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quarta-feira, 18 de junho de 2025

Multa para quem não vinha às celebrações de Corpus Christi

Em ata da vereação de 12 de junho de 1632, na Câmara da vila de São Paulo, o escrivão Ambrósio Pereira registrou um requerimento do procurador para que se "condenassem os moradores que não vieram à vila dia do corpo de deus [sic], o que visto pelos ditos oficiais houveram todos por condenados em cento e sessenta [sic] cada um dos que não vieram nem enramaram suas ruas [...]" (*).
O escrivão omitiu no documento a unidade monetária em que os faltosos seriam multados. Diz apenas "cento e sessenta", mas, considerando-se o dinheiro que então circulava, é provável que fossem cento e sessenta réis. Não podia ser muita coisa, porque pouco era o dinheiro amoedado em circulação no Brasil Colonial. Mas, justamente por isso, a multa devia pesar. Se já havia tão pouco, a perda de algumas moedas significava muito.
Quem, então, ousaria correr o risco, não vindo à procissão e não "enramando" as ruas?
Lembrem-se, meus leitores, esses eram tempos do "cuius regio, eius religio". Não se cogitavam liberdades individuais em assunto de religião - isso é coisa do mundo pós-Iluminismo, pós-Revolução Francesa. Portanto, a participação nas festas religiosas não era apenas uma obrigação social, era tratada também como um dever civil, daí a imposição de multa a quem se abstinha.
Quanto aos motivos para ausências em Corpus Christi, podemos apenas fazer conjecturas. A maior parte da população de São Paulo vivia, então, em fazendas a alguma distância da vila, disso resultando que eventuais fenômenos meteorológicos um tanto exagerados podiam fazer com que moradores não ousassem sair de casa. O documento, porém, não refere quanto a tempestades ou inundações. Em um caso desses é provável que ata posterior contivesse um pedido de isenção da multa, com a devida explicação para a ausência. Isso, porém, não aconteceu. Alguém poderia estar doente, incapaz de enfrentar estrada ou deslocamento por rio para chegar à vila, mas também não há qualquer referência nesse sentido. Havia, é certo, os que estavam, contra todas as proibições, em expedições sertão adentro, estimulados pela ideia de capturar indígenas para escravização, e, nessa hipótese, ninguém seria tão atrevido a ponto de alegar o real motivo do não comparecimento.
Finalmente, podemos supor que as ausências ocorressem por razões de ordem religiosa. O Estado lusitano somente admitia uma religião, mas dizia-se, na época, que a vila de São Paulo estaria infestada de gente que, de catolicismo, só tinha a fachada - seria melhor pagar a multa e permanecer em silêncio.
Podemos apenas imaginar o que de fato ocorreu naquele Corpus Christi de 1632. Mas esse é, certamente, o lado divertido de um documento como este que hoje investigamos, para bisbilhotar algum aspecto da vida colonial, com sua simplicidade e contratempos.

(*) O documento citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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6 comentários:

  1. Olá!

    Fato curioso que eu desconhecia. Mas a lei é muito vaga, não é? Será que os ateus estariam isentos...? rs

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    1. Boa tarde, Eduardo Medeiros, quem ousasse se dizer ateu, naquela época, provavelmente acabaria os dias nas garras da Inquisição (ainda que ela nunca tenha ido a São Paulo, apesar das ameaças dos religiosos, sempre que entravam em confronto com os apresadores de indígenas para escravização).

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  2. Mais um tema muito interessante, o controle religioso no período colonial do Brasil. Nos leva a reflexões históricas e do tempo presente, com as atuais teocracias que combatem outras religiões. Pouco se comenta, mas - ao ler que "dizia-se, na época, que a vila de São Paulo estaria infestada de gente que, de catolicismo, só tinha a fachada" - lembrei das perseguições aos judeus (cristãos-novos) no Brasil.

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    1. Lembrou-se corretamente, meu amigo! É disso mesmo que falei. Vale recordar que, na mesma década desse incidente aqui mencionado, um corregedor que foi a São Paulo, a mando do donatário, interrogou expressamente os camaristas da vila sobre a eventual habitação de "mouros e judeus" entre eles. Os vereadores, é claro, negaram peremptoriamente.

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    2. Uma questão bem interessante que percebo nas fontes, apesar de nunca ter visto trabalhos acadêmicos tratando dessa comparação diretamente, é como as religiosidades de matrizes africanas conseguiram resistir com o uso de itens sagrados cristãos (algo que sua cosmologia sobrenatural permite) e os judeus não. Afinal, para a lógica sobrenatural judaica, não seria possível para eles usarem santos católicos em seus cultos particulares (e necessitavam de seus itens de celebração). Até o século XIX é muito nítido como as religiosidades dos negros conseguiram resistir mais, obviamente não totalmente, pelo uso dos itens católicos. Não era incomum casas de "feitiço" ou "candomblé" (termo já comum no XIX), serem permitidas por usarem Santos católicos. Apesar de nitidamente existir no período o conhecimento de que em muitos casos era apenas uma forma de disfarce das reais crenças (mesmo tendo existido também um sincretismo sincero, para além da fuga das perseguições - sincretismo com os Santos católicos e com a feitiçaria europeia). Era frequente a "vista grossa" para religiosidades de matrizes africanas. Algo que os judeus não tinham como conseguir, pela diferença fundamental na sua relação com o Sobrenatural.

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    3. Muito da religiosidade colonial (ainda que não de forma exclusiva) assinalava-se pela importância dada às aparências. Era necessário aparentar religiosidade, aparentar devoção, comparecer regularmente às celebrações nas igrejas, e assim por diante. Após a independência não houve, de imediato, muita mudança. O Brasil continuou a ter religião oficial, ainda que, com restrições, outras fossem toleradas. Em razão disso, a manutenção de uma aparência religiosa era muito importante socialmente. Se os escravos aparentavam devoção aos santos do calendário católico, não haveria, por certo, muitos senhores dispostos a investigar as práticas de seus cativos.
      Uma opinião minha, contudo, é que muitos senhores, mesmo sabendo de cultos sincréticos, não tinham interesse em uma repressão ostensiva, desde que, afinal, essas práticas ajudassem a manter os escravizados em submissão. Ações repressivas viriam, porém, se ficasse claro que as reuniões religiosas podiam reforçar a identidade de origem africana e favorecer o contato para planejamento de fugas. Mas, como eu disse, isso é uma opinião minha, não é uma área em que tenha me aprofundado a ponto de afirmar com grau absoluto de certeza.

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