uma tempestade de granizo? Um furacão? Vocês, leitores, têm todo o direito de discordar, mas esta era a opinião de Marco Túlio Cícero (¹), político, escritor e orador romano do Século I a.C.:
"[...] saiba que não há mar ou incêndio tão pavoroso cuja violência seja mais difícil de conter que a fúria de uma multidão insolente e desenfreada." (²)
Cícero não estava, evidentemente, comparando o dano material que os diferentes cataclismos podem ocasionar. Sua preocupação era com o dano político. Sob esse aspecto, ele devia saber do que falava, porque Roma foi, em seus dias, um lugar de muita agitação. Não por acaso, a fúria popular foi, daí por diante, gradualmente canalizada para os espetáculos sangrentos patrocinados pelo Estado. Que corresse o sangue dos gladiadores, não o dos Césares. 

(1) 106 a.C. - 43 a.C.
(2) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica. c. 51 a.C. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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