sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Notícias (boas ou ruins) nem sempre viajaram depressa

Um ditado popular antigo afirmava que boas notícias andavam a pé; já as ruins, viajavam a cavalo. Coisa proveniente do tempo em que o meio de transporte terrestre mais rápido para as novidades era mesmo um bom equino, desconsiderando-se as fofocas que andavam de boca em boca. Ora, a despeito desse ditado popular, é possível constatar que, no passado, as notícias, quer fossem agradáveis, quer muito más, ou ainda neutras, viajavam com lentidão que deixaria a gente do Século XXI desesperada. Senão, vejamos:

1. A Restauração Portuguesa, pondo fim à União Ibérica, ocorreu em 1º de dezembro de 1640. A notícia desse acontecimento somente chegou à Cidade da Bahia (Salvador), primeira capital do Brasil, em 15 de fevereiro de 1641.

2. A Revolução Liberal do Porto, que começou em 24 de agosto de 1820, só foi noticiada no Rio de Janeiro (onde estava o rei D. João VI) em outubro do mesmo ano.

3. A Revolução de Julho, ocorrida na França entre 27 e 29 de julho de 1830, pôs fim à chamada Restauração Francesa e ao governo de Carlos X; a notícia desses acontecimentos chegou ao Rio de Janeiro no mês de setembro seguinte, mais precisamente no dia 14.

4. A abdicação de D. Pedro I ocorreu no dia 7 de abril de 1831; porém, afirma-se que a notícia desse fato somente alcançou a então Província do Maranhão no dia 14 de maio do mesmo ano, ou seja, um mês e uma semana depois. Mais demorada ainda foi a chegada da mesma notícia à Província do Pará: ocorreu em 22 de maio de 1831, mediante informação levada por uma embarcação americana que lá aportou.

5. O diplomata brasileiro José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão do Rio Branco, faleceu no Rio de Janeiro em 10 de fevereiro de 1912, mas esse fato só alcançaria Corumbá três dias mais tarde.

Penso que esses exemplos já são suficientes.
Apenas para concluir, vale ressaltar o fato de que, até bem adiantado o Século XIX, uma notícia corria o risco de viajar mais depressa da Europa ao Brasil do que desde o Rio de Janeiro a alguma das capitais de províncias do Norte ou Nordeste do País, dependendo, inclusive, de que eventualmente uma embarcação de bandeira norte-americana se encarregasse de levar as novidades ao fazer a viagem da América do Sul até a costa leste dos Estados Unidos. Esse terrível problema somente começou a ser sanado na década de setenta do Século XIX, com as primeiras ligações telegráficas via cabo submarino com províncias do Nordeste brasileiro e com a Europa. A partir daí, as notícias começaram a chegar mais rapidamente à imprensa da capital do Brasil, não mais dependendo da vinda de jornais europeus com semanas de atraso. O mesmo aconteceu, é claro, no sentido inverso.
Pode ser, no entanto, que alguém recordasse com melancolia dos velhos tempos. Sim, senhores leitores, é, ao que parece, a ideia que expressou Machado de Assis, escrevendo em sua coluna "A Semana", na Gazeta de Notícias, edição de 11 de novembro de 1894:
"Oh! a sensação do tempo! A vista dos soldados que entravam e saíam de semana em semana, de mês em mês, a ânsia das notícias, a leitura dos feitos heroicos, trazidos de repente por um paquete ou um transporte de guerra... Não tínhamos ainda este cabo telegráfico, instrumento destinado a amesquinhar tudo, a dividir as novidades em talhadas finas, poucas e breves. Naquele tempo as batalhas vinham por inteiro, com as bandeiras tomadas, os mortos e feridos, número de prisioneiros, nomes dos heróis do dia, as próprias partes oficiais. Uma vida intensa de cinco anos. Já lá vai um quarto de século. Os que ainda mamavam quando Osório ganhava a grande batalha, podem aplaudi-lo amanhã revivido no bronze, mas não terão o sentimento exato daqueles dias..."
Machado estava a referir-se ao modo pelo qual as notícias iam e vinham na década de sessenta do Século XIX, durante a Guerra do Paraguai (*). E tinha saudades, ainda que com uma ponta de ironia.

(*) Guerra contra la Triple Alianza, na visão paraguaia.

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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Até a enxada era ruim

A deficiência das ferramentas usadas na lavoura durante o Período Colonial


Sabe o que é uma enxada? Sim, aquela ferramenta agrícola bem simples, usada para remover o mato e para cavar a terra.
Pois é, até ela, no Período Colonial, tinha deficiências que atrapalhavam o rendimento do trabalho, de acordo com José Caetano Gomes, um autor que pretendia introduzir melhorias no processo de produção açucareira, e que afirmava que, com as enxadas usadas correntemente no Brasil, era difícil fazer covas apropriadas ao plantio da cana-de-açúcar:
"É certo que com a enxada que se usa no Brasil, que é talvez a primeira que se inventou, e onde não chegou ainda a enxada de Luca, francesa ou inglesa, é um pouco difícil fazer esta espécie de covas; são precisos de vinte a trinta golpes, quando com qualquer das mencionadas, bastam três ou quatro. A nossa enxada é fatigante, o trabalhador anda curvado, e tendo o ferro de cinco a seis libras, ele carrega com vinte ou mais nas cadeiras; nesta espécie de serviço o homem baixo tem vantagem ao homem alto, a quem é preciso maior curvatura e, por consequência, dobrado esforço." (¹)
A ideia do autor é que um modelo diferente fosse adotado. Devia ser semelhante a uma pá que, no seu entender, daria maior eficácia ao trabalho. Uma ilustração que aparecia na sua Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar demonstra o tipo de enxada proposto:

Modelo de enxada proposto por José Caetano Gomes para a agricultura canavieira (²)

O detalhe curioso, aqui, é o trabalhador que é retratado usando a enxada. É branco e com trajes antes compatíveis com os usos dos senhores que dos cativos. Na prática, todo o trabalho pesado na lavoura canavieira era feito por escravos, predominantemente de origem africana, embora indígenas do Brasil também fossem vistos entre os cativos. Aliás, estes foram mais comuns nas regiões meridionais da Colônia e em tempos nos quais o tráfico de africanos era muito difícil, como ocorreu durante o confronto com holandeses no Nordeste.

(1) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, p. 13.
(2) Ibid.


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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O que acontecia a um escravo que matasse seu senhor

Legislação criada no Período Regencial punia severamente escravos que atentassem contra seus senhores e respectivas famílias


Além dos casos em que o Código Criminal do Império previa a aplicação da pena de morte para qualquer criminoso, fosse ele de condição livre ou sujeito à escravidão, havia no Brasil, desde 1835,  uma legislação complementar que determinava a sentença capital exclusivamente para escravos em alguns casos específicos, na intenção de garantir a integridade física dos senhores, de suas famílias e de funcionários diretamente relacionados à manutenção da rotina de trabalho em uma propriedade, geralmente agrícola.
A lei de 10 de junho de 1835, em seu Artigo 1º, estipulava:
"Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas que matarem, por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morarem, a administrador, feitor, e às suas mulheres que com eles viverem."
Mas não era só. Delitos menores também receberiam punição exemplar:
"Os escravos ou escravas, que ferirem ou cometerem ofensas físicas levemente contra seu senhor, sua mulher, descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, contra administrador, feitor e às suas mulheres, serão castigados com açoites em proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes."
A lei de 10 de junho de 1835 não vinha à existência por acaso. Ela apareceu em cena após a famosa revolta dos malês, ocorrida na Bahia em janeiro do mesmo ano de 1835, levando a um temor generalizado por todo o Império de que os escravos, muito numerosos, pudessem rebelar-se contra o sistema de trabalho a que estavam submetidos. Que proporções teria uma revolta dessas? Podia, de fato, acontecer? Ninguém sabia a resposta (*). O medo, porém, era grande, sinalizado pelo endurecimento da legislação destinada a reprimir qualquer ato de rebelião do chamado "elemento servil".

(*) Os leitores devem lembrar-se, também, de que, dentro do Período Regencial (1831 - 1840) não foram poucas as revoltas políticas ocorridas em vários pontos do Brasil. O contexto, portanto, era de instabilidade.


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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Como os jesuítas ensinavam aos indígenas a doutrina da Trindade

O Padre Manuel da Nóbrega, jesuíta que veio ao Brasil com Tomé de Sousa em 1549, era, apesar de jovem, já experiente em doutrinar, no Reino, a gente que não dava muita importância aos assuntos religiosos. Na Colônia, porém, enfrentaria dificuldades bem diferentes daquelas às quais estava habituado.
Como poderiam comunicar-se os jesuítas com os indígenas que pretendiam catequizar, se não lhes conheciam o idioma? Logo veriam, também, que não estariam lidando com uma única e homogênea cultura indígena - os povos indígenas eram diferentes e numerosos, como eram também diversos o idioma e a cultura. Assim, tratou-se de aprender a língua predominantemente falada no litoral, buscando meios de tornar inteligíveis os ensinos que julgavam ser seu dever transmitir.
Em uma carta dirigida a seus irmãos jesuítas em Portugal, o Padre Manuel da Nóbrega escreveu, a propósito dos indígenas que tentava doutrinar:
"Têm mui poucos vocábulos para lhes poder bem declarar nossa fé. Mas contudo damos-lha a entender o melhor que podemos, e algumas coisas lhes declaramos por rodeios. Estão mui apegados com as coisas sensuais. Muitas vezes me perguntam se Deus tem cabeça e corpo, e mulher; e se come, e de que se veste, e outras coisas semelhantes." (¹)
Ora, meus leitores, já podemos aqui traçar ao menos duas reflexões: ou os padres não tinham suficiente compreensão da língua e cultura dos povos indígenas para explicar o que pretendiam, ou a cultura indígena era muito diferente da dos portugueses e outros europeus no que tange a questões religiosas, daí a dificuldade de encontrar um meio de expressão conveniente para conceitos, por vezes, bastante abstratos.
Creio, senhores leitores, que as duas coisas, de fato, aconteciam.
O jesuíta Belchior de Pontes usava uma
vela 
para ensinar aos índios a
doutrina da Trindade
Como exemplo, tomemos o caso das tentativas que se faziam para explicar aos índios a Doutrina da Trindade. A noção da existência de um Deus-Pai e de um Deus-Filho não era assim tão difícil; entretanto, parecia aos padres quase impossível aclarar o conceito da existência do Espírito Santo. Anchieta, outro missionário jesuíta, relatou em uma carta ao Geral Diego Laynez, datada de 16 de abril de 1563, ao falar da catequese de um índio muito idoso:
"Dando-lhe pois a primeira lição de ser um só Deus Todo-Poderoso, que criou todas as coisas, etc., logo se lhe imprimiu na memória, dizendo que lhe rogava muitas vezes que criasse os mantimentos para a sustentação de todos, mas que pensava que os trovões eram este Deus; porém agora que sabia haver outro Deus verdadeiro sobre todas as coisas, que a ele rogaria chamando-o Deus Pai e Deus Filho; porque dos nomes da Santa Trindade este dois somente pôde tomar, pela razão de que se podem dizer em sua língua; mas o Espírito Santo, para o qual nunca achamos vocábulo próprio, nem circunlóquio bastante, ainda que o não sabia nomear, sabia-o contudo crer como nós lhe dizíamos." (²)
No entanto, um padre, também jesuíta, mas nascido no Brasil no Século XVII, acabaria encontrando uma curiosa e didática solução para o problema. Conta Manuel da Fonseca, outro jesuíta, tratando do modo pelo qual o padre Belchior de Pontes procedia à catequese dos índios na povoação de São Paulo de Piratininga:
"Ajuntava-os em uma praça junto à Igreja da Misericórdia, e postos em fileiras se metia entre eles. Tomava nas mãos uma vela acesa, e com ela lhes declarava o altíssimo Mistério da Santíssima Trindade, explicando como era Deus Trino em Pessoas, e um na essência, porque assim como se notam na vela três coisas, as quais, ainda que são entre si tão distintas, que uma não é outra, constituem um só composto, assim também se notam naquele incompreensível mistério, e que tanto supera a capacidade humana, três Pessoas distintas, e um só Deus." (³)

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 304.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 190.
(3) FONSECA, Manoel da S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, pp. 113 e 114 (Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo).


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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Palafitas

Palafitas nas imediações do porto de Manaus - AM (Rio Negro)

Palafitas, como se sabe, são casas construídas sobre estacas, em áreas facilmente inundáveis, para evitar que as águas atinjam as habitações. Podem, com variações, ser encontradas em diversos lugares deste planetinha. Um deles é a região amazônica.
Em fins da terceira década do Século XIX, Hércules Florence, desenhista francês que participou da Expedição Langsdorff, escreveu:
"Tem o Amazonas, como o Nilo e o Paraguai seus transbordamentos periódicos, pelo que são essas casas edificadas sobre estacas. Durante as inundações as visitas se fazem em canoas, podendo penetrar até debaixo do alpendre ou dentro do corredor das habitações. Quando há festança, na frente se vê uma verdadeira flotilha de canoas." (*)
O tempo passou, mas as palafitas, enquanto técnica de construção de casas, resistiram. Podem ser vistas ainda na Amazônia, malgrado a intenção de fazê-las desaparecer de certas áreas, em razão, supostamente, de algumas propostas relacionadas a uma famosa competição mundial de futebol ocorrida em meados de 2013. 
Conforme me explicou um morador local, "meninos aqui aprendem primeiro a nadar e, só depois, a andar". Exagero, talvez, mas reforça o fato de que as palafitas sobrevivem, até porque são perfeitamente adequadas ao regime das águas dos rios que formam o grande complexo amazônico. Pelo visto, terão vida muito longa.

Palafitas não muito longe de Manaus - AM. Para a população ribeirinha, uma casa-barco
pode também ser uma solução muito eficiente (observe, à direita).

(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 272.


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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A carruagem de Carlos Antonio López, governante paraguaio

⁴⁴Ildefonso Antonio Bermejo era espanhol de nascimento. Convidado por Francisco Solano López, a quem conheceu na Europa, chegou a Asunción como uma espécie de conselheiro político, especialmente para assuntos externos, no ano de 1855. Foi de mala e cuia, como diriam os antigos, levando consigo a jovem esposa que, diante do que viu logo à chegada, quase perdeu os sentidos. De qualquer modo, Bermejo lá permaneceu por cinco anos, tempo mais que suficiente para fazer muitas observações que resultaram na publicação de um livro intitulado Repúblicas Americanas - Episodios de la Vida Privada, Política y Social en la República del Paraguay.
Carlos Antônio López (⁴)
Em 1855 o Paraguai era governado por Carlos Antonio López, pai de Francisco Solano, este último mais conhecido, é certo, por ter governado o Paraguai durante os anos da guerra contra o Brasil. Não é disso, no entanto, que agora nos ocuparemos.
Ildefonso Bermejo, tendo feito suas formais apresentações ao governante paraguaio - oficialmente, o Paraguai era uma República - teve a oportunidade de ver como é que tão importante personagem se conduzia pelas ruas de Asunción. E conta:
"Achei à porta da residência presidencial uma carruagem, (...) à qual estavam presos seis cavalos, cujos arneses eram cordéis (...). Em cada cavalo dos três da esquerda ia montado um soldado da escolta; o primeiro levava um chicote tremendo, e os outros dois controlavam o bridão na mão esquerda, e com a direita empunhavam uma grande espada, que apoiavam sobre o ombro." (¹)
Não imaginem os leitores que, estando a carruagem à porta, saía o presidente e, sem mais cerimônias, tomava seu lugar. Nada disso. Continua Bermejo:
"Quando subi aos corredores da casa do presidente, este saía, vestido de capitão-general e, assim que chegou à porta, soaram as duas trombetas de sua escolta. (...) Os sons das trombetas da escolta estavam muito próximos e, mesmo quando o presidente me falava, eu não o entendia, impedido pelo ruído desagradável daquela marcha estrambótica que tocavam, até que o presidente, exasperado, voltou-se para os trombeteiros e exclamou: Quietos, demônios! Não veem que estamos conversando?" (²)
As surpresas do dia não tinham, porém, acabado. Diante de todo o exagero do cerimonial, Bermejo faria, ainda, uma hilária constatação, ao notar que, de uma janela, três ministros observavam a cena, loucos para correr às respectivas casas, tão logo o presidente se fosse:
"Não estavam ociosos, pois tinham sobre o peitoril da janela um montão de laranjas, que estavam chupando"!!! (³)

(1) BERMEJO, Ildefonso Antonio. Repúblicas Americanas - Episodios de la Vida Privada, Politica y Social en la República del Paraguay. Madrid: R. Labajos, 1873, p. 39.
(2) Ibid., p. 40.
(3) Ibid., pp. 39 e 40. As traduções desta postagem destinam-se ao uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(4) WASHBURN, Charles A. The History of Paraguay vol. 1. Boston: Lee and Shepard, 1871.


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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Acidentes de trabalho nos engenhos do Brasil Colonial

Parte de uma pequena moenda muito antiga para cana-de-açúcar

A ideia que se tem sobre o trabalho nos engenhos que, no passado, eram movidos à força de animais (chamados "engenhos-trapiches") é de que tudo era feito morosamente, com burros, mulas ou bois em movimento lento e constante. Ora, se dermos crédito ao que, no final do Século XVIII, escreveu José Caetano Gomes, a realidade era bem outra.
Em época de safra, os engenhos trabalhavam à maior velocidade possível, para evitar que se perdesse a cana já colhida. De costume, as moendas funcionavam dia e noite. Os animais eram, sob ação contínua do chicote, postos a girar a moenda à máxima velocidade, resultando, algumas vezes, em acidentes:
"Os animais no seu giro, circulando as moendas, estorvam a passagem aos condutores da cana, que algumas vezes sucede serem atropelados." (¹)
Esse era apenas um dos riscos à integridade física de quem trabalhava nos engenhos. O maior deles, comum aos engenhos reais e trapiches, era para o escravo ou escrava que devia fazer a cana passar pela moenda. Conta o mesmo José Caetano Gomes:
"A mesa é muito baixa, e como o escravo, curvando-se um pouco, chega com as mãos à moenda, onde as costuma ter para amparar e empurrar as partes mínimas da cana, a que se chama bagaço, é causa de acidentes e de muitos escravos ficarem sem as mãos, o que todos os anos sucede em um ou outro engenho." (²)
Na lógica dos senhores, animais e escravos eram parte dos custos indispensáveis à produção daquilo que, de fato, interessava: açúcar e aguardente. Daí é que vinham os lucros. A morte de um animal por excesso de trabalho, a invalidez de um escravo atropelado ou que tivera uma mão amputada só interessavam ao senhor à medida que geravam despesas para sua substituição. Entretanto, animais não eram muito caros e escravos, pensavam os senhores, existiam para trabalhar mesmo. Se não ficassem inválidos por acidente, podiam morrer de uma doença qualquer. Não eram, portanto, nada para causar muita dor de cabeça a um típico senhor de engenho do Período Colonial.

(1) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, p. 19.
(2) Ibid., p. 32.


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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Como o Código Criminal do Império tratava a questão das revoltas de escravos

O Código Criminal que entrou em vigor em 1830 estabelecia distinção entre o que era a revolta de um ou mais cativos contra alguma circunstância isolada, e o que se podia considerar uma rebelião coletiva, com o propósito de escapar à escravidão.
Assim, o Capítulo IV, Artigo 113, definia como insurreição:
"Julgar-se-á cometido este crime reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força." (¹)
Dois escravos, de acordo com desenho de
M. Rugendas (²)
As punições estipuladas para os cativos envolvidos em rebeliões contra o sistema escravista não eram nada brandas, mas dependiam do grau de envolvimento e liderança do(s) acusado(s). Os chefes (chamados "cabeças") recebiam penas que iam de quinze anos de galés, passando por galés perpétuas e chegando, até mesmo, à pena de morte. Já os participantes sem papel de liderança eram condenados a açoites, cujo número ficava a critério do juiz.
O mesmo Código Criminal do Império nos permite entrever, no entanto, que podia haver gente de condição livre que eventualmente ajudava escravos rebeldes. Razões humanitárias? Abolicionismo? Ex-escravos que queriam ajudar parentes e/ou amigos? Sim, tudo isso era possível, e até podia ser por simples vingança contra um desafeto que fosse proprietário de muitos escravos. No entanto, o custo de semelhante envolvimento para um cidadão livre era intimidador. Dizia o Artigo 114:
"Se os cabeças forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas no artigo antecedente aos cabeças quando são escravos."
Para quem ajudasse escravos rebeldes, "fornecendo-lhes armas, munições ou outros meios para o mesmo fim", o Artigo 115 não deixava dúvidas: pena de prisão com trabalhos por oito a vinte anos, conforme o grau de envolvimento. O risco era enorme, mas não impediu que, nas últimas décadas do Século XIX, o movimento abolicionista crescesse, levando à abolição completa em 1888, até porque a situação econômica (interna) e política (nacional e internacional) já não admitia o trabalho servil por mais tempo. Ia embora tarde, tarde demais.

(1) Todas as citações são provenientes da seguinte edição: Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Quirino e Irmão, 1861.
(2) Dois escravos, desenho de M. Rugendas. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Tomé de Sousa não era dado a brincadeiras

Como um livro didático do Século XIX demonstrou a severidade do primeiro governador-geral do Brasil


Após a Independência, surgiu a necessidade de livros destinados ao ensino de História do Brasil em escolas públicas e particulares. Logo havia, pois, alguns títulos à disposição de professores e estudantes. Um deles veio a público em 1843 e foi escrito por José Inácio de Abreu e Lima, um militar brasileiro de vida algo aventurosa. Filho de um padre executado por envolvimento com a Revolução Pernambucana de 1817, Abreu e Lima deixou o Brasil e, ao lado de ninguém menos que Simón Bolívar, lutou pela independência das colônias espanholas na América.
De volta ao país de origem, publicou seu Compêndio de História do Brasil, dedicado ao Imperador D. Pedro II. Embora a proposta da obra fosse servir como recurso didático em salas de aula, o autor entreteceu, ao longo do texto, alguns episódios interessantes, que hoje dificilmente apareceriam em livros escolares, justamente porque não seriam considerados politicamente corretos. Veremos um deles, útil para demonstrar que Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil, não era um tipo com o qual se devia brincar.
Lá vai. Foi durante a construção da primeira capital do Brasil, Salvador, então chamada Cidade da Bahia. Um colono português foi morto por um índio. Tomé de Sousa, por certo na intenção de evitar novos incidentes, não tardou em mostrar autoridade - no melhor estilo da época:
"Infelizmente um dos colonos foi morto por um tupinambá, a oito léguas distante da cidade; o governador, para prevenir o mau exemplo, exigiu que o homicida lhe fosse entregue, e mandando-o atar à boca de uma peça (¹), foi feito em pedaços. Não havia execução menos dolorosa para o culpado [sic], nem mais horrorosa para os espectadores; o terror se espalhou entre os tupinambás e os colonos que receberam também uma lição terrível se abstiveram de ir imprudentemente meter-se em meio dos selvagens." (²)
Que tal, senhores leitores? Bom discurso para instruir crianças? (³)
Esse acontecimento ilustra com perfeição o trato que, em última análise, era dado aos indígenas que reagiam desfavoravelmente à colonização. Estava, no entanto, de acordo com os costumes do Século XVI. Não seria nenhuma surpresa se, em outra circunstância, o governador-geral mandasse executar do mesmo modo um português.
Entretanto, será interessante não nos esquecermos de que, publicado em 1843, o livrinho de Abreu e Lima aparecia em uma época na qual, saído o País há pouco do Período Regencial, enfrentava ainda as consequências de uma série de revoltas. Talvez a intenção do autor, acostumado a comandar e disciplinar tropas nas lutas pela independência da América do Sul, fosse ensinar à molecada das escolas brasileiras que atos de insubordinação não eram, afinal, uma boa ideia, ainda que, em meados do Século XIX, já não fosse costume atar um infrator à boca de um canhão para, em seguida, reduzi-lo a pó.

(1) Peça de artilharia. Um canhão ou outra coisa similar.
(2) LIMA, José Inácio de Abreu e. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, pp. 40 e 41.
(3) O mesmo episódio é contado por vários outros autores. O que chama a atenção, aqui, é sua inclusão em uma obra com propósitos educacionais.


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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A pesca da baleia no Período Colonial

Vez por outra leio a notícia de alguma baleia que encalhou junto ao litoral brasileiro, ou mesmo que foi encontrada já morta. Pois bem, esses acontecimentos fazem lembrar escritos de autores dos dois primeiros séculos da colonização, nos quais informavam que, nas águas oceânicas junto ao Brasil, as baleias eram, então, numerosíssimas.
No Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa lemos que "eram tantas as baleias nesta paragem e tamanhas, e chegavam-se tanto às naus que lhes havíamos mui grande medo." Vale recordar que Pero Lopes, irmão de Martim Afonso de Sousa, escreveu o dito Diário da Navegação entre 1530 e 1532. A "paragem" por ele referida no trecho citado era a região da Bahia de Todos os Santos.
Já para o final do Século XVI, Gabriel Soares, que tinha, para sua época, um grande conhecimento das coisas do Brasil, observou:
"Entendo que cabe a este primeiro capítulo dizermos das baleias que entram na Bahia (como do maior peixe do mar dela [sic]) a que os índios chamam pirapuã; das quais entram na Bahia muitas no mês de maio, que é o primeiro do inverno naquelas partes, onde andam até o fim de dezembro que se vão; e neste tempo de inverno, que reina até o mês de agosto, parem as fêmeas à abrigada da terra da Bahia, pela tormenta que faz no mar largo, e trazem aqui os filhos, depois que os parem, três e quatro meses, que eles têm disposição para seguirem as mães pelo mar largo; e neste tempo tornam as fêmeas a emprenhar, em a qual obra fazem grandes estrondos no mar." (¹)
Disse mais:
"Quando estas baleias andam na Bahia acompanham-se em bandos de dez, doze juntas, e fazem grande temor aos que navegam por ela em barcos, porque andam urrando e em saltos, lançando a água mui alta para cima; e já aconteceu por vezes espedaçarem barcos, em que deram com o rabo, e matarem a gente deles." (²)
As palavras de Gabriel Soares são úteis para que tenhamos uma ideia dos riscos envolvidos na navegação do Século XVI. Mas não só. Pelo mesmo autor somos logo informados de que a maior preocupação dos colonizadores era obter lucros, encontrando alguma coisa na América que, ao ser depois vendida na Europa, rendesse bastante. As baleias não ficaram fora dessa perspectiva, lembrando ele que "...quanto mais que se à Bahia forem biscainhos ou outros homens que saibam armar às baleias, em nenhuma parte entram tantas como nela, onde residem seis meses do ano e mais, de que se fará tanta graxa que não haja embarcações que a possam trazer à Espanha." (³)
É desnecessário lembrar que, no Século XVI, preocupar-se com questões ambientais não fazia parte do cardápio mental de quase ninguém.
Os contratos para a pesca das baleias tornaram-se, com o tempo, muito disputados. Interessavam à Coroa, interessavam aos exploradores do Continente Americano. Quem obtinha um desses contratos tinha o direito de explorar, com exclusividade, a pesca de baleias em uma determinada área. Como regra geral, quem oferecia mais aos cofres reais arrematava o tal privilégio. Já na segunda metade do Século XVII, escrevia o Padre Simão de Vasconcelos:
"As baleias são em tão grande número, que só nesta Bahia anda hoje o contrato real sobre elas em quarenta e três mil cruzados, por tempo de três anos. Revolve a multidão destes peixes [sic] o profundo das águas, e lança à praia tão grande quantidade de âmbar, que tem enriquecido a muitos." (⁴)

A pesca da baleia e seus perigos (⁵)

Em fins do século XVIII as autoridades coloniais já reconheciam que as baleias começavam a escassear na costa no Brasil. Recomendava-se cautela na pesca.
Eu poderia concluir dizendo que a captura de baleias que ainda hoje é praticada em alguns lugares do planeta é desumana e alvo dos protestos de ambientalistas. Mas esses são fatos que não há quem desconheça. Em lugar disso, talvez seja interessante recordar que os resultados da pesca incessante de baleias no litoral brasileiro podem ser observados por quem quer que deseje ver o espetáculo da multidão delas, conforme descrito por Pero Lopes ou Gabriel Soares no Século XVI. Duvido que se encontre grande coisa.
 
(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 278.
(2) Ibid., p. 279.
(3) Ibid., p. 358.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 280.
(5) TELLER, Thomas. Stories About Whale-Catching. New Haven: S. Babcock, 1845. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Como era feito o plantio de cana-de-açúcar no Brasil Colonial

O Século XVIII já caminhava para o final quando José Gomes Caetano escreveu a sua Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Pretendia, com ela, mostrar as deficiências dos métodos até então empregados, tanto na lavoura da cana quanto na fabricação de açúcar e aguardente, propondo alternativas mais rentáveis. Assim é que hoje é possível ter uma visão nítida do modo pelo qual a cana-de-açúcar era plantada em terras do Brasil. Escreveu ele:
"Cada plantador de cana, segundo as suas faculdades (¹), vai com dez, vinte, quarenta ou mais escravos com enxadas, limpar todas as ervas de uma certa porção de terra, onde quer fazer aquilo a que se chama partido." (²)
Esse era o início de todo o processo. Mas deve-se notar que somente valia em caso de terras já anteriormente cultivadas. Se, no entanto, o plantio devesse ocorrer em área de mata virgem, outros seriam os procedimentos. Mas retornemos às explicações de José Caetano Gomes:
"As plantas, ervas ou capins arrancados ou cortados com a enxada, são sacudidos da terra pelos mesmos escravos, que trabalham enfileirados (...). Depois da terra capinada ou limpa de plantas, vão os escravos abrir covas com a mesma enxada, cujas covas são uma espécie de regos de duas a três polegadas de profundidade, na distância uns dos outros de um palmo a palmo e meio (...). São lançados nestes regos duas estacas de cana de palmo e meio de comprido, e se cobrem com a mesma terra que se tirou da cova." (³)
Didaticamente, portanto, o método empregado para plantio de cana-de-açúcar no Brasil Colonial podia ser assim resumido:
1. Dez a quarenta escravos limpavam o terreno;
2. Os mesmos escravos abriam covas com as enxadas;
3. Em cada cova eram postas duas estacas;
4. Cada cova era coberta com terra.
A partir daí, esperava-se que a natureza cooperasse e fizesse o restante, até que a cana estivesse crescida para a safra. Costumava-se, ao longo da fase de crescimento, mandar que escravos fizessem duas "capinas", ou seja, que removessem o mato. Não estava nos hábitos qualquer tipo de adubação. Tudo muito simples e rudimentar, conduzindo a perdas consideráveis na produção, já que, de acordo com as ideias de José Caetano Gomes, o espaço deixado entre as plantas era insuficiente e as ferramentas em uso eram demasiado antiquadas.

(1) De acordo com sua capacidade econômica que, no Brasil, era medida pelo número de escravos de que se dispunha.
(2) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, p. 2.
(3) Ibid., pp. 2 e 3.
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Um salto no tempo




Área de cultivo de cana-de-açúcar (após queimada) no interior do Estado de São Paulo. Queimar antes do corte ainda é uma prática frequente nos canaviais, sob a alegação de que facilita o trabalho e evita a presença de animais peçonhentos que poderiam ferir os trabalhadores. No entanto, acarreta sérios danos ambientais. No Século XXI.


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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

No Império do Brasil havia penalidades diferentes para livres e escravos


Escravos acorrentados, segundo Thomas Ender (⁴)

De acordo com a legislação vigente no Império do Brasil, havia situações em que as penas para homens livres e para os de condição servil podiam ser diferentes. Segundo o Código Criminal do Império, se a condenação resultasse em pena de morte ou de galés, não havia qualquer diferença entre livres e escravos. Porém, se o delito resultasse em prisão com trabalhos (¹), prisão simples, desterro ou degredo, o escravo tinha a pena necessariamente substituída por açoites, conforme dispunha o Artigo 60:
"Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar." (²)
Entende-se que, dentro da lógica escravista, não fazia sentido manter um escravo por longo tempo dentro de uma prisão. Afinal, livre ele já não era. Portanto, o escravo era açoitado e devolvido ao dono.
Quantos açoites seriam aplicados?
Isso era o juiz quem determinava, ainda de acordo com o mesmo Artigo 60, ao levar em conta o crime cometido e eventuais circunstâncias atenuantes ou agravantes. Havia, conforme irão notar os leitores, apenas uma ressalva:
"O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cinquenta." (³)

(1) Que deviam ser realizados dentro da própria prisão.
(2) Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Quirino e Irmão, 1861, p. 26 (edição comentada por Carlos Antônio Cordeiro).
(3) Ibid., p. 27.
(4) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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