sexta-feira, 29 de julho de 2016

O consumo de palmito por navegadores, náufragos e colonizadores do Brasil

Os portugueses que vieram ao Brasil na esquadra comandada por Cabral já estavam familiarizados com o uso do palmito como alimento. Como podemos ter certeza disso? É simples, há duas referências na Carta do Achamento, escrita por Pero Vaz de Caminha. Na primeira delas, lemos:
"Ao longo dele [um pequeno rio] há muitas palmeiras e não muito altas, e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles."
A segunda guarda alguma semelhança com a primeira, mas trata de uma ocasião posterior:
"Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por esse arvoredo até um ribeiro grande e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto, tamanho, tão vasto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos."
Como os leitores podem ver, as palavras de Caminha demonstram que ele já sabia o que é que havia dentro das palmeiras e apreciava o sabor - falaria duas vezes em "bons palmitos" se não gostasse deles?
Nas décadas subsequentes, quando naufrágios na costa do Brasil não eram eventos incomuns, a existência de palmeiras (e, portanto, de palmitos) era importante na alimentação de sobreviventes. Hans Staden, que esteve no litoral sul do Brasil no Século XVI em companhia de navegadores espanhóis, relatou que, procurando alguma coisa para comer, derrubaram uma palmeira para extrair dela o palmito. Isso prova que também entre eles o palmito era bem conhecido. Bandeirantes que iam ao sertão nos Séculos XVII e XVIII eram consumidores habituais de palmito. Entravam na mata e, com a ajuda de indígenas, tratavam de localizar as palmeiras adequadas. Náufragos e bandeirantes procuravam palmito por uma questão de sobrevivência, não como uma especialidade gastronômica. 
Apesar disso, entre os viajantes europeus que vieram à América do Sul no Século XIX, alguns davam mostras de que experimentavam palmito pela primeira vez. Foi o caso do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire. Ao percorrer terras do atual Estado do Rio Grande do Sul e do Uruguai pouco antes da independência do Brasil, observou:
"Esta manhã, o tenente da guarda de Angostura me fez comer cru o novo gomo de uma de suas palmeiras; o gosto me fez lembrar o da castanha crua, mas é infinitamente mais delicado."
A percepção do sabor é algo bastante individual, não há dúvida, mas acho discutível comparar o palmito à castanha crua - o que pensam os leitores? Não obstante, ao descrever o sabor como delicado, parece que Saint-Hilaire dava a ele sua aprovação. 
À parte disso, cabe registrar que, há séculos, palmeiras adultas vêm sendo cortadas apenas para extração do palmito. Não surpreende, portanto, que, com tanto desperdício, haja variedades ameaçadas de extinção.


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quarta-feira, 27 de julho de 2016

Arados, foices e o ciclo agrícola anual dos povos da Antiguidade

Agricultores egípcios do Antigo Império usando o arado (¹)

Egípcios, hebreus, assírios, babilônios, gregos, romanos - enfim, povos dedicados à agricultura - precisavam, ao longo do ano, dar atenção à tarefa apropriada a cada estação. Antes que as sementes pudessem ser postas no solo, era preciso preparar o terreno. Arados simples eram conhecidos já na Antiguidade. Eram feitos de madeira e, como regra, eram puxados por bois. Para que funcionassem bem, deviam ter ao menos três partes, ou seja, algum tipo de suporte para as mãos do agricultor que controlava a direção a ser seguida, um lugar ao qual eram presos os bois e uma parte pontiaguda que tocava o solo para que fosse revolvido e nele se abrisse um sulco.
Concluída a aradura do terreno, era hora de semear. As sementes eram postas nos sulcos abertos pelo arado e, de imediato, cobertas com terra (²). Agora era preciso esperar que nascessem e crescessem. Seria boa a safra? Cultivava-se trigo, cevada, centeio. No Egito também se plantava linho, para a confecção de tecidos indispensáveis para a nobreza, para os trajes dos sacerdotes e para enfaixar os corpos mumificados.
Os meses seguintes eram de expectativa, mas não de indolência. Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, aconselhou: "Sendo o tempo de lavrar a terra, vai com teus trabalhadores logo cedo, quer o solo esteja úmido, quer seco, e isso fará produtiva tua lavoura. Deves semear quando a terra está leve devido à estiagem, e limpar o terreno na primavera, para não ser difícil cultivá-lo outra vez quando chegar o verão." (³)
 Em algumas regiões as chuvas eram vitais para que a lavoura prosperasse, enquanto que em outras era preciso irrigar o terreno com a água de um rio. Segundo Heródoto, para cultivar trigo os assírios não podiam contar apenas com as chuvas, que eram escassas:
"Sendo pouca a chuva nos campos dos assírios, é suficiente apenas para fazer o trigo nascer e criar raízes; a terra é regada com a água do rio, mas como não há inundações anuais como no Egito, usa-se a força de homens e de noras (⁴)." (⁵)

Agricultores egípcios trabalhando na colheita (⁶)

Se tudo corresse bem, se não houvesse um ataque maciço de gafanhotos, se invasores nômades não pilhassem os campos, se a lavoura não fosse arruinada por uma guerra, a safra era tempo de festa. Para a colheita dos cereais era comum o uso de foices, instrumentos simples, às vezes feitos de madeira, já que nem todos os povos dominavam a metalurgia. No devido tempo, colhiam-se também uvas e azeitonas. Com os celeiros abarrotados, celebravam-se festivais em honra dos deuses relacionados à agricultura, cuja proteção, acreditava-se, iria assegurar, para o ano seguinte, suficiência de pão, azeite e vinho. Uma safra generosa de cevada era também recebida com satisfação, visto que garantia a abastança de certa bebida apreciadíssima desde priscas eras... 

(1) ERMAN, Adolf. Life in Ancient Egypt. London: Macmillan & Co., 1894, p. 427.
(2) Para evitar que se transformassem em uma farta refeição para bandos de aves.
(3) As citações de Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo e de Histórias de Heródoto que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Nora era um equipamento primitivo usado para retirar água de um rio.
(5) Heródoto. Histórias, Livro I.
(6) ERMAN, Adolf. Op. cit., p. 52.


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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Uma economia viciada em café

Há quem se diga viciado em café. A economia brasileira, da segunda metade do Século XIX até quase meados do Século XX, também era, mas num sentido diferente, é claro. 
Dizendo com simplicidade, se produção e exportação de café iam bem, então a situação econômica do Brasil podia ser considerada tolerável; caso contrário, era um desespero só. A pauta de exportações era até diversificada, mas havia poucos itens de importância, e, entre eles, o café reinava soberano. 
Pobre reinado, porém!...
Qualquer perturbação na atmosfera política da Europa era sempre acompanhada com temor, já que uma guerra repentina podia significar uma redução temporária nas compras de café brasileiro. Exemplo? Lá vai. O relatório apareceu na edição de 1871 do Almanaque Laemmert, e tratava, como se verá, da queda nas vendas de café em decorrência da Guerra Franco-Prussiana:
"No dia 2 de agosto [de 1870], depois de conhecidas as notícias trazidas pelo Araucania, de rompimento entre a França e a Prússia, anularam-se a maior parte, senão todas, as ordens para compra de café, cessou o movimento do mercado, que fechou no dia 4 em completa estagnação." (¹)
Outro fantasma, que provocava apreensão a cada inverno, estava relacionado à possibilidade da ocorrência de geada nas regiões produtoras. Nesse caso, o dano aos cafezais significava queda na produção. Caíam as exportações e, com a perda da safra, cafeicultores que dela dependiam para quitar a hipoteca da propriedade corriam o risco de perder tudo o que tinham, todo o trabalho e investimento feito em anos anteriores. Afonso de E. Taunay, em sua História da Cidade de São Paulo, fez menção aos prejuízos decorrentes da geada de 1870:
"A excepcional geada de 21 a 23 de junho de 1870 a que se seguiu outra a 6 de julho prejudicou imenso a lavoura cafeeira da Província [de São Paulo]. Causou notável depressão na arrecadação provincial que baixou de 805 contos, quantia para a época muito considerável." (²)
O vício em café era, como podem ver os leitores, muito perigoso para o País. A cura, extremamente dolorosa, demorou a acontecer.

(1) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871 - Suplemento, p. 120.
(2) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 288.


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sexta-feira, 22 de julho de 2016

Como os monçoeiros do Século XVIII caçavam veados

As monções cuiabanas eram expedições fluviais, principalmente do Século XIX, que iam ao interior do Brasil à procura de ouro. Quando saíam de Araraitaguaba (Porto Feliz - SP) e iniciavam o percurso do rio Tietê, levavam consigo uma boa quantidade de suprimentos. Mas a viagem era longa e trabalhosa, e não poucas vezes acontecia que uma canoa virava, e lá se ia, literalmente por água abaixo, a comida que deveria servir para muitos dias. Diante disso, era importante encontrar alternativas para alimentação, através da caça e da pesca. 
Francisco José de Lacerda e Almeida, astrônomo de Sua Majestade (¹), fez a rota de retorno das monções entre 1788 e 1789. Nessa viagem, teve ocasião de encontrar expedicionários que subiam, observando, a respeito deles:
"[...] Aqueles que sobem por estas águas, como vêm como mais vagar, não só porque são muitas as canoas que se ajuntam para reciprocamente se ajudarem, como porque também gastam muito tempo nas cachoeiras, têm muito tempo para fazerem numerosas e continuadas caçadas, com tanta abundância como facilidade, tanto de perdizes como de veados." (²)
Cervo-do-pantanal
Para o estômago dos monçoeiros, era a hora da desforra - não escasseiam os relatos de monções cujos expedicionários chegaram quase a morrer de fome. Curiosa, porém, é a observação de Lacerda e Almeida sobre o modo usado pelos astutos sertanistas quando queriam caçar veados:
"Encaminham-se os caçadores para as manadas de veados contra o vento, levando na cabeça algum barrete ou pano vermelho; algumas vezes param e levantam um braço, e outras agacham-se; os veados, que não estão acostumados a ver estes fantasmas, chegam-se a eles para os reconhecer, e ficam sendo vítimas de sua curiosidade." (³)
Deixem a sensibilidade de lado, leitores, e enfrentem os fatos: no Século XVIII havia pouquíssima gente neste mundo disposta ao vegetarianismo para salvar os animais, os monçoeiros esfomeados tinham, como máxima preocupação, encontrar comida e não havia quase ninguém que se mostrasse alarmado com a sobrevivência da fauna nativa. Se os exploradores do sertão não vacilavam em comer lagartos e macacos, não seriam as perdizes e os veados que seriam poupados. O que chama a atenção, assumindo a veracidade do relato de Lacerda e Almeida, é a inocência dos rebanhos de ungulados (as "manadas de veados"). Alguém acha que hoje seria assim?

(1) Foi um dos membros da comissão encarregada de demarcar os limites entre as terras sob domínio português e espanhol na América (1780 e 1781).
(2) ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Demarcação dos Domínios da América Portuguesa. São Paulo: Typographia de Costa Silveira, 1841, p. 76.
(3) Ibid., pp. 76 e 77.


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quarta-feira, 20 de julho de 2016

A importância atribuída aos sonhos pelos povos da Antiguidade

Quase todas as culturas da Antiguidade davam grande importância aos sonhos, entendendo que, através deles, era possível obter algum tipo de previsão do futuro, em virtude da interferência dos deuses. Como os tempos freudianos ainda estavam distantes, não espanta que monarcas que eram aclamados como divindades ou seus representantes, acabassem achando que seus sonhos eram assunto de Estado. Querem alguns exemplos, leitores?
Heródoto conta que Ciro, o Grande (¹), teve um sonho, certa noite, em que via um jovem de vinte anos, cujos ombros eram dotados de duas asas (²); com uma delas cobria a Europa e, com a outra, a Ásia. Reconheceu que o rapaz que via era Dario, filho de Histapes, e imaginou que estaria armando um golpe para destroná-lo. Pensou em liquidar o garotão, mas, ainda segundo Heródoto, o sonho prefigurava a morte de Ciro (³), e não uma conspiração. O detalhe curioso é que, no futuro, o jovem Dario finalmente seria rei, sendo conhecido como Dario I. 
Mais Heródoto e mais persas: Xerxes, rei dos persas, sonhou com um homem alto e belo que lhe ordenava fazer guerra aos gregos. A despeito do sonho, resolveu dizer a seus conselheiros que desistia da guerra. Na noite seguinte, novo sonho, com a mesma personagem, que lhe fez uma severa ameaça: "Você será castigado, caso não faça a guerra, e tão rápido como veio a ser um grande rei, será desprezado e humilhado." (⁴)
Para piorar a situação, um conselheiro de nome Artabano teve um sonho parecido. O resultado disso tudo, como os leitores sabem, é que os persas foram à guerra contra as cidades gregas. Ao final, foram derrotados - vejam em que é que deram os sonhos de Xerxes!
Entre os antigos romanos os sonhos eram, também, muito considerados. Vai aqui o caso de um sonho, relatado por Tácito, que ocorreu a Germânico, quando em guerra contra os bárbaros. Viu-se "oferecendo um sacrifício, cujo sangue lhe manchava a toga pretexta que usava, mas que era, em seguida, substituída por outra melhor, oferecida por sua avó Augusta" (⁵). Isso bastou para que Germânico declarasse que os deuses lhe eram favoráveis. Foi à guerra e, depois de várias escaramuças, derrotou os bárbaros, mas, logo em seguida, teve as forças que comandava destroçadas por uma brutal tempestade, ocorrida no Mar do Norte
Iríamos longe se quiséssemos enumerar outros sonhadores de tempos remotos. Tal era a importância que se atribuía aos sonhos, que gregos, persas, babilônios, romanos e muitos outros povos tinham gente especializada em interpretá-los. Malgrado o respeito que devemos ter pelas crenças alheias, não deixa de impressionar o fato de que ainda existe, hoje em dia, gente que tenta decifrar os próprios sonhos com base na "ciência" dos tão bem-sucedidos intérpretes que adulavam os monarcas da Antiguidade. Eram mesmo bons nisso: alguns de seus erros ajudaram a levar reinos e impérios ao colapso.

(1) Não foram poucos os monarcas que, ao longo dos tempos, foram chamados de "Grandes". Os bajuladores constituem uma das estirpes mais numerosas deste planeta.
(2) Se levarmos em conta que divindades da época eram frequentemente representadas com asas, o sonho não deveria ter causado tanta impressão em Ciro, a não ser pelo fato de que a gente de seu tempo achava que, desse modo, podia receber recados dos deuses.
(3) Os leitores percebem, com isso, que Heródoto também achava que os sonhos podiam predizer o futuro.
(4) Heródoto. Histórias, Livro VII.
(5) Tácito, Annales, Livro II. 
As citações das Histórias de Heródoto e dos Annales de Tácito que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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segunda-feira, 18 de julho de 2016

Igarapés

Igarapé na Amazônia brasileira

Vamos hoje, leitores, a uma realidade muito diferente do mundo urbano a que estamos habituados. Todos prontos?
Na Amazônia, os igarapés são os caminhos possíveis na floresta. Explica-se: As florestas inundáveis são chamadas igapós. Devido à densa vegetação, a maior parte dessas florestas é quase intransitável, pelo menos para espécimes humanos. No entanto, os "caminhos" praticáveis à passagem de canoas são chamados igarapés, e cumprem, na realidade amazônica, a função de ruas ou estradas - tudo coberto de água. A expressão igarapé significa, pois, "caminho da canoa". Em 1866, Elizabeth Cary Agassiz, que participou de uma expedição científica à Amazônia, anotou em seu diário: "o igarapé é o traço mais característico e admirável da paisagem da Amazônia" (¹).
Para quem vem de longe, a região parece, a princípio, um emaranhado de água e árvores, cujas dimensões extrapolam os limites da imaginação mais atrevida. Já para os povos da floresta tudo faz sentido, e encontrar caminho em meio às águas do rio e às raízes parcialmente emersas das árvores é tão natural quanto, para um de nós, de olho no GPS, achar um endereço em meio às ruas e avenidas de uma metrópole. É questão de hábito, de vivência, de adaptação ao meio.
No entanto, se a expectativa for, entrando na floresta, a de encontrar uma explosão de sons emitidos por animais e aves, logo virá uma surpresa: a floresta amazônica é estranhamente silenciosa, sim, de um silêncio pesado, quase palpável (²). Não quer dizer que seja isenta de vida. Muito pelo contrário. É que não há, ali, uma festa contínua, e sim o jogo da sobrevivência, em que ruídos inconvenientes podem ser fatais. Abram bem os olhos, visitantes, apurem os ouvidos, e logo perceberão uma multidão de seres vivos à espreita.

(1) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 362.
(2) Autores do passado eram enfáticos em relatar esse fenômeno. Posso dizer, por minha própria observação, que, ao menos nesse sentido, nada mudou.


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sexta-feira, 15 de julho de 2016

A escassez de mão de obra qualificada no Brasil Colonial

As primeiras povoações de colonizadores no Brasil começaram em meio a grandes dificuldades, embora seja verdade que, enquanto não houve tentativas de escravizá-los, indígenas mostraram-se muitas vezes amistosos, ajudaram espontaneamente no trabalho e atuaram como guias quanto ao uso de madeiras, frutos, e mesmo quanto a técnicas de caça e pesca, vitais para a sobrevivência em uma terra ainda desconhecida.
Não era fácil, porém, derrubar árvores (¹), construir casas, limpar uma área para lavoura. Algumas estimativas apontam para um tempo mínimo de dois anos para que uma povoação fosse completamente estabelecida, ao menos com o que havia de mais indispensável para os padrões da época. Existia, ainda, uma dificuldade adicional: eram raros, entre os colonizadores, os chamados "oficiais mecânicos", trabalhadores qualificados que pudessem comandar e supervisionar as tarefas. Para começar a Cidade da Bahia (Salvador), por exemplo, fundada por Tomé de Sousa para ser a primeira capital, vieram muitos funcionários públicos, soldados, alguns religiosos, uns tantos condenados a degredo, mas eram tão poucos os que sabiam ofícios que, segundo Varnhagen, foi necessário baixar um regulamento dispensando os oficiais mecânicos de alguns impostos pelo prazo de cinco anos, a fim de estimular sua vinda ao Brasil. A lista dos profissionais incluía "carpinteiros, calafates, tanoeiros, ferreiros, serralheiros, besteiros, pedreiros, cavouqueiros, serradores ou oleiros" (²), gente indispensável, já se vê, para as construções que a cidade precisaria ter e para a confecção de armas e utensílios necessários à sua defesa.
A necessidade de pessoas qualificadas para o trabalho não passou despercebida ao padre Manuel da Nóbrega, que liderava o primeiro grupo de jesuítas que veio ao Brasil em companhia de Tomé de Sousa. Escrevendo ao padre-mestre Simão Rodrigues em agosto de 1549, observou: 
"É necessário Vossa Reverendíssima mandar oficiais, e hão de vir já com a paga, porque cá diz o governador, que ainda que venha alvará de Sua Alteza para nos dar o necessário, que não o haverá para isto. Os oficiais que cá estão têm muito que fazer [...]. Portanto me parece que haviam de vir de lá [de Portugal], e se possível fosse com suas mulheres e filhos, e alguns que façam taipas, e carpinteiros. [...].
Serão cá muito necessárias pessoas que teçam algodão, que cá há muito, e outros oficiais." (³)
O tempo ficou encarregado de mostrar aos missionários jesuítas que melhor seria para eles que tivessem seus próprios oficiais mecânicos, independente de ajuda do governador-geral. Sendo grande a necessidade, alguns membros da Ordem exerceram ofícios - Simão de Vasconcelos menciona um religioso chamado Mateus Nogueira, que era ferreiro (⁴) - mas, à medida que a Companhia de Jesus prosperava no Brasil, passou a ter escravos que faziam o trabalho. Preocupados em que os escravos fossem casados segundo as leis da Igreja, os jesuítas compravam também escravas, que exerciam ofícios considerados femininos. Seguimos com o relato, de 1585, que é atribuído a Anchieta:
"Quanto aos escravos [...] também são oficiais de vários ofícios, como pedreiros, carpinteiros, ferreiros, carreiros, boieiros e alfaiates, e é necessário comprar-lhes mulheres por não viverem em mau estado e para este efeito na roça têm a dita povoação com suas mulheres e filhos, as quais também servem para plantar e fazer os mantimentos, lavar a roupa, anilar e serem costureiras, etc." (⁵)
Cabe ainda dizer que, se o clero entendeu que era mais fácil treinar cativos para os ofícios, por caminho semelhante andaram os laicos, até porque a ideia era duplamente lucrativa: escravos que tinham uma profissão trabalhavam em oficinas e a renda ia para as mãos dos senhores; o preço de mercado de um escravo que sabia um ofício mecânico era alto, face à escassez de mão de obra qualificada. A Nobiliarchia Paulistana menciona que, no Século XVII, Lourenço Castanho Taques foi proprietário de oficinas nas quais trabalhavam escravos:
"A sua casa era de numerosa escravatura, com lugar destinado para o lavor das oficinas, em que trabalhavam os mestres e oficiais de vários ofícios, seus escravos, de que percebia os lucros dos salários que ganhavam." 
É provável que esses escravizados fossem indígenas, já que essa era a regra em São Paulo nos tempos coloniais. Quanto aos salários, nem precisava dizer...
Há, ainda na Nobiliarchia, uma menção a outro paulista, João Pires das Neves, que também tinha oficinas:
"A sua fazenda era um como arraial pelas casas que tinha com numerosa escravatura de pretos e mulatos, e estes oficiais de artes fabris e mecânicas, os quais trajavam calçados."
João Pires das Neves faleceu em 1720. Distinguiu-se na São Paulo colonial, não porque seus escravos tivessem ofícios, que, como percebem os leitores, não era um fato incomum, mas por ter escravos de origem africana, numa localidade em que imperava a escravização de indígenas, e por permitir que seus escravos andassem calçados, contrariando uma tradição que vinha da Roma Antiga.

(1) Não havia motosserras, é claro; machados e serras manuais demandavam grande esforço físico. Sabe-se que, para os indígenas, cujas ferramentas eram apenas de madeira ou pedra, os machados e serras metálicos pareciam muito atraentes e eram alvo frequente para trocas com europeus.
(2) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 252.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 297 e 298.
(4) Ibid., vol. 1, pp. 176 e 177.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 415.


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quarta-feira, 13 de julho de 2016

Impressores, encadernadores e a revolução dos livros

Impressores trabalhando no Século XVI (¹)
Se você vivesse na Idade Média, leitor, e quisesse comprar um livro, precisaria encomendar uma cópia, que seria feita à mão. O tempo de espera, portanto, dependia, entre outros fatores, do tamanho do livro desejado.
Como o processo de cópia era lento e o material usado era dispendioso, os livros custavam caro, e poucos podiam pagar por eles. Isso, afinal, não era um grande problema para as "pessoas comuns", porque a maioria delas não sabia ler e, portanto, livros, para elas, eram objetos inúteis. Estudantes e mesmo eruditos precisavam recorrer às bibliotecas de conventos e universidades. Uma coleção que tivesse duzentos ou trezentos títulos já era bastante respeitável. Não deve causar espanto que, nesse tempo, em algumas bibliotecas os livros fossem presos a correntes que, por sua vez, eram ligadas às paredes. Isso evitava que algum estudioso apaixonado tentasse levar livros para casa, a despeito das dimensões pouco práticas das cópias manuscritas, com encadernações de couro e pesados fechos de bronze.
Tudo mudou a partir da invenção da prensa com tipos móveis. Correm histórias alternativas para esse acontecimento, mas foi Gutenberg quem conseguiu dar à imprensa um uso realmente viável em larga escala. Seu trabalho era limpo, rápido - para os padrões da época - e, embora os livros ainda fossem caros, eram muito mais acessíveis do que nos séculos precedentes, um feito que, em termos de importância, pode perfeitamente ser comparado ao descobrimento da América. Agora os livros eram fabricados em oficinas, nas quais novas profissões entravam em cena, destacando-se, entre elas, as de impressor e encadernador.
Cada página devia ser composta individualmente, mas, como os tipos ("letras") eram móveis, podiam ser reutilizados posteriormente para fazer outras páginas. Uma vantagem adicional é que, estando pronta a composição de uma página, podiam-se tirar tantas cópias quanto desejadas. Aplicava-se tinta à página, e, na prensa, um mecanismo relativamente simples (ponto para Gutenberg!), o texto era copiado em folhas de papel, que, em seguida, eram postas a secar. Tudo isso era trabalho do impressor.
Encadernadores fazendo seu trabalho em
uma oficina do Século XVI (²)
Depois que todas as páginas de um livro estavam impressas e secas, deviam ser juntadas - trabalho para o encadernador. Já havia quem fizesse essa tarefa antes da invenção da imprensa, mas dificilmente seria trabalho de tempo integral. Agora era diferente. Encadernadores tinham ampla ocupação, à medida que mais livros eram impressos e vendidos.
Simultaneamente, vieram à cena os comerciantes de livros, muitas vezes junto às próprias oficinas de impressores. Vendiam apenas as edições feitas ali mesmo, sendo, nesse aspecto, diferentes das livrarias como as conhecemos, nas quais são comercializadas obras das mais diversas editoras. Mas, convenhamos, era um grande progresso, principalmente se levarmos em conta que tudo isso acontecia em uma época - a do Renascimento - em que havia grande interesse pelas traduções de autores da Antiguidade Clássica (gregos e romanos), ao lado de uma expressiva produção original de autores que escreviam nos nascentes idiomas nacionais, deixando de lado a tradição de escrever apenas em latim. Novas ideias eram concebidas, escritas, impressas e postas a circular. Uma verdadeira revolução cultural, que não tardou a despertar preocupações no establishment religioso e monárquico. Procedimentos de censura não demorariam a aparecer.

(1) AMMAN, Jost. Aller Stande auf Erden. Frankfurt: Georg Raben, 1568.
(2) Ibid.


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segunda-feira, 11 de julho de 2016

A aplicação da pena de morte no Império do Brasil

O Código Criminal datado de 16 de dezembro de 1830, que vigorou no Brasil durante o Império, admitia a pena de morte para alguns (poucos) delitos (¹). Foi assim até bem adiantado o Século XIX, mas, já pelos anos setenta, D. Pedro II, fazendo uso do Poder Moderador, passou a comutar em prisão perpétua as sentenças capitais. É que nesse tempo, existindo forte movimento internacional em favor da abolição da pena de morte, o imperador agia, ao menos nesse aspecto, para que o País não ostentasse uma imagem de atraso.
A sentença de morte cabia, por exemplo, de acordo com o Código Criminal do Império, no caso de crimes de homicídio ocorridos sob circunstâncias que a legislação definia como agravantes. Era assim para os homens livres, já que, em se tratando de escravos, havia legislação complementar, implantada em 10 de junho de 1835 (²). De acordo com o Artigo 65 do Código, em qualquer caso as penas eram imprescritíveis.
A aplicação da pena de morte, sempre por enforcamento (Artigo 38), obedecia a um ritual fixado nos Artigos 39, 40 e 41:
"Art. 39 - Esta pena, depois que se tiver tornado irrevogável a sentença, será executada no dia seguinte ao da intimação, a qual nunca se fará na véspera de domingo, dia santo ou de festa nacional.
Art. 40 - O réu, com o seu vestido ordinário, e preso, será conduzido pelas ruas mais públicas até a forca, acompanhado do juiz criminal do lugar onde estiver, com o seu escrivão, e da força militar que se requisitar.
Ao acompanhamento precederá o porteiro, lendo em voz alta a sentença que se for executar.
Art. 41 - O juiz criminal que acompanhar, presidirá à execução até que se ultime, e o seu escrivão passará certidão de todo este ato, a qual se ajuntará ao processo respectivo."
Embora não mencionada explicitamente, era admitida assistência religiosa ao sentenciado, desde que solicitada ou consentida por ele.
Pelo menos dois fatos interessantes podem ser notados no rito: o primeiro era que à execução devia ser dada toda a publicidade, com o fim de intimidar os potenciais candidatos a criminosos; o outro aspecto é que em tudo devia ser ostentado o mais estrito cumprimento das leis, um elemento muito importante quando se deseja evitar contestações, venham elas de onde vierem.
Morto o sentenciado, o Código Criminal, em seu Artigo 42, estabelecia em que condições o corpo poderia ser sepultado:
"Os corpos dos enforcados serão entregues a seus parentes ou amigos, se os pedirem aos juízes que presidirem a execução, mas não poderão enterrá-los com pompa, sob pena de prisão por um mês a um ano."
Em 1829, quando, apesar da Independência, na falta de leis nacionais eram ainda seguidas as Ordenações do Reino, Filipe Patroni, em uma viagem, encontrou exposta a cabeça de um indivíduo que fora executado, e fez do episódio esta descrição:
"Seguíamos para Itacambira, quando encaramos um espetáculo horroroso: era a cabeça de um cruel assassino, que expiara com o último suplício três mortes feitas em um momento, numa só casa, numa só família [...]. Foi preso com facilidade, e sendo conduzido à capital da Província (³), aí sofreu a pena de talião, posto que só uma vez morresse, tendo feito, aliás, perder três vidas; seria melhor que ainda hoje vivesse trabalhando para pagar os danos que causou seu crime." (⁴)
Já sei em que alguns dos leitores estarão pensando: Haveria, neste caso, algum trabalho que pagasse o dano? A questão fica, é claro, sem resposta. O Código Criminal do Império adotou, porém, o princípio de que, tanto quanto possível, o criminoso deveria, trabalhando, dar uma satisfação à sociedade que, com sua conduta, agredira, de modo que, para a grande maioria dos crimes graves, era prevista a pena de galés perpétuas ou por tempo determinado (⁵), ficando a sentença de morte reservada a casos extremos, segundo interpretavam os legisladores da época.

(1) Antes dele, recorria-se, mesmo após a Independência, às prescrições das Ordenações do Reino, em que a pena capital era muito mais comum.
(2) A aplicação da pena de morte especificamente em caso de guerra era regida pela lei de 18 de setembro de 1851.
(3) Minas Gerais.
(4) PARENTE, Filipe Alberto Patroni Martins Maciel. A Viagem de Patroni Pelas Províncias Brasileiras 2ª ed. Lisboa: Typ. Lisbonense, 1851, pp. 23 e 24.
(5) Em que o sentenciado, preso com correntes, executava os trabalhos que lhe eram determinados.


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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A chegada da locomotiva a vapor

Locomotiva a vapor (¹)
A fumaça e o tschuk-tschuk-tschuk característico não deixavam dúvidas: dobrando uma leve curva, lá vinha a locomotiva a vapor, a primeira a chegar àquelas paragens, trazendo consigo dois carros para os passageiros ilustres da viagem inaugural. Há algum tempo, trabalhadores haviam suado debaixo do sol intenso para a implantação dos trilhos. Agora, finalmente, ela aparecia, e toda gente corria rumo à pequena estação para ver a maravilha moderna. Bandeirinhas coloridas que o vento agitava mostravam que esse era mesmo um dia de festa. Quem é que iria querer economizar papel de seda nessa ocasião?
 Um cheiro intenso de carvão queimado tomava conta dos arredores. Promessas de progresso, desenvolvimento, um futuro melhor para a vilazinha interiorana andavam de boca em boca. Bandos de meninos curiosos chegavam tão perto quanto podiam da máquina fumegante. Os mais velhos, com mais compostura, olhavam admirados. Havia até quem se persignasse - era a primeira vez que se via alguma coisa correndo por conta própria, sem ser puxada por cavalos, mulas ou jumentos.
Tschuk-tschuk--tschuk---tschuk----tschuk...
A estrela do dia parece resfolegar. Estará cansada? 
Ouve-se o estalar dos fogos de artifício. O pequeno ajuntamento aplaude os discursos grandiloquentes dos figurões que desejam ser vistos como porta-vozes da modernidade (²). Aqui e ali, circulam comentários do povinho embasbacado.
 Depois da necessária manutenção, maquinista e foguista estão novamente a postos, e lá se vão locomotiva, carros, passageiros. Ouve-se um longo apito e, aos poucos, o tschuk----tschuk---tschuk--tschuk-tschuk da composição que, acelerando, deixa a vila para trás, indo causar espanto em outra povoação.
Nem tudo, porém, é festa. Há medo, também. É sempre assim com as grandes novidades.
Antes das ferrovias, eram poucas as pessoas que viajavam. Havia os tropeiros, é certo, que viajavam continuamente por dever do ofício. Havia gente abastada que ia, de vez em quando, à capital do Império. O cúmulo do luxo cabia aos grandes monocultores que, pelo menos uma vez na vida, reuniam a família e, cruzando o Atlântico, iam à Europa. As coisas que vinham contando deixavam a gente comum boquiaberta, até porque gente comum dificilmente teria como interromper a rotina de trabalho, quase sempre na roça, para ir correr mundo. Compreende-se que, diante das novas perspectivas, havia quem temesse o desmoronar do mundo que até ali parecera tão seguro. Era modorrento, sim, mas isso só sabiam os que já haviam visto algo mais do que a vila e as fazendas ao seu redor.
Havia, além disso, o medo da velocidade. Não se riam, leitores. Uma locomotiva a vapor do Século XIX, desde que em boa forma, podia desenvolver uns cinquenta quilômetros por hora, o que era alucinante para a época. Tenham em mente que a percepção do que é uma "velocidade alucinante" tem mudado muito nos três últimos séculos. Havia quem jurasse que jamais poria os pés em um carro ferroviário. Havia quem, dentro de um trem, tivesse forte vertigem, e não era por causa do balanço desconfortável dos carros e vagões. Montar uma mula parecia infinitamente mais seguro.
Não se pode, contudo, subestimar as mudanças que as ferrovias introduziram no Brasil. As notícias que, no melhor dos casos, viajavam a cavalo, passaram a vir com os trens. Jornais da capital, que podiam antes levar semanas para chegar, vinham no mesmo dia da edição, ou, se tanto, no dia seguinte. Para um Brasil em que havia ainda escravidão, uma mudança notável na demografia de algumas regiões foi introduzida com as levas quase contínuas de imigrantes europeus que o transporte ferroviário fazia chegar às terras do chamado "Oeste Paulista". Eram trabalhadores livres, que pretendiam encontrar ocupação e um lugar onde viver com dignidade, ainda que, para muitos deles, os anos seguintes se provassem de amarga decepção.
Ferrovias, é fato, foram implantadas com a ideia de melhorar as condições de transporte para a produção agrícola que se queria exportar - quem é que poderia, em sã consciência, achar que carros de bois, mulas e escravos eram o modo mais adequado de levar café aos portos? Mas foram, também, um fator poderoso de urbanização e de mudanças, ainda que lentas, nos hábitos de consumo, pela maior variedade de mercadorias que tornavam disponíveis. Viajar, de vez em quando, já podia andar na perspectiva de um número muito maior de pessoas. Novas ideias políticas transitavam pelos trilhos de ferro.

(1) Esta locomotiva a vapor foi restaurada pela ABPF - Associação Brasileira de Preservação Ferroviária.
(2) Em alguns casos, houve inaugurações portentosas para os padrões da segunda metade do Século XIX, em que o trem da viagem inaugural levava o próprio imperador D. Pedro II e outras figuras de destaque do Império. 


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quarta-feira, 6 de julho de 2016

Os homens da idade de ferro

Os gregos, segundo conta Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias, diziam que deuses e homens teriam vindo à existência pela mesma época. Os primeiros homens, pertencentes à Idade de Ouro, tinham uma vida maravilhosa, seus trabalhos agrícolas eram produtivos, faziam grandes festas, não sofriam com o envelhecimento e, na hora de morrer, simplesmente morriam - de acordo com Hesíodo, "como se tivessem dormido"
Essa geração excelente, porém, não durou para sempre. Veio, depois dela, a Idade de Prata, cujos homens eram inferiores à geração precedente, tanto no físico como no intelecto, e, entre muitos outros defeitos, ostentavam o péssimo hábito (para ira de Zeus, filho de Cronos), de não dar grande importância aos deuses e nem de oferecer sacrifícios em sua honra. Não admira que também tenham desaparecido (foram absorvidos por Zeus, segundo o relato de Hesíodo).
Então chegou a vez dos homens da Idade de Bronze. Eram uns grandes encrenqueiros, viviam a perpetrar ofensas, eram muito fortes e, nas palavras de Hesíodo, "como eram capazes de trabalhar o bronze, tinham armas [...] de bronze, porque não se conhecia ainda o negro ferro".
Nesse ponto é que teriam aparecido os semideuses ou heróis, valentes, hábeis na guerra, como foram, por exemplo, os que lutaram contra Troia por causa do rapto de Helena, ou os que diante de Tebas porfiavam pelos rebanhos de Édipo.
Finalmente veio a geração da Idade de Ferro, à qual Hesíodo, mesmo lamentando, admitia pertencer. Atormentados pelos deuses, os homens viviam/vivem cheios de aborrecimentos e não tinham/têm tranquilidade, quer nas horas do dia, quer nas da noite. Afirmando que no futuro essa gente ótima também acabaria destruída por Zeus, Hesíodo explicou:
"Filhos perversos não terão qualquer respeito pelos pais idosos, e sem qualquer temor à vigilância dos deuses, insultarão àqueles que os geraram. [...] Uma cidade saqueará a outra, homens violentos terão preeminência, a piedade, os atos justos e as ações meritórias desaparecerão [...], prevalecerão o engano e o perjúrio." (*)
Vejam, leitores, que Hesíodo era mesmo um sujeito cheio de imaginação. Onde é que já se viu supor a existência de uma geração de homens assim?

(*) As citações de Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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segunda-feira, 4 de julho de 2016

Um homem do Século XVIII que não queria ser nomeado para cargo público

Os moradores das vilas e cidades coloniais eram ávidos por cargos públicos. Explica-se essa preferência, não por fervor cívico, mas pelo desejo de receber o pagamento em moeda corrente, um privilégio que pouca gente tinha, uma vez que quase não havia dinheiro amoedado circulando no Brasil. 
Diz-se, porém, que para toda regra há exceção, e houve, no caso do paulista João Martins Barros, um sujeito pra lá de sui generis. Queria ser padre, e até estudou para isso, mas mudou de ideia. Mesmo assim, no dizer de Pedro Taques de Almeida Paes Leme na Nobiliarchia Paulistana, "conservou-se sempre na resolução de não tomar estado conjugal". Sendo homem muito estimado, não faltou quem lembrasse de seu nome para um cargo público, mas João Martins Barros recusou a nomeação - não queria ver-se metido em encrencas políticas. Diz a Nobiliarchia:
"Para se livrar de entrar muitas vezes em roda de coices [sic], com disposições e governo do senado de sua pátria, pelo despotismo que praticam [...] muitos ministros corregedores da comarca de São Paulo, sacrificou-se a ser guarda-mor das terras e águas minerais, de que teve provisão pela Secretaria do Rio de Janeiro, para gozar da liberdade e quietação fora do ônus de republicano."
Tendo herdado dos pais uma fazenda, João Martins Barros estabeleceu um engenho de açúcar (se com roda d'água ou com bois, não sabemos, mas é certo que não era "roda de coices"...). Lá viveu em paz, ao que parece, mas não por muito tempo.
Paulistas cresciam ouvindo histórias dos sertanistas que, tendo explorado o interior do Brasil à procura de ouro ou capturando índios, voltavam para contar as aventuras para a gente boquiaberta que não arredara pé de sua povoação nativa. Compreende-se, pois, que o sonho acalentado por quase todo menino, assim que chegava à adolescência, era juntar-se a uma bandeira e ir, também, à caça das próprias histórias para contar. Mas já o Século XVIII passava da metade, e a época de ouro das bandeiras, em mais de um sentido, ia ficando para trás. 
Então... Continuava Martins Barros a fazer produtivo o seu engenho, quando um acontecimento inesperado mudou tudo. Estando o capitão-general de São Paulo à procura de um homem (¹) que comandasse uma expedição fluvial ordenada por El-Rei, houve quem indicasse o quase padre e que agora era senhor de engenho, "com o concurso", informa a Nobiliarchia, "de ser geralmente amado de seus nacionais e dos seus vizinhos moradores da vila de Sorocaba, cujos paulistas haviam de formar o corpo de trezentos soldados escolhidos para a dita expedição".
Não há como dizer o que é que foi decisivo para arrancar João Martins Barros da paz de sua fazenda, se a honra da nomeação para tão importante empreendimento, se algum senso de dever, se a vontade de provar a si mesmo que podia ser, também, um sertanista capaz, como os paulistas de antigamente, ou se tudo isso e mais alguma coisa. Fato é que, segundo a Nobiliarchia Paulistana, "não pôde João Martins isentar-se desta eleição, e ficou encarregado de todo o trabalho do comando desta expedição que formou um corpo de trezentos e vinte soldados, e no dia 28 de julho de 1767 voltou com as canoas do seu transporte pelo rio Anhamby, que em São Paulo se chama Tieté, e os castelhanos da Província do Paraguai nos seus mapas nomeiam Piquiri." (²)
Ora, meus leitores, o mais curioso disso tudo é que o homem que não queria cargo público pelas razões já declaradas precisou deixar a velha teimosia e foi, para efeitos de comandar a expedição, nomeado capitão-mor. Mas, como aqui se trata da vida real e não de ficção, não é possível terminar com um final feliz: ao que se sabe, João Martins Barros morreu no sertão, na longínqua localidade (³) que, com ordem real, estabelecera, e que, por parecer inviável pela distância, falta de comunicações e insalubridade foi, algum tempo depois, desmantelada.

(1) A Nobiliarchia Paulistana traz: "...um paulista com as prendas que o fizessem digno da importante expedição ao sertão [...].".
(2) A grafia antiga foi mantida em "Tieté" e "Anhamby", para que os leitores tenham uma ideia de como é complicada a questão de determinar quais eram, de fato, os topônimos adotados antigamente.
(3) A Nobiliarchia Paulistana refere-se à povoação como "Guatemim". Tratava-se do Presídio de Iguatemi, uma praça militar que o governo lusitano tencionava manter para assegurar as fronteiras com a América Espanhola, e que foi extinta porque as doenças entre a população, os constantes ataques indígenas e as pragas na lavoura consumiam tantas vidas e recursos que era impossível fazê-la prosperar.


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sexta-feira, 1 de julho de 2016

Descoberta e desenvolvimento da fotografia infravermelha

Sir William Herschel, em 1800, percebeu que a radiação não era um fenômeno restrito apenas ao espectro visível - havia algo mais que era preciso explorar. Mas, para que alguém pudesse chegar à fotografia infravermelha, era necessário, primeiro, que a própria fotografia existisse, e em 1800 ela nem ainda havia sido inventada. Foi ao longo do Século XIX que essa arte-ciência surgiu e se desenvolveu. Muitos processos foram testados, mas alguns (daguerreotipia, calotipia, colódio úmido, etc.), pela praticidade e pela beleza dos resultados, acabaram se impondo.
Fotógrafos desse tempo precisavam ter verdadeiros laboratórios de química e, para saber se alguém estava envolvido com fotografia, bastava olhar para as pontas dos dedos da criatura, porque os reagentes usados para a obtenção de uma gama de efeitos deixavam marcas bem pouco discretas.
Toda essa diversão, digo, todo esse trabalho tinha por objetivo aperfeiçoar a técnica de reprodução de imagens dentro do espectro visível. Já a fotografia infravermelha viria a lidar com uma região do espectro que simplesmente não pode ser vista a olho nu, ou seja, na faixa entre 700 e 1200 nanômetros. Por isso é que as imagens obtidas resultam surpreendentes, em particular quando capturadas sob forte luz solar. É aí que a vegetação, por mais verde que seja à luz visível, aparenta estar coberta de neve, mesmo sob o mais esplendoroso sol de um verão tropical: trata-se do "Efeito Wood", uma homenagem a Robert Williams Wood, primeiro pesquisador a publicar uma imagem infravermelha. Foi no ano de 1910 e, para as condições da época, constituiu-se em verdadeira proeza.
Nas décadas imediatas a fotografia infravermelha progrediu bastante, à medida que a produção de placas e filmes com a sensibilidade adequada veio a ser possível, em virtude da descoberta de substâncias como a criptocianina, em 1919 e as di e tri-carbocianinas em 1923. Filmes comerciais, porém, somente apareceram na década de 1930. Como os leitores devem imaginar, a era da fotografia digital trouxe grandes novidades também para as imagens infravermelhas, e hoje elas têm uma série de aplicações que vão muito além da arte, incluindo uso militar, em mapeamento de precisão, na medicina forense e na astronomia.
Para diversão dos leitores, vão aqui algumas fotografias infravermelhas de locais de interesse histórico.

1. Igreja de Sant'Ana, reconstruída em Paracatu - MG. A original, do Século XVIII, foi demolida.
Fotografia infravermelha a 680 nanômetros.



2. Catedral de Nossa Senhora do Amparo, cidade de Amparo - SP. Foi construída durante a fase áurea de exportação do café. 
Fotografia infravermelha monocromática a 720 nanômetros.



3. Casario colonial no centro histórico de Pirenópolis - GO. 
Fotografia infravermelha a 720 nanômetros.



4. Casario Colonial em Corumbá de Goiás - GO.
Fotografia infravermelha a 680 nanômetros.



5. Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário em Pirenópolis - GO. A construção original do Século XVIII foi bastante danificada por um incêndio, de modo que a igreja precisou ser parcialmente reconstruída.
Fotografia infravermelha a 720 nanômetros.



6. Estrada do Norte, rota de tropeiros do Século XVIII na Serra dos Pireneus, Estado de Goiás.
Fotografia infravermelha a 720 nanômetros.



7. Igreja de São Sebastião, construção do Século XIX em Planaltina - DF.
Fotografia infravermelha a 720 nanômetros.



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