Páginas

sexta-feira, 31 de maio de 2024

A estátua de Hera em Corinto

Por que havia um cuco no cetro de Hera


A história, meio fato, meio lenda, é ótima, e foi contada por Pausânias, escritor grego do Século II. Havia em Corinto (¹) uma bela estátua de Hera, feita de ouro e marfim, na qual a deusa era retratada em um trono, e que seria obra de Policleto, escultor notável do Século V a.C. Hera, naturalmente, usava uma coroa de ouro e, enquanto em uma das mãos segurava um cetro, na outra, exibia uma romã (²). 
Pois bem, Pausânias alegou nada poder dizer sobre a romã, que seria uma espécie de mistério religioso da Antiguidade, mas, a partir daí, entra o elemento lendário, porque sobre o cetro estava cravado um cuco - sim, a ave - e sobre o cuco ele tinha muito para falar. 
Zeus, senhor do Olimpo, se apaixonara por Hera quando ela era ainda uma virgem. Mas como o deus poderia se aproximar da jovenzinha? Simples, transformando-se em uma ave - um cuco - do qual ela tanto gostou que fez dele seu animalzinho de estimação. O restante, leitores, vocês podem imaginar, e segue o mesmo rumo de outras aventuras dos deuses gregos, suas estranhas metamorfoses e o que delas habitualmente resultava.
Nosso informante, Pausânias, viveu em um tempo em que já era possível contestar as façanhas dos deuses sem, por isso, correr grande risco. E foi assim que não teve escrúpulo em afirmar, ao concluir a história, que não acreditava em nada disso. Contava por contar, e nós apreciamos que assim tenha sido, porque seus escritos nos ajudam a entender melhor o tempo em que viveu e o que passava pela cabeça de seus contemporâneos.

(1) No Século II d.C., quando viveu Pausânias, Corinto já não era uma cidade de população grega, e sim uma colônia romana, apesar de conservar muitas das antigas tradições dos seus primeiros habitantes. 
(2) Cf. PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia, Livro II. 


Veja também:

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Vinhático

Dentre as madeiras nobres do Brasil, o vinhático (Plathymenia reticulata) foi notado, desde o início da colonização, para uso em várias finalidades, que Gabriel Soares, senhor de engenho e escritor do Século XVI, assim descreveu:
"[...] parece razão que se dê o primeiro lugar ao vinhático, [...] cuja madeira é amarela e doce de lavrar, a qual é incorruptível, assim sobre a terra como debaixo dela, e serve para as rodas dos engenhos, para outras obras deles e para casas [...]. Há também façanhosos paus desta casta, que se acham muitos de cem palmos de roda [...], mas os muito grandes pela maior parte são ocos por dentro, dos quais se fazem canoas tão compridas como galeotas, e acham-se muitos paus maciços, de que se tira tabuado de três, quatro e cinco palmos de largo. [...]" (*)
Nos tempos coloniais, o vinhático podia ser encontrado em grande parte do Brasil e, como, por suas qualidades, servisse muito bem para os propósitos dos colonizadores - estabelecimento de engenhos e navegação fluvial - foi muito procurado. Como tantas outras arvores, foi também derrubado indiscriminadamente. A questão foi de tanta gravidade que, perto do final do Século XVIII, já era evidente a necessidade, para preservação da flora nativa, da imposição de um limite ao corte de madeira de diversas espécies, que, de outro modo, acabariam extintas. 

(*) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 206.


Veja também:

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Vaqueiros nordestinos

Sertanejo com traje de couro (²) 
Segundo relato de Euclides da Cunha em Os Sertões, as tropas governamentais, deslocando-se pelo sertão durante a chamada Guerra de Canudos, às vezes encontravam um vaqueiro nada envolvido com os rebeldes, que, ao lado da estrada, observava os soldados em marcha:
"[...] No volver das inflexões da vereda, topava-se, às vezes, um vaqueiro amigo, um aliado, que se empregara nos serviços de transporte (¹). A cavalo, entrajado de couro, sombrero largo galhardamente revirado à testa trigueira e franca, à cinta o longo facão "jacaré"; à destra a lança arpoada do ferrão - quedava o matuto imóvel, à orla da passagem, desviando-se, deixando livre o curso à cavalgada, numa atitude respeitosa e altiva, de valente disciplinado, muito firme dentro da sua couraça vermelho-parda feito uma armadura de bronze, figurando um campeador robusto, coberto ainda da poeira das batalhas."
Era assim, desde os tempos coloniais, que vaqueiros se vestiam no Nordeste. O traje, que hoje é retratado como "típico" ou "folclórico", servia muito bem às condições naturais que os trabalhadores que cuidavam de gado precisavam enfrentar a cada dia, percorrendo, a cavalo, longas distâncias por rotas empoeiradas e cobertas por vegetação áspera e espinhosa, capaz de rasgar a pele facilmente, se não houvesse proteção adequada. Os trajes de couro, portanto, não eram convenientes apenas porque se cuidava de gado e porque eram duráveis e resistentes. Impunham-se pela necessidade de proteção.

(1) Dentre a população local que não aderira ao movimento místico de Antônio Conselheiro, foram contratados trabalhadores para auxiliar no transporte de suprimentos para as tropas que se deslocavam rumo a Canudos.  
(2). Cf. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1816. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


Veja também:

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Superstições medievais

Em alguns lugares da Europa medieval acreditava-se ser possível impedir que uma bruxa entrasse numa casa se, ao lado da porta, fosse plantado um junípero - já tratei desse assunto aqui no blog. Mas, como se sabe, não paravam por aí as superstições, o que é até compreensível, devido ao isolamento e à carência de instrução em que vivia grande parte da população rural - e a maior parte da população era rural, mesmo. Quase todo o restante habitava pequenas vilas e cidades, e ir à escola era privilégio ao qual poucos tinham acesso. Mesmo entre os mais instruídos havia quem conservasse umas superstiçõezinhas escabrosas. Nesse sentido, o mundo, desde então, não mudou tanto assim.
Afirma-se, por exemplo, que os noivos, no dia do casamento, deviam ter o máximo cuidado quando iam até a porta da igreja em que se realizava a cerimônia formal. Achando, no caminho, aranhas ou sapos, podiam crer que o matrimônio seria coroado de felicidade; encontrar cobras, cães e frades era sinal de mau agouro. Pura tolice, é claro.
Passemos ao caso do uso de plantas com supostas propriedades mágicas. Apenas dois exemplos, dentre uma multidão de outros que poderiam ser citados: hastes de milefólio (Achillea millefolium) eram usadas desde a Antiguidade para previsão do tempo, enquanto o endro (Anethum graveolens) era prescrito como proteção contra malefícios de alguma bruxa, e sua ingestão com vinho era indicada para levar alguém a apaixonar-se loucamente. Embora esses usos de plantas nos pareçam ridículos, por tentativa e erro acabaram conduzindo a muitos acertos que contribuíram para o desenvolvimento da química e da farmacologia, entre outros estudos, como hoje os conhecemos.


Veja também:

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Batatas da América do Sul para o mundo

Batatas são nativas da América do Sul, mas, a partir das navegações dos Séculos XV e XVI, foram levadas para quase todo o mundo, tornando-se parte essencial da culinária de muitos lugares, cujos habitantes, hoje, sequer suspeitam que seus pratos favoritos talvez nem existissem, não fossem essas solanáceas vindas de muito longe. É preciso dizer, também, que a facilidade com que as batatas se adaptaram em tantas regiões contribuiu, e muito, para que populações inteiras não morressem de fome. Não é pouco, meus leitores.
O que veremos, agora, é como alguns europeus reagiram ao provar batatas pela primeira vez. Começaremos com os homens (¹) que compunham a expedição de circum-navegação começada por Fernão de Magalhães, português a serviço da monarquia espanhola. Antonio Pigafetta, que viajou com Magalhães e escreveu um relato do que presenciou, contou que quando passaram pelo litoral brasileiro e pararam, por alguns dias, em área que corresponde ao Rio de Janeiro, os marinheiros obtiveram alimentos por meio de escambo com indígenas. Entre os itens trocados, estavam algumas batatas: "[...] em troca de um guizo ou de um cinto os indígenas nos traziam batatas, que se parecem com os nabos, e têm sabor semelhante ao de castanhas" (²). A descrição de Pigafetta faz supor que, provavelmente, estavam provando batatas-doces.
Outro que experimentou batatas e escreveu suas impressões foi o mercenário alemão Ulrich Schmidel (³), se aceitarmos que "Padades" são mesmo batatas. Sendo assim, descreveu-as como semelhantes a maçãs (⁴). Estaria falando do formato ou do sabor? Se for pela consistência, é de se pensar que houvesse provado batatas cruas, coisa que não é impossível, se tivermos em consideração o número de vezes em que afirmou, em seus escritos, que ele e seus companheiros estiveram na iminência de morrer de fome (⁵).
Seja como for, as batatas caíram no gosto mundo afora. Terminaremos, portanto, com uma receita de batatas fritas (⁶), extraída da edição portuguesa de um livro de culinária do Século XIX:
"Batatas fritas
Descascai em cru as batatas grandes e claras, parti-as em rodas delgadas; derretei manteiga de vaca, misturando-lhe duas colheres de azeite, frigi as batatas até ficarem duras, tesas e louras, escorrei-as bem sobre peneira de cabelo, e quando estiverem secas servi-as pulverizadas de sal e pimenta." (⁷)
Já provaram algo assim, leitores?

(1) Homens, aqui, é referência apenas a indivíduos do sexo masculino. De acordo com o diário de Antonio Pigafetta, Magalhães proibiu o embarque de mulheres nos navios que comandava.
(2) O trecho citado do Diário de Antonio Pigafetta foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Veio à América do Sul na expedição de Pedro de Mendoza e esteve na Argentina e no Paraguai, em uma permanência de cerca de vinte anos.
(4) Cf. SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, p. 23.
(5) Tão grave era a falta de víveres que enfrentaram, que chegaram à prática da antropofagia.
(6) Homenagem a uma sobrinha que é louca por batatas fritas.
(7) O Cozinheiro Completo ou Nova Arte de Cozinheiro e de Copeiro, 3ª edição. Lisboa: Tipografia de Luiz Correa da Cunha, 1855, p. 114.


Veja também:

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Como eram premiados os atletas atenienses que venciam em Olímpia

Esportes, na Grécia Antiga, eram assunto de Estado - de cada cidade-Estado, porque não eram entendidos como simples lazer ou entretenimento. Os homens eram incentivados à prática de esportes porque isso os ajudava a manter a capacidade física da qual dependia, em larga medida, o sucesso de um exército em caso de guerra. E, como na Grécia cada cidade-Estado tinha seu próprio exército, e como as guerras eram quase ininterruptas, os grandes campeões eram muito valorizados. Alie-se a isto o fato de que as diversas competições eram sempre celebradas em honra dos deuses, e será possível notar o quanto era relevante, para os gregos, ter um corpo forte e saudável, capaz de correr e saltar com facilidade, até de enfrentar as lutas brutais que despertavam a atenção dos espectadores. 
Em Vitae parallelae, Plutarco (¹) explicou que nos dias de Sólon (²), um dos grandes legisladores da Antiguidade, foi instituída uma premiação significativa para os atletas de Atenas que fossem coroados vencedores nos jogos:
"[Sólon] desejava que os homens exercitassem o corpo e instituiu uma premiação para os que mais se destacassem: cem dracmas para os vencedores nos Jogos Ístmicos (³), e quinhentas dracmas para os que triunfassem nas competições em Olímpia (⁴)." (⁵)
Parece, contudo, que os esportes não foram as únicas atividades físicas favorecidas pelas leis de Sólon; a caça, e especialmente a caça aos lobos, também merecia premiação, ainda que muito inferior: 
"[...] Quem aprisionasse um lobo devia ser recompensado com cinco dracmas; se trouxesse uma loba, com uma dracma." (⁶)
Essa lei pode nos parecer cruel e pouco ecológica. Mas, naqueles tempos já remotos, a proliferação de lobos podia ser uma ameaça real à segurança de pessoas e rebanhos. Ainda de acordo com Plutarco, ao concluir o assunto das premiações, era "muito antigo entre os atenienses o costume de combater os lobos" (⁷).
 
(1) c. 45 - 125 d.C. Nascido em Queroneia.
(2) Século VI a.C.; morreu em 560 a.C. 
(3) Os Jogos Ístmicos eram realizados em Corinto a cada dois anos. 
(4) Os Jogos Olímpicos eram realizados em Olímpia a cada quatro anos, desde 776 a.C. Funcionavam como uma espécie de calendário para os antigos gregos, de modo que o tempo era contado em "olimpíadas", ou seja, em ciclos de quatro anos. 
(5) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(6) Ibid.
(7) Ibid. 


Veja também:

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Pica-paus do Brasil

No passado, quando os uniformes militares eram confeccionados em cores fortes, os soldados que os usavam eram, às vezes, chamados "pica-paus", fosse por analogia ao colorido das aves, fosse pelo andar empertigado que ostentavam. Com o tempo, os uniformes chamativos foram substituídos por outros mais discretos, porque cores berrantes tornavam os soldados um alvo fácil durante as batalhas. 
Mas não, meus leitores, não é dessa espécie de pica-paus que falaremos hoje. As aves, mesmo, é que serão nosso assunto. Obra importante, escrita no começo do Século XVII, com o título de Diálogos das Grandezas do Brasil (¹), assim diz, no Diálogo Quinto, ao se referir à avifauna do país:
"Também há outros pássaros, aos quais chamamos pica-paus, por dar uns golpes com o bico nos troncos das árvores, tão grandes, que toda pessoa que os ouvir, se ignorar a qualidade do pássaro julgará sem dúvida ser machado, com que se corta madeira. [...]" (²)
Pois bem, andei fazendo umas fotos de pica-paus que encontrei por aqui, e quero mostrá-las a vocês. Há muito mais deles no Brasil, é claro, mas estes apareceram onde moro. Que tal?

Pica-pau-branco

Pica-pau-carijó

Pica-pau-de-topete-vermelho

Pica-pau-do-campo

(1) A autoria dos Diálogos das Grandezas do Brasil é atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 251.


Veja também:

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Barbeiro do Século XVI que usava a flora nativa para tratar doentes

Foi no Século XVI, quando Antônio Salema era governador no Rio de Janeiro. Tomou-se a decisão de pôr um fim aos ataques dos tamoios, destruindo-os por completo. Os que não morreram, foram escravizados. Gentil contato esse, entre colonizadores e indígenas!...
É aí que entra uma história interessante, contada por Joaquim Manuel de Macedo em Memórias da Rua do Ouvidor, atribuindo-a a certa tradição, ainda que pouco documentada. Um barbeiro, que também se declarava cirurgião, e cujo nome era Aleixo Manuel, participou do grupo de colonizadores que foi à guerra contra os indígenas e, como recompensa, trouxe para si dois escravos, uma menina de três anos e o avô, com mais ou menos sessenta. Fez batizar a ambos, chamando-os, respectivamente, Inês e Tomé.
Acontece que, naqueles tempos em que médicos de verdade não eram frequentes nas terras portuguesas na América, era ao barbeiro, que se afirmava cirurgião, que se recorria, não só para fazer a barba e cortar o cabelo, mas para extrair dentes, para pequenas cirurgias e até para medicamentos, mesmo sabendo que os da época eram poucos e, em geral, ineficazes. A esperança é a última que morre, e, muitas vezes, morria com os doentes.
Pois bem, o esperto Aleixo Manuel logo se deu conta de que, trazendo consigo o indígena que escravizara, tinha à disposição uma mina de ouro:
"Aleixo Manuel colheu em breve proveitoso e merecido prêmio de seu nobre e generoso impulso de amor ao próximo para com os dois infelizes. Tomé, mandado por seu senhor a trazer-lhe do monte do Desterro (depois de Santa Teresa) a famosa e ótima água de Carioca, internava-se na floresta, e nela recolhia ervas, folhas, cortiças e raízes de árvores, cujas virtudes medicinais, por experiência, embora rude, conhecia, e as levava ao cirurgião a quem indicava as moléstias em cujo tratamento elas aproveitavam." (¹)
Não, o tal barbeiro e cirurgião não se abalava a fazer um estudo científico das propriedades das plantas que o indígena Tomé lhe trazia, nem se supunha que tivesse conhecimento para tanto. Mas, em uma terra onde os recursos médicos faltavam quase completamente, o simples fato de que alguns desses vegetais, cujo uso Tomé conhecia empiricamente e/ou por tradição recebida de seus ancestrais, fossem efetivos para algumas moléstias, foi suficiente para fazer com que, em breve, Aleixo Manuel se tornasse famoso no Rio de Janeiro, e chegasse a prosperar, no contexto em que vivia:
"Com esses novos recursos terapêuticos, Aleixo Manuel começou, graças ao pobre escravo, a distinguir-se por admiradas vitórias médicas, ganhou fama, teve clínica extensa e rendosa, reconstruiu sua cabana que se tornou casa muito regular e de bonito aspecto exterior, bem que de um só pavimento, e adicionou-lhe a um lado uma cerca ou gradil de varas, fechando pela frente pequeno jardim e canteiros de legumes, seguindo-se para o fundo o quintal." (²)
Macedo, que era médico por formação, deve ter-se divertido ao contar essa história. Havia nela, contudo, um conceito de importância: a flora nativa do Brasil tinha e tem muito a oferecer. Mesmo bastante estudada, está longe de ter revelado, já, todos os seus segredos. 

(1) MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da Rua do Ouvidor.
(2) Ibid. 


Veja também:

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Como os antigos gregos estocavam o produto das colheitas

Considerem, meus leitores, a vida dos agricultores na Antiguidade. Quer a colheita fosse excepcionalmente boa, quer magra ou mesmo insuficiente, uma parte dela não poderia ser destinada ao consumo. Devia ser cuidadosamente guardada, até que chegasse a nova estação de plantio. Era semente para futura colheita, e não alimento. Quem não fizesse assim corria o risco de morrer de forme, porque, naquele tempo, não havia lojas de produtos para a lavoura em que sementes pudessem ser adquiridas.
Não bastava, porém, reservar uma parte da colheita de cereais para plantio na próxima temporada. Era preciso parcimônia no consumo, para que a safra durasse tanto quanto necessário. Por isso, a maneira de estocar os suprimentos era decisiva. Os gregos tinham um método que tanto contribuía para a conservação dos grãos, evitando, até certo ponto, que fossem assaltados por roedores e outras pragas, como evitava, também até certo ponto, o roubo e a pilhagem: as colheitas eram guardadas em vasilhas de cerâmica enormes, colocadas dentro da terra, e, em caso de quantidades muito grandes, utilizavam-se celeiros subterrâneos.
Ora, entre os gregos, quase todas as atividades humanas tinham um deus tutelar, e sabe-se que Hades (*) era a divindade das colheitas armazenadas. Mas não era ele o deus do mundo dos mortos? Sim, era, como igualmente se encarregava de tudo o que estivesse no subsolo, fossem coisas reais ou imaginárias. Por isso, era o deus do frio, escuro e úmido submundo dos mortos, como era o protetor dos grãos tão cuidadosamente estocados em seus domínios. Não por acaso, Hades era, ainda, o deus das riquezas. Entende-se: no tempo em que um homem era tanto mais rico quanto mais alimentos tivesse para si, para a família e para fornecer a outros, ter uma boa reserva de grãos era o tesouro mais valioso. Hades que cuidasse bem dele.  

(*) Plutão, entre os romanos. 


Veja também:

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Partidos Liberal e Conservador no Império do Brasil

Há um parágrafo em O Tronco do Ipê, de José de Alencar, que remete à realidade da política partidária do Império (¹):
"Ergueu-se discretamente um canto do reposteiro, e o correio participou achar-se na sala o senador X, parlamentar muito distinto, que mudava de partido regularmente duas vezes no ano: ao abrir-se a sessão declarava-se oposicionista e pouco antes de encerrar-se dava sua adesão ao governo."
Grande parte da política brasileira durante o Segundo Reinado foi protagonizada por dois partidos: o Liberal e o Conservador. Em que diferiam eles? Em quase nada. As divergências, quase sempre, não eram ideológicas; variavam, apenas, conforme o momento, ou seja, se o partido estava no poder ou se fazia oposição.
Portanto, não é surpresa alguma que autores da época fossem algo venenosos, implícita ou explicitamente, em suas referências à política partidária vigente. Machado de Assis, no conto A Ideia de Ezequiel Maia, de 1883, escreveu:
"[...] os legisladores parlamentares sentam-se geralmente em círculo, e as constantes alterações do poder, que tanta gente condena, não são mais que uma necessidade fisiológica e política de fazer circular os homens. [...]"
Agora, Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias da Rua do Ouvidor:
"Em política o Hotel da Europa é sempre do partido do freguês ou do hóspede que lhe chega; é sempre e ao mesmo tempo de todos os partidos, e em suas salas os liberais e os conservadores têm dado banquetes políticos, fazendo ecoar nelas os brindes e os vivas mais opostos." 
No Brasil imperial, de acordo com a Constituição de 1824 (²), era esta a duração de cada legislatura e cada sessão anual na Assembleia Geral Legislativa:
"Art. 17. Cada Legislatura durará quatro anos e cada Sessão anual, quatro meses.
Art. 18. A Sessão Imperial de abertura será todos os anos no dia três de maio."
Bem ou mal, era tempo suficiente para mudanças de pontos de vista e alternâncias no poder, coisa que, afinal, não era tão má assim. Podia, até, ser muito saudável. No restante do ano - antes que alguém pergunte - os senhores deputados tinham muitas outras ocupações. O deslocamento até a capital do Império, para muitos deles, ou de volta ao lugar de origem, consumia, por si, muito tempo, pela limitação dos meios de transporte da época. Os mares políticos, até ali tão navegáveis, começaram a ficar mais agitados a partir da década de 1870, com o fervilhar de novas ideias, com a pressão abolicionista e com o crescimento da propaganda republicana

(1) Alencar sabia do que falava, porque teve carreira política significativa no Império, dentro do Partido Conservador. 
(2) Título 4º, Capítulo I, Artigos 17 e 18. 


Veja também:

quarta-feira, 8 de maio de 2024

O que eram as "drogas do sertão"

É bom começar explicando o que eram as chamadas "drogas do sertão": plantas às quais se atribuíam propriedades medicinais, ou utilidade como corantes, ou em perfumaria, ou ainda como condimento, e que podiam ser encontradas nas matas do Brasil. Em tempos em que a indústria química e farmacêutica, como a conhecemos, ainda estava longe de existir, esses artigos eram considerados muito valiosos, e constituíam-se em um ramo de negócios interessante para uso na própria colônia, bem como para exportação. 
A lista de drogas do sertão é quase infinita. Veremos uns poucos exemplos, para aclarar o assunto. O jesuíta André de Barros, escrevendo no Século XVII, afirmou: 
"nasce por aqueles matos salsaparrilha, a decantada quinaquina, baunilha, que em compridas e sucosas vagens é fruto de todas as aves e bichos apetecido, escapando pouco para os homens. Também se acha abutua, e a casca chamada preciosa. [...] São algumas árvores aromáticas ou balsâmicas, brotando de si preciosos óleos, como o de copaíba em abundância. [...]" (¹).
Também os Diálogos das Grandezas do Brasil (²), escritos no começo do Século XVII, fazem referência às drogas do sertão, especificamente no Diálogo Quarto, em que Brandônio diz:
"[...] também se acham [...] maravilhosas drogas, como são pimentas de muitas sortes e castas, grandes e pequenas, e ainda de outras que são doces no sabor; gengibre (³), o qual produz a terra em abundância [...]; outro fruto que se apanha de uma árvore chamada envira, de que usam muitas pessoas [...], por ser excelente droga, a qual usurpa para si o efeito que faz a pimenta, cravo e canela, com tingir como açafrão [...]" (⁴).
Vem, então, a resposta de Alviano:
"Drogas são essas que fariam grande proveito, quando se pusessem em uso, e se navegassem para as partes estrangeiras [...]" (⁵). 
Quando os Diálogos foram escritos, o comércio com o Oriente já vinha, há tempos, dando mostras de exaustão. A mentalidade colonial, portanto, procurava encontrar no Brasil, substitutos à altura, que despertassem interesse no mercado internacional e que, afinal, resultassem em lucro. As "drogas do sertão" formaram parte desse cenário.

(1) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, pp. 82 e 83.
(2) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(3) Originário do Oriente, foi trazido ao Brasil por colonizadores, onde se adaptou muito bem (talvez até bem demais). 
(4) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, pp. 226.
(5) Ibid., p. 227. 


Veja também:

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O que é um bom governo?

Tucídides (²) 
Já houve quem pensasse - e ainda há quem pense - que não deveria haver governo algum. Mas, como a ideia parece inexequível, ou ao menos improvável, fazendo com que governos sejam inevitáveis, lanço aqui a questão: o que é, afinal, um bom governo?
Entre os gregos da Antiguidade esse assunto já era debatido, e Tucídides, em sua História da Guerra do Peloponeso, Livro VI, mencionou que em um discurso, o ateniense Nísias teria declarado que, em uma cidade-Estado (¹), um bom governante seria aquele que trabalhasse pelo que fosse benéfico a seus concidadãos; não sendo isso possível, que, ao menos, nada fizesse intencionalmente que fosse contrário aos interesses da cidade. Convenhamos: já era um passo importante.
No Século XIX, o francês Arsène Isabelle, que viajou pela América do Sul, escreveu: "Parece-me que o governo que mais respeitar o direito natural, o direito público e o direito das gentes, deve ser o melhor de todos" (³).
Agora, é com vocês, que leem este blog: que opinião têm sobre a existência de governos e como devem (ou deveriam) ser?

(1) A Grécia do tempo de Tucídides era formada por cidades-Estado, cada uma com seu próprio governo e forças militares também próprias.
(2) Cf. HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 17. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(3) ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 23.


Veja também:

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Fazendeiros que não moravam em fazendas

Período Regencial. Nada, ainda, de ferrovias - o transporte de mercadorias era feito por tropas de muares. Eram os pobres animais que tinham de conduzir, serra abaixo, até o porto de Santos, grande parte do que se produzia na Província de São Paulo e que se destinava à comercialização em outras Províncias ou no Exterior.
O fazendeiro, porém, rico senhor de terras, não morava em sua fazenda. Era, como se costuma dizer, absenteísta, para desgosto dos jovens estudantes que se assustam com o vocábulo. Não há motivo: designa, apenas, alguém que está ausente. Os fazendeiros, muitas, vezes, estavam mesmo, mas com um bom motivo. 
Embora o termo seja empregado frequentemente para fazendeiros do período áureo da exportação do café na segunda metade do Século XIX, não foi com eles que teve início o costume de residir na capital da Província, e não na fazenda. Nos dias do Período Regencial já era assim, conforme se pode ler nesta observação feita por Daniel P. Kidder (¹):
"Os subúrbios e os arredores de São Paulo são muito interessantes e neles encontram-se numerosas residências elegantes, cercadas de jardins. A cidade é o centro de convergência de toda a Província. Muitos dentre os fazendeiros mais abastados têm casas na cidade e só permanecem algum tempo na fazenda, pois, de São Paulo, podem melhor orientar a venda de suas safras, à medida que passam serra abaixo em demanda do mercado." (²) 
Portanto, o foco das atividades dos grandes fazendeiros estava na comercialização vantajosa, ficando para outros o cuidado com a produção. Era um modo de pensar a atividade agrícola, e tudo o que a ela se relacionava, muito diferente do que se verificara nos séculos precedentes. E, se já era assim nos dias da Regência, muito mais o seria quando a produção cafeeira de São Paulo crescesse e ganhasse o mundo, durante o Segundo Reinado. 

(1) Pastor e missionário metodista americano, Daniel P. Kidder esteve no Brasil entre 1837 e 1840. 
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 198.


Veja também:

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Conservação do feijão e do milho em fazendas no Século XIX

Produzir alimentos é essencial; conservá-los, adequadamente, para que possam ser consumidos até que nova safra esteja disponível, é tão importante quanto a produção.
Em meados do Século XIX, era este o procedimento adotado em fazendas do Brasil, particularmente no Sudeste, para a conservação do feijão que fora colhido, segundo relato de Augustinho Rodrigues Cunha, em Arte da Cultura e Preparação do Café:
"[...] Em muitas fazendas costumam expor o feijão, principal alimento, ao sol todos os oito ou quinze dias, conforme o tempo tem sido mais ou menos úmido; em outras costumam misturar com cinza. [...]" (¹)
Mais ainda:
"Eu pude observar que o feijão guardado em sacos expostos à luz diáfana se conserva perfeitamente bem, e sabe-se que guardado em barricas se deteriora em muito pouco tempo, a ponto de não servir. [...]" (²)
Quanto ao milho, o mesmo autor observou:
"[...] O milho se conserva melhor quando é esbulhado e batido, do que guardado em espiga. [...]" (³)
Havia, pois, muito trabalho a fazer. Era preciso, também, todo o cuidado para que os grãos fossem estocados longe do alcance de ratos e outros animais que pudessem danificar a safra. 
No sudeste brasileiro, feijão e milho não eram importantes apenas para alimentação de famílias senhoriais ou para venda à população de áreas urbanas próximas. Eram, com alguns acréscimos, a alimentação habitual dos escravos. Milho, inclusive, era cultivado para alimentar os animais. A conservação de modo apropriado, sob contínua vigilância, era o preço que se pagava para que alimentos não viessem a faltar.

*****

Segundo uma técnica antiga muito empregada no Brasil, milho e feijão eram cultivados simultaneamente, em roças com carreiras alternadas. Isto se faz ainda hoje, em áreas de agricultura de subsistência. A foto abaixo mostra o cultivo simultâneo de milho e feijão em 1911 (⁴). 



(1) CUNHA, Augustinho Rodrigues. Arte da Cultura e Preparação do Café. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 103.
(2) Ibid., p. 105.
(3) Ibid.
(4) OAKENFULL, J. C. Brazil in 1911. 3ª ed. London: Butler & Tanner, 1912. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


Veja também: