quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O lugar ideal para uma universidade no Brasil

Ao contrário das colônias espanholas na América, que cedo tiveram suas respectivas universidades, o Brasil, colônia portuguesa, não teve nenhuma, não apenas antes da Independência, mas mesmo em todo o Império, ainda que cursos superiores hajam sido criados a partir da chegada de D. João e toda a Família Real lusitana ao Brasil, em 1808.
Todavia, desde esses tempos que antecederam a emancipação política já se discutia a conveniência da implantação de uma universidade em solo brasileiro. Quem queria, de fato, estudar, precisava deslocar-se até alguma das universidades europeias, o que já reduzia bastante o número de candidatos, fosse pela distância ou, principalmente, pelos altos custos que deviam ser assumidos.
Onde, porém estabelecer uma universidade, em território tão vasto, de modo a contentar os potenciais estudantes, sem ferir sensibilidades políticas regionais?
Os inconfidentes de Minas tinham sugerido que Ouro Preto era um ótimo lugar; o Rio de Janeiro parecia, por outro lado, uma escolha natural, já que era a capital do Brasil e, naquele momento, hospedava D. João VI e todo o seu séquito, além de ser uma cidade populosa - para os padrões da época, claro.
O Padre Ayres de Casal tinha, porém, outras ideias. Para ele, São Paulo era a cidade ideal para a implantação de uma universidade.
Por quê?
Era a cidade mais populosa do Brasil?
Não.
Era de fácil acesso?
Também não.
Era a mais rica, economicamente falando?
Ainda não.
Escreveu ele, em sua Corografia Brasílica:
"A salubridade e temperamento do clima, a abundância e barateza dos víveres, fazem julgar que se lhe dará preferência para a premeditada fundação da Universidade, que lhe dará crescimento, lustre, comércio e celebridade." (¹)
E acrescentou, mostrando preocupação com a saúde não só dos futuros estudantes, como também dos livros:
"Os corpos têm aqui mais vigor para a aplicação, e os insetos danificam menos as bibliotecas." (²)
A tal universidade, no entanto, ficou apenas nos planos. Levaria ainda muito tempo para que as primeiras universidades, dignas, de fato, de serem assim denominadas, se concretizassem.

(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 236.
(2) Ibid.


Veja também:

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cajus e cajueiros - Parte 4

O "vinho" de caju dos indígenas


"Em fazer várias castas de vinho são engenhosos. Parece certo que algum deus Baco passou a estas partes a ensinar-lhes tantas espécies dele, que alguns contam trinta e duas." (¹) Assim referiu-se o Padre Simão de Vasconcelos, autor das Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil, à excepcional habilidade de alguns povos indígenas em fabricar bebidas fermentadas (trinta e duas!), chamadas genericamente de "vinhos", das quais a mais soberba era justamente a que se elaborava com cajus.
Caju (²)
Demora-se o Padre em descrever algumas desses "vinhos", mas vamos, por hora, àquele que nos interessa: "...outros de caju, e deste em tanta quantidade, que podem encher-se muitas pipas, de cor a modo de palhete. Deste vi eu uma frasqueira, e se não fora certificado do que era, afirmara que era vinho de Portugal. Fazem-no da maneira seguinte: Espreme-se o caju em vasos, e nestes o deixam estar tanto tempo que ferva, escume e fermente, até ficar com sustância de vinho, mais ou menos azedo, segundo a quantidade do tempo. É este vinho entre eles estimado sobre todos os outros, e ser senhor de um destes cajuais para efeito dele é ter o morgado mais pingue." (³)
Não contente com essa descrição, voltaria o Padre Simão de Vasconcelos a tratar do mesmo assunto, na mesma obra, mais de cem páginas depois: "... e deles mesmos, quando maduros, tiram os vinhos mais preciosos seus, na maneira seguinte. Vão-se eles como à vindima, e conduzida grande quantidade, juntam-se logo os vinhateiros destros no ofício, enquanto estão frescos, e tirada a castanha vão espremendo poucos e poucos, ou às mãos, ou à força de certo gênero de prensa de palma, que chamam tipiti; e aparado o licor em alguidares, o vão lançando em grandes talhas que para isto obram e chamam igaçabas, onde como em lagar ferve e se torna em vinho puro e generoso; e é o que bebem com mais gosto e guardam largos tempos, e quanto mais velho, mais eficaz." (⁴)
Nota-se, facilmente, que nosso padre-escritor lança mão, ao descrever o processo de fabrico desse fermentado de caju, de toda uma linguagem que lembra o método de elaboração de vinho, esse sim de uvas, em Portugal. Não sabemos se, de algum modo, àquela altura (segunda metade do século XVII) não seriam os métodos indígenas já influenciados pelas técnicas dos colonizadores portugueses, nem se pode supor que todos os indígenas fizessem a mesma bebida e com o uso dos mesmos procedimentos. O que fica evidente, porém, é que o Padre era não apenas um bom conhecedor de vinhos, como já havia aprendido a apreciar o fermentado de cajus que os nativos preparavam. Afinal, como bom missionário, devia estar ciente da utilidade de adaptar-se aos costumes dos povos que se pretendia evangelizar...

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p.142.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Op. cit., p. 143.
(4) Ibid., pp. 261 e 262.


Veja também:

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Cajus e cajueiros - Parte 3

O cajueiro e seus usos, por indígenas e colonizadores


"Quando for por meio-dia, esperar-me-ás na fonte do Gravatá, mais para cima, onde estão os cajueiros."
José de Alencar, As Minas de Prata
 
"É o caju ou cajueiro", escreveu o Padre Simão de Vasconcelos, "a mais aprazível e graciosa de todas as árvores da América, e porventura de todas as de Europa. É muito para ver a pompa desta árvore, quando nos meses de julho e agosto se vai revestindo do verde fino de suas folhas, nos de setembro, outubro e novembro, do branco sobrosado de suas flores, e nos de dezembro, janeiro e fevereiro, das joias pendentes de seus frutos." (¹)

Cajueiro (²)

Engana-se, porém, quem imaginar que apenas a fruta e a castanha (³) tinham uso: o mesmo autor relatou que, em seus dias, da casca se extraía tinta, a madeira era empregada na construção naval e, para os índios, a resina usava-se como medicamento.
Não paravam aí, todavia, os usos do caju, pelo menos para os povos nativos do Brasil: "Têm-se por felizes aqueles cujos distritos abundam destas árvores, e sobre eles armam suas maiores guerras. Do bagaço seco ao sol e depois pisado, fazem a mais mimosa farinha que pode servir a seu regalo, merecedora de ser guardada em cabaços para seus maiores banquetes." (⁴)
Finalmente, como arremate sobre as aplicações de cajus e cajueiros, relatou o mesmo religioso que tal era a importância que os índios atribuíam à fruta, que a empregavam em sua estrutura de percepção e contagem do tempo (pelo menos assim o entendia Simão de Vasconcelos):
"Por esta fruta contam os naturais da terra seus anos: o mesmo é dizer tantos anos, que tantos cajus, como se dos cajus dependesse a boa fortuna de seus anos; e, na verdade, parte é da felicidade natural desta gente." (⁵)
Resta abordar, porém, um outro uso do caju, talvez o mais valorizado pelos índios, talvez aquele que mais entusiasmasse o Padre Simão de Vasconcelos. Isso se verá na próxima postagem, a última desta série.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 258 e 259.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Veja, sobre a questão de ser o caju um pseudofruto, o que se explica na postagem "Cajus e cajueiros - Parte 1".
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Op. cit.,  p. 262.
(5) Ibid.


Veja também:

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Cajus e cajueiros - Parte 2

A castanha de caju e seu uso nos tempos coloniais


Como seu viu na postagem anterior, o Padre Simão de Vasconcelos era um verdadeiro entusiasta do caju, fruta (¹) nativa do Brasil. Segundo ele, a castanha do caju era muito útil aos índios, mas também logo foi utilizada para substituir, no Brasil, uma especialidade lusitana, as amêndoas confeitadas, que tanto deviam apreciar os colonizadores já saudosos do Reino:
Castanha de caju (³)
"As castanhas têm semelhança de rins de lebre. Enquanto verdes fazem delas guisados. Depois de maduras, assadas são comer doce e suave, iguais às nozes de Europa. Confeitam-se a modo de amêndoas, e em falta destas suprem a matéria dos doces secos." (²)
Uso semelhante relatou Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (c. 1627), ao expressar, talvez com algum exagero, que as castanhas eram, para os indígenas, como pão: "...de pão lhes servem umas castanhas, que vêm pegadas a esta fruta, que também as mulheres brancas prezam muito, e secas as guardam todo o ano em casa para fazerem maçapães e outros doces, como de amêndoas."

(1) Veja, sobre o fato de ser o caju um pseudofruto, o que se explica na postagem anterior, "Cajus e cajueiros - Parte 1".
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 262.
(3) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Cajus e cajueiros - Parte 1

Caju, um pseudofruto muito apreciado por povos indígenas do Brasil


Partindo do pressuposto de que a maioria de meus leitores sabem o que é um caju, vamos começar esta postagem com um esclarecimento: tecnicamente, a parte carnosa (amarela ou avermelhada) do caju não é de fato um fruto, e sim um pseudofruto, resultante do desenvolvimento do pedúnculo floral. A castanha, sim, é o verdadeiro fruto, por mais estranho que pareça. Por essa razão, nesta postagem e na próxima, o caju será designado como "fruta", para evitar qualquer mal-entendido. Agora, pois, de volta à História!
Dentre as frutas existentes no Brasil, o caju era muitíssimo apreciado pelos povos indígenas, e seu singular aspecto chamou a atenção também dos colonizadores portugueses. Quem souber que o consumo do caju deve vir acompanhado de alguns cuidados, achará a descrição feita por Pero de Magalhães Gândavo, ainda no século XVI, até um tanto engraçada:
O caju, que os indígenas tanto apreciavam (³)
"Outra fruta se cria numas árvores grandes, estas se não plantam, nascem pelo mato muitas; esta fruta depois de madura é muito amarela: [...] chamam-lhes cajus, têm muito sumo, e cria-se na ponta desta fruta de fora um caroço como castanha, e nasce diante da mesma fruta, o qual tem a casca mais amargosa que fel, e se tocarem com ela nos beiços dura muito aquele amargor e faz empolar toda a boca; pelo contrário este caroço assado, é muito mais gostoso que amêndoa; são de sua natureza quentes em extremo." (¹)
Já o Padre Simão de Vasconcelos, escrevendo um século mais tarde, não poupou elogios à fruta, que assim retratou:
"Os pomos desta árvore parecem feitos de sobremão da natureza, quando mais curiosa. É um feito de dois, ou dois que fazem um, e ambos de diversas espécies, coisa rara no mundo. Ao primeiro chamam caju: é fruta comprida, a modo de pero verdeal, porém maior. Uns são amarelos, outros vermelhos, outros tiram a uma e outra cor. Todos são sucosos, frescos e doces, quando afezoados. Igualmente matam aos encalmados a sede, e aos necessitados a fome, a sustância interior é esponjosa, sucosa e sem caroço ou pevide alguma." (²)
A outra parte do caju é, evidentemente, a castanha, da qual trataremos na próxima postagem.

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 63.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 260 e 261.
(3) O original pertence à Biblioteca Nacional. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Questões que se resolviam à força no Brasil Colonial

Encrencas entre colonizadores eram, no Brasil, pretexto de não poucas tragédias. Um desentendimento trivial, coisa de pouca monta, era visto, por vezes, como afronta à honra das partes envolvidas, motivo para que se resolvesse a "diferença" não através das instâncias de Justiça, mas pela força das armas.
José de Alencar, em As Minas de Prata, expressou esse fato muito bem, ainda que sua intenção fosse, a priori, fazer Literatura:
"O advogado era apenas um conciliador de partes; afora essa tarefa de nada servia; porque os embargos, os agravos e os recursos tinham sido substituídos por uma exceção peremptória não consignada no formulário dos praxistas - a adaga ou o arcabuz."
Um exemplo prático do que podia suceder é dado por Antonil em Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, ao mencionar as desavenças resultantes do sentir-se alguém prejudicado por um proprietário de animais que os deixava soltos em canavial alheio:
"E posto que os lavradores se acomodem de qualquer modo a sofrer os furtos pequenos dos frutos do seu suor, veem-se às vezes obrigados de uma justa dor a matar porcos, cabras e bois que outros não tratam de divertir e guardar nos pastos cercados ou em parte mais remota, ainda depois de rogados e avisados que ponham cobro a este dano, donde se seguem queixas, inimizades e ódios, que se rematam com mortes ou com sanguinolentas e afrontosas vinganças. Por isso cada qual trate de defender os seus canaviais e de evitar ocasiões de outros se queixarem justamente do seu muito descuido, medindo os danos alheios com o sentimento dos próprios."(¹)
Caso similar aparece também no Compêndio Narrativo do Peregrino da América, em que alguém narra ao Peregrino toda a sua fúria e desejo de vingança contra um outro lavrador, que matou uma rês de sua propriedade, por ter-lhe invadido a lavoura:
"Com efeito vim de morada para este sítio, e nele tenho feito todas as benfeitorias que vedes. E como precisamente me seja necessário trazer algumas cabeças de gado vacum para o ministério da minha lavoura, e este (ainda que eu o traga apastorado) não pode andar sempre tão domado, que não suceda passar à fazenda deste homem, e por isso fazer-lhe algum dano, do qual me tem avisado algumas vezes, sucedeu hoje por descuido do pastor entrar-lhe o gado na fazenda, de que resultou mandar matar uma rês, e depois de me ter feito este acinte, me mandou dizer que a mandasse buscar e, senão, que me pagaria o seu valor. A este recado lhe respondi, que eu me pagaria pelo melhor meio que pudesse." (²)
E que é que pretendia fazer ao desafeto? Ele aproveita o ensejo da chegada do Peregrino, pedindo-lhe conselho de como melhor vingar-se:
"Agora vos peço que me digais o que devo obrar neste particular, para me vingar deste homem [...], porque é tal o ódio que lhe tenho, que o tomara ver destruído, pois me parece que, por ser mais rico e tanto o favorecer a fortuna, faz menos preço de minha pessoa." (³)
Basta, agora, explicar que na obra literária de Nuno Marques Pereira tudo se resolve bem, com ampla conciliação dos desafetos, em virtude da sábia interferência do Peregrino. Na vida real, porém, senhores leitores, as coisas costumavam sair bem diversas!
Não é que, necessariamente, a Justiça colonial se omitisse. Não era assim, pelo menos não na totalidade dos casos. A questão é que a Colônia era gigantesca, e os poucos magistrados não podiam dar conta, com a rapidez desejável, de todos os casos que lhes eram apresentados. Em algumas situações havia até a possibilidade de recurso ao Reino, condição em que um processo podia durar muitos anos... A conclusão disso tudo é que, aos belicosos colonizadores, parecia muito mais fácil resolver sua pendências por si mesmos, ou, quando muito, com a ajuda de seus escravos e empregados, aproveitando a ocasião para, mediante o uso da força, estabelecerem, com maior firmeza, sua dominação na área em que viviam. Daí resultavam mortes que, por sua vez, esperava-se que fossem vingadas pelas respectivas famílias, de modo que os conflitos que começavam pequenos, por causas mínimas, acabavam virando verdadeiros dramas shakespearianos, ainda que sem bailes de máscaras, sem casais de adolescentes apaixonados que se suicidassem, sem reconciliação.
Escrevendo já nos dias do Império, Hércules Florence apontaria, com precisão, algumas causas da impunidade (referia-se, especificamente, a um assassinato):
"No Brasil, veem-se muitas vezes crimes desta natureza ficarem impunes, não só porque suas vastas florestas dão seguro asilo aos delinquentes, como a justiça pública mostra-se frouxa ou falta de meios para se fazer respeitar, e a polícia é nula. Um homem, que comete um atentado, foge para outra Província, ali passeia sem rebuço e ninguém lhe toma contas.
Quanto aos que buscam refúgio nos matos, não admira que estejam fora do alcance da ação legal, pois os meios de que esta careceria seriam por demais dispendiosos, mas em relação aos que se homiziam em outras Províncias, a segurança de que vão gozar prova bem quanto é viciosa a administração." (⁴)

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 42.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 339.
(3) Ibid., p. 340.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 17.


Veja também:

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O cavalo que achou um tesouro

Na postagem anterior foi mostrada a dificuldade que havia para se fazer transportar um cavalo até as minas de Cuiabá, no século XVIII, já que o animal devia passar meses viajando em uma canoa, pelo Tietê e outros rios, além de trechos que eram feitos por terra. A arca de Noé devia ser mais confortável aos equinos!
Apesar disso, relata Pedro Taques de Almeida Paes Leme na sua Nobiliarchia Paulistana que Antônio de Almeida Lara tinha, nas minas, excelentes cavalos, o que indicava ser ele um rico minerador.
Sim, era. E, além disso, perdulário, com um estilo de vida muito extravagante. Lembrem-se, senhores leitores, tudo nas minas custava muito caro...
As despesas foram tantas que o tal homem, por tanto gastar, de riquíssimo que era, acabou terrivelmente endividado. Diante disso, foi, a cavalo (fato de muita relevância), tentar a sorte em outra área, conforme conta Pedro Taques:
"Montado em um formoso bruto muito valente, indo de jornada para o novo descobrimento de Mato Grosso, de repente tropeçou o cavalo, e se foi abaixo. Estranhou a novidade o cavaleiro, por ter experiência das forças daquele animal e, sacando-se da sela e examinando em terra a causa da violenta queda, achou um escondido tesouro de ouro bruto; porque o cavalo havia posto o casco de uma mão em cima de uma aguda folheta, que já estava na superfície da terra. Naquele mesmo lugar estava toda a grandeza de folhetas não pequenas, de sorte que ali logo chegaram os escravos, que vinham na marcha, e dentro da tarde daquele dia se extraíram algumas arrobas de ouro, de cujo Batatal (assim se ficou chamando, por serem as suas folhetas semelhantes a este legume (¹)) veio em breve tempo a extrair acima de onze arrobas, todas de folhetas."
E que é que fez Antônio de Almeida Lara, ao ver-se dono de tamanha riqueza?
Continua a narração da Nobiliarchia:
"Recolhido para o Cuiabá e fazenda da Chapada, mandou afixar cartazes em que avisava a todos a quem fosse devedor que viessem ou mandassem receber as quantias de que eram credores."
Talvez alguns dos que leem esta postagem estejam achando nisto tudo um grande exagero. É possível, porque as histórias "boas demais para serem verdadeiras" espalham-se depressa, ganham anexos e logo se transformam em autênticas lendas. Há, no entanto, a favor da veracidade, ao menos do cerne deste caso, alguns argumentos.
Pedro Taques não é o único que menciona o acontecimento. Outros autores também o fazem, e muito provavelmente não tiveram acesso ao manuscrito da Nobiliarchia Paulistana. Além disso, deve-se recordar que, sobre todo o ouro encontrado no Brasil, incidia um imposto de 20% (os "Reais Quintos"). Se alguém fizesse espalhar a lorota de que numa única tarde fora capaz de extrair nada menos que onze arrobas de ouro, o Fisco, absolutamente esfomeado por remeter a Portugal tudo o que fosse possível, cairia sobre tal indivíduo, a exigir-lhe a parte devida, e seria bastante difícil demonstrar que o suposto tesouro simplesmente não existia. Por isso, exageros à parte, o homem deve ter mesmo encontrado uma boa quantidade de metal precioso, até porque acabou a vida honradamente, exercendo cargo importante - foi brigadeiro e juiz na vila de Cuiabá - ainda que nunca tenha se casado, sempre conforme o relato de Pedro Taques:
"Nunca casou, porque estando justo para casar com sua prima D. Leonor, filha de Timóteo Corrêa de Góes, terceiro provedor e contador proprietário da fazenda real, se desvaneceu este intento pela demora que teve no Cuiabá, aonde faleceu."
Neste caso, talvez coubessem bem palavras semelhantes às do "Defunto-Autor" ou "Autor-Defunto", personagem machadiana, ao encerrar as suas célebres Memórias. (²)

(1) Obviamente, Pedro Taques não se prende aqui ao sentido técnico da palavra "legume".
(2) "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas)


Veja também:

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Como se transportavam cavalos nas monções cuiabanas

Quem quer que imagine as monções como agradáveis viagens pelo Tietê e outros rios, até chegar às minas de Cuiabá, estará, por certo, tendo uma alucinação. As monções eram, via de regra, viagens terríveis, nas quais se enfrentavam chuva e sol, nuvens de mosquitos implacáveis, carrapatos infernais, formigas e aranhas que caíam das árvores sobre as embarcações, cento e tantas cachoeiras e corredeiras, falta de água potável, escassez de alimentos. Morria muita gente no percurso, fosse pelas doenças tropicais, por afogamento ou em luta com os indígenas. Aliás, mesmo que uma expedição tivesse o raríssimo privilégio de não ser atacada por paiaguás e guaicurus, era pouco provável que todos os que partiam de Araraitaguaba, cheios de esperanças de enriquecimento rápido, chegassem vivos e saudáveis a Cuiabá. A viagem transformava até mesmo tipos atléticos em pouco mais que farrapos humanos.
Além disso, quero mencionar aqui um aspecto pouco recordado das monções cuiabanas: não eram apenas humanos que viajavam... 
Porcos e galinhas eram, rotineiramente, embarcados vivos, mas para estes o destino final não era Cuiabá - serviriam de alimento pelo caminho. Alguns cachorros eram também levados para que ajudassem nas caçadas que se faziam ao final de cada dia, visando a melhorar as condições de alimentação dos viajantes. Compreende-se que o transtorno para transportar um animal nas canoas e batelões monçoeiros era diretamente proporcional ao tamanho - do animal, por suposto. A "dor de cabeça" máxima era, portanto, levar um cavalo, acomodado sabe-se lá como, e fazê-lo chegar ao término da viagem em boas condições. Por isso, ter um cavalo em Cuiabá era indício de riqueza, como se deduz deste registro que aparece na Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme (séc. XVIII), relativo a Antônio de Almeida Lara:
"O seu tratamento foi sempre igual à sua distinta qualidade, porque em tempo que para ir ao Cuiabá um cavalo se conduzia embarcado em canoa, desde o porto de Araraitaguaba até as minas, e por isso se reputavam por preços exorbitantes, Antônio de Almeida os possuía muito bons."
Conforme veremos na próxima postagem, foi muito útil a Antônio de Almeida Lara ter cavalos, ou melhor, ter um, em particular.


Veja também: