domingo, 29 de agosto de 2010

História(s) de bolo(s) de milho

Estou, com esta postagem, procurando atender, ao menos em parte, à multidão de leitores que têm lotado a caixa de buscas do blog com pesquisas relacionadas à "história do bolo de milho". Explicando o título, direi  que é mesmo histórias e bolos no plural porque, como se verá, a tradição culinária da humanidade é sempre muito diversificada, e abarca, neste caso, uma multiplicidade de práticas que levam ao preparo de comida, ora doce, ora salgada, ora nem uma coisa e nem outra, mas sempre chamada de bolo de milho. Então, leitor, peço-lhe, se de fato está interessado no assunto, que tenha a paciência de ler esta longa postagem em sua totalidade, pois, ao fim e ao cabo, acabará por divertir-se (perdoe-me a aliteração - e a redundância).
O milho é um vegetal que, ao que se sabe, é originário do Continente Americano. Independente de ser realmente assim, hoje seu cultivo é generalizado em muitas partes do mundo, de modo que autores portugueses já reportavam seu uso desde o século XVI, nas várias regiões que, naquela época, constituíam o império lusitano ultramarino. O que veremos é uma amostragem do que escreveram e que, de algum modo, sobreviveu até nossos dias.
No Arquipélago de Cabo Verde, por exemplo, escreveu-se que "do milho, ou comem as massarocas assadas, e também cozidas em leite azedo (a que chamam dormido), - ou depois de descascado o grão, pilado em pilão, e sacudido em um balaio, tirado o farelo, separam o xarém, espécie de rolão, que comem cozido com ervas, ou com feijão, ou com abóbora, - e da farinha fazem as suas batangas, bolos chatos cozidos no borralho como os bolos de milho, que se usam na Província do Minho, - e também dele preparam os cuscuz cozendo a farinha do milho depois de amassada em uma panela vazia furada no fundo posta sobre um tacho de água a ferver: depois de bem recozida a massa com este vapor se corta em talhadas, e se põe em panos a secar ao sol, e depois se guarda para toda a semana." (¹)
Veja, leitor, nesse trecho o autor afirma que na região do Minho, em Portugal, se fazem bolos semelhantes, mas não há mais detalhes quanto ao preparo ou ao sabor. Porém uma obra de culinária que fez sucesso entre os cozinheiros lusos no século XIX talvez possa nos ajudar na questão, pelo menos no que se refere à técnica de preparo:
"O bom pão de milho faz-se também da flor da farinha do mesmo milho, porém não deve ficar a levedar da véspera como o trigo, porque se azedaria, basta principiar de manhã cedo, e estará pronto para o jantar.
Sendo bolo quente para comer com mel, arrobe, ou manteiga, então basta desfazer a farinha em água morna dentro de uma pequena almofia, ou grande tigela, dar-lhe a precisa consistência, formar o bolo espalmado da espessura de um dedo, embrulhá-lo em duas folhas de couve, e depois cozê-lo no tabuleiro, como as outras coisas supraditas." (²)
Há também referência aos alimentos preparados com milho no Timor, o que pode revelar a utilidade que os colonizadores atribuíam a este cereal, em parte possivelmente pela sua adaptabilidade a outros solos, distantes de seu terreno de origem. Lemos que "o habitante de Timor é de uma frugalidade pasmosa. Em marchas e na guerra sustenta-se um dia inteiro com um punhado de farinha de milho e uma pouca de água, ou com uma apa, bolo de farinha de milho envolto em palha de bananeira. Quando está entregue aos ócios da paz, o seu sustento é menos parco, e consiste em milho quebrado cozido com ervas. Quando lhe falta o milho substitui-o pelo feijão; mas há uma qualidade deste legume, coto, que tem sido fatal a muitos timores, por ser veneno que mata em poucas horas, quando não é bem preparado." (³)
Agora, depois de fazer uma breve excursão pelos usos relacionados a bolos de milho em colônias portuguesas na Ásia e na África, além do uso na Metrópole, cabe verificar o que faziam do milho os nativos do Continente Americano. Encontrei dois textos muito interessantes. Vamos ao primeiro, no qual o autor relata um uso sui generis de uma variedade de bolo de milho:
"Nos funerais poucas cerimônias se observavam; abriam os parentes uma cova, acompanhavam até lá o corpo, dividiam entre si o espólio do finado, e esqueciam-no. Com singular costume porém manifestavam os Retoronhos, Pechuyos e Guarayos o seu sentimento pelos mortos: consumido o corpo, desenterravam os ossos, e reduziam-nos a pó, de que misturado com milho preparavam um bolo, oferecer ou participar do qual era o maior sinal de amizade.
Antes de saberem o que comiam foram alguns dos primeiros missionários regalados com este pão de família." (⁴)
Recupere o fôlego, leitor, e vamos a um caso relacionado a indígenas especificamente do Brasil. Quem fez o relato foi Botelho de Sampaio, em carta ao capitão-general de São Paulo, ao que parece no século XVIII, narrando sua própria experiência em travar contato com uma tribo indígena:
"Trouxeram milho, que ofertaram e da mesma forma bolos de milho, tão asquerosos, que só o desejo de lhes agradecer tirava o horror de os aceitar, sendo dificultoso achar meios de dilatar o comê-los, tanto instavam que o fizéssemos." (⁵)
Sim, o choque cultural pode trazer consigo situações algo embaraçosas...
Indo adiante, e já a caminho do final, quero referir-me a um relato que fez Gabriel Soares de Souza em 1587. Ora, tão distante no tempo, esse autor talvez traga a referência mais próxima daquilo que nós, hoje, conhecemos por bolo de milho, incluindo no preparo o uso de ovos e açúcar. Veja por si mesmo:
"Há outra casta de milho, que sempre é mole, do qual fazem os portugueses muito bom pão e bolos com ovos e açúcar. O mesmo milho quebrado e pisado no pilão é bom para se cozer com caldo de carne, ou pescado, e de galinha, o qual é mais saboroso que o arroz, e de uma casta e outra se curam ao fumo, onde se conserva para se não danar; e dura de um ano para outro." (⁶)
Já perguntei a vários fornecedores dos famosos bolos de milho de Piracicaba e de Águas da Prata, e todos eles juraram pelo céu, pela terra e pelos mais recantos do universo que suas receitas não incluem ovos. Mas seria demais pedir àqueles cujo ganha-pão é o bolo de milho, que revelem seus segredos. O que percebemos, depois de percorrer esses vários documentos de distintas épocas, é que o bolo de milho tem, em cada cultura, sua própria tradição, de acordo com os hábitos e preferências já muito arraigados, que fazem com que uma parte da humanidade ame aquilo que outra detesta e até acha nojento. Esse fato não ocorre, nem de leve, apenas com bolos de milho.
Vale a mesma coisa em relação ao curau. Em 1804, um alferes do regimento regular de Vila Rica, chamado Joaquim José Lisboa, publicou um  poema, ao qual denominou Descripção Curiosa, exaltando o que se via no Brasil e incluindo, naturalmente, os comes e bebes. Como amostra, cito duas estrofes, mantendo, na escrita, tanto quanto possível, o falar regional:

"Temos a canjica grossa,
Pirão, bobôs, carajés,
Temos os jocotupés,
Orapronobis, tutus.

Também fazemos em tempo
Do milho verde o corá,
Mojangués e vatapá,
Pés de moleque e cuscuz." (⁷)

Em duzentos anos, apenas mudou-se o nome - de corá, para curau. Quanto ao sabor, vai cada vez melhor.

(1) _____________ Ensaios sobre a Estatística das Possessões Portuguesas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844, p. 106.
(2) _____________ Arte do Cozinheiro e do Copeiro. Lisboa: Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1845, p. 307.
(3) CASTRO, Affonso de. As Possessões Portuguesas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867, pp. 221-222.
(4) SOUTHEY, R. Historia do Brasil vol. 5. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, pp. 264-265.
(5) REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO BRASIL, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Laemmert, 1855, pp. 272-273.
(6) REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO BRASIL, vol. XIV. Rio de Janeiro: Laemmert,1851, p. 173.
(7) Florilégio da Poesia Brasileira, vol. 2. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850, pp. 558 e 559.


Veja também:

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Os problemas ambientais no Brasil e uma "profecia" de quase duzentos anos

Como José Bonifácio alertou para as consequências da degradação ambiental


Boa parte do Brasil está passando por prolongada estiagem. Os efeitos são facilmente notados, tanto na saúde da população (sendo as crianças e idosos os que tendem a sofrer mais em decorrência da péssima qualidade do ar), quanto na enorme facilidade com que incêndios conseguem propagar-se, quer nas matas, quer nas cidades. Ainda esta manhã os telejornais mostravam uma favela a arder no Jabaquara, com o quadro agravado por tratar-se de área próxima ao aeroporto de Congonhas. Já os jornais estão a falar em "dias de Saara" para São Paulo e adjacências, paralelamente à divulgação de dados alarmantes relativos aos incêndios florestais, que chegam a desafiar a perseverança e competência de bombeiros e voluntários por semanas inteiras, como é o caso do que ainda ocorre na Ilha do Bananal. Agricultores lamentam o comprometimento das lavouras, enquanto que em algumas cidades, aquelas com sistemas de captação menos eficientes, já começam a ser impostas medidas para controle do consumo de água.
É nesse clima que escrevo e, para ser mais exata, neste momento a umidade relativa do ar marca absurdos 13%, o que me fez lembrar de uma leitura de tempos atrás que quero compartilhar com você, leitor.
Era o ano de 1823 e, em meio aos debates da Assembleia Constituinte, José Bonifácio escreveu uma memória em que advogava o fim gradual da escravidão, mostrando toda a inconveniência do trabalho compulsório para o Brasil. Ocorre que a Constituinte foi dissolvida e, como se sabe, José Bonifácio foi exilado, de modo que a citada memória, com o título de A Abolição, só veio a ser impressa pela primeira vez em Paris, no ano de 1825, após o que virtualmente caiu no esquecimento, do qual só foi arrancada pela crescente luta abolicionista nos anos oitenta do século XIX. Mas, nesse tempo, Bonifácio já era falecido há décadas.
Por suposto o leitor atento de nossos dias notará nessa pequena obra todo o ideário do tempo em que foi produzida, o que não invalida a ideia central que seu autor desenvolveu. Não, não estou fugindo do assunto da postagem; ao contrário, concluo citando um breve trecho de A Abolição, para que você possa estabelecer seu próprio juízo sobre o assunto:
"A natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da natureza. Nossas terras estão ermas, e as poucas, que temos roteado, são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; nossas numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas, ou mal aproveitadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favoreçam a vegetação, e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil em menos de dois séculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos."(*)
Que lhe parece? Bonifácio escreveu em 1823. Estamos no Século XXI!


(*)  ANDRADA E SILVA, J. B. A Abolição. Rio de Janeiro: Lombaerts & Comp., 1884, pp. 34 e 35.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A arquitetura sacra paulista e mineira nas regiões cafeeiras - 7

Catedral de N. Sra. do Amparo (Amparo - SP)


Chegamos, leitor, à última postagem da série A Arquitetura Sacra Paulista e Mineira nas Regiões Cafeeiras. Depois de passear por várias cidades, visitaremos a Catedral de Nossa Senhora do Amparo, na cidade de Amparo - SP. É certo que haveria muitas outras cidades e suas igrejas a percorrer, mas algum tipo de seleção é sempre inevitável e, neste caso, valeram minhas preferências...
A primeira capela de Nossa Senhora do Amparo é datada de, aproximadamente, 1824 (muito antes, portanto, da expansão cafeeira, ocorrida a partir de 1850), e foi erigida em um terreno cedido por João Bueno da Cunha. Percebe-se, porém, o quanto o café foi decisivo para o estabelecimento de um núcleo urbano significativo quando consideramos a cronologia subsequente: a construção da igreja matriz ocorreu entre 1855 e 1878, constando que a imagem de Nossa Senhora do Amparo veio do Porto (Portugal), por solicitação de dona Anna Cintra, a Baronesa de Campinas. Ampliação posterior (início do século XX) acrescentou as duas torres. Os quadros a óleo são de Benedito Calixto. Bem mais recente é a elevação a catedral, ocorrida no ano de 1997.

A título de conclusão...


Julgo conveniente, ao concluir esta série, fazer um breve inventário dos padrões observáveis em relação ao assunto em análise. Vejamos, pois.

1. Como regra geral, uma capela é construída em uma fazenda ou outra área (quase) desabitada, e uma povoação vem a formar-se irregularmente ao redor dela. Uma exceção notável a esse modelo é a da Igreja de Santa Maria, em Jaguariúna, ao redor da qual foi estabelecida a Vila Bueno, devidamente planejada.

2. A capela primitiva, geralmente uma construção precária, é demolida para dar lugar a uma igreja de maior dimensão e solidez. Em alguns casos, a primeira igreja também é demolida e, em seu lugar, encontramos o templo atual (note-se que, provavelmente, ao demolir uma igreja para construir outra, não há qualquer consciência de que a anterior poderia significar algum patrimônio histórico digno de preservação).

3. A igreja, quase sempre o maior edifício de uma localidade, é levantada em etapas, de acordo com as possibilidades da população, refletindo, muitas vezes, o andar da economia do País. São casos mais ou menos recorrentes:
a) Edifica-se a nave e posteriormente são acrescentadas torres e/ou cúpula;
b) A construção passa por uma ampla reforma que descaracteriza por completo o edifício original.

4. Em consequência da construção por etapas:
a) O estilo torna-se eclético, mas sem que haja tal intenção (seja por falta de planejamento, seja porque as modas são outras);
b) As igrejas iniciadas em tempos áureos do café apresentam alvenaria grandiosa. Se, no entanto, são concluídas após a grande crise de 1929, tendem a apresentar o acabamento interior bem mais modesto, ensejando reformas extremas, principalmente a partir dos anos 70, que por vezes resultam em completa descaracterização. Excetuam-se aqui os poucos casos em que o tombamento impede tais alterações.

5. Finalmente, vale lembrar que o padrão é a reforma, não a restauração. Sobre essa questão, todavia, voltarei a escrever em momento oportuno.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A arquitetura sacra paulista e mineira nas regiões cafeeiras - 6

Monte Sião e Jacutinga são cidades do Estado de Minas Gerais que têm muito em comum com as cidades paulistas mais próximas, destacando-se nessas semelhanças o fato de que, no passado, foram áreas importantes para a agricultura cafeeira, além de terem recebido um enorme contingente de imigrantes para trabalhar na lavoura. Aliás, no caso das duas cidades mineiras, a presença italiana é fortíssima. Nessa penúltima postagem da série, tratarei do Santuário de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa (Monte Sião) e da Igreja Matriz de Santo Antônio (Jacutinga).

Santuário de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa (Monte Sião - MG)



A edificação de uma primeira capela foi autorizada em 1849 e, pelo que se afirma na cidade, localizava-se aproximadamente onde está o coreto da Praça Prefeito Mário Zucato. Curiosa, no entanto, é a história da imagem trazida de Portugal nos idos de 1860, que já foi retirada do altar porque suas formas não são exatamente as que costumam ser empregadas para representar uma santa... Mas o caso é que foi restituída a seu posto e lá está para ser vista por quem quiser.
A igreja que sucedeu a primeira capela não existe mais, infelizmente. Foi demolida e deu lugar ao atual templo, cuja construção durou dos anos trinta aos cinquenta do século XX. A elevação à condição de Santuário de N. Sra. da Medalha Milagrosa data de 1999.

Ao centro, a imagem de N. Sra. da Medalha Milagrosa que é citada na postagem

Igreja Matriz de Santo Antônio (Jacutinga - MG)


Data de 1845 a edificação da primeira capela, em terras que foram cedidas por José Francisco Fernandes e esposa. A atual igreja destaca-se pela localização elevada e pela força e beleza da construção, rodeada de jardins. Os vitrais são interessantes e, quanto ao relógio da torre, afirma-se que foi construído na própria cidade.
A propósito, na praça que a cerca está um monumento celebrando o centenário da independência do Brasil, o qual ganha muito em significado, já que nos aproximamos do bicentenário (a ser comemorado em 2022). A placa superior diz "7 de Setembro 1822 - 1922 O povo de Jacutinga commemora o centenário da Independência do Brasil." Na ocasião em que estive na cidade faltava, porém (como se vê na foto), uma outra placa. Certamente vale a pena a restauração. Observo aqui, entretanto, que o "fenômeno" da desaparição de placas em monumentos não é, de modo algum, privilégio de Jacutinga - pode ser observado em muitas cidades, o que é lamentável, pois dificulta a identificação de pontos importantes tanto por turistas como pelos próprios moradores.


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domingo, 15 de agosto de 2010

A arquitetura sacra paulista e mineira nas regiões cafeeiras - 5

Santuário do Senhor Bom Jesus (Monte Alegre do Sul - SP)


Quem quer que vá à pequenina Monte Alegre do Sul  por certo ficará encantado com a paisagem natural, que faz da cidade e de seus muitos hotéis campestres um excelente lugar para repouso. Não tenho dúvidas quanto ao potencial turístico da região, apenas considero-o subexplorado, uma vez que seu precioso patrimônio histórico sequer é divulgado como deveria.
Como já tive oportunidade de mencionar em outras postagens, são muitas as povoações nascidas a partir da construção de uma capelinha e, neste caso, o fenômeno se repete. A capela do Senhor Bom Jesus foi construída muito modestamente em 1873, em terras que pertenciam a Lourenço de Godoi. Entretanto, nova construção foi feita em 1882, sendo o atual edifício inaugurado em 1919 (a última restauração data de 1997). A elevação a Santuário do Senhor Bom Jesus ocorreu em 1932.
Algumas singularidades deste pequeno e belo templo são os altares (altar-mor em madeira, os demais em mármore) e as pinturas, do artista italiano D. Rocco.
A igreja é emoldurada pelo casario do século XIX e início do século XX que ainda se conserva, e que vale uma visita se você, leitor, viajar pela região.

Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário (Serra Negra - SP)


Serra Negra é famosa como estância hidromineral, pelo seu turismo de inverno, suas muitas malharias e pela indústria do vestuário em couro. Em meio a tantas atrações, seu aspecto histórico fica um pouco esquecido, mas não é, por isso, menos valioso. Menciono aqui, de acordo com o propósito desta série, a Matriz de Nossa Senhora do Rosário, por estar associada às origens da própria cidade.
A capela de N. Sra. do Rosário data de 1841, sendo edificada em terras pertencentes a Lourenço Franco de Oliveira, quando a época do apogeu do café ainda estava distante - as árvores com seus frutinhos vermelhos só viriam a integrar-se à paisagem montanhosa a partir de 1873, e, no rastro da necessidade de braços para a lavoura, a imigração italiana começou em 1880. Hoje, quem visita Serra Negra logo percebe, sem sequer precisar estudar História, que os descendentes dos imigrantes tornaram-se a maioria da população, sendo fácil notar, por toda parte, a influência italiana na arquitetura.


A atual Igreja Matriz foi construída entre os anos de 1909 e 1916, com o emprego do estilo arquitetônico toscano-lombardo, em conexão com as origens da população da cidade. Na década de 60 toda a construção passou por reforma, principalmente em seu interior, em que se destacam belas pinturas e vitrais.


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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Reflexões sobre a dignidade humana e os limites à ação do Estado

Peço licença, leitor, para uma breve interrupção na série de postagens A Arquitetura Sacra Paulista e Mineira nas Regiões Cafeeiras. Como se verá, essa pausa é por uma boa razão.
Você já parou para pensar no que é, efetivamente, a função do Estado na sociedade contemporânea? Ou talvez, dizendo melhor, no que deveria ser a função do Estado? No que justificaria sua existência? Pois vai aqui minha concepção sobre a matéria.

1) O Estado existe com a obrigação precípua de legislar e mediar as relações entre os cidadãos, com o propósito de preservar a integridade do tão falado e, ao mesmo tempo, tão incompreendido pacto social.
2) Ao Estado jamais deve ser atribuído o direito de intrometer-se na privacidade dos cidadãos. Não pode e não deve legislar sobre questões de opinião (seja essa opinião de caráter político, religioso, ou de qualquer outra natureza), nem sobre coisas que somente interessam aos cidadãos enquanto indivíduos, não resultando em dano aos demais. Tornando isso mais claro, quero dizer que ao Estado não compete interferir na área da moral privada. Quando muito, isso é terreno para a educação e a religião, sem que haja, porém, qualquer ação coercitiva. Isto posto e, para exemplificar o que digo, não cabe ao Estado legislar, por exemplo, no terreno da moral sexual de pessoas adultas, desde que na esfera das relações mutuamente consentidas, devendo, por outro lado, fazê-lo no sentido de proteger crianças e adolescentes, na medida em que se supõe que não estão ainda aptos a decidir nesse terreno por si mesmos. Um outro exemplo, talvez ainda mais elucidativo, é que o Estado tem a obrigação de proteger a vida dos cidadãos do eventual ataque de terceiros, e, por isso, deve punir um assassinato, mas não deveria ter o direito de criminalizar o suicídio, que é questão exclusivamente do âmbito pessoal, ainda que possa prestar assistência para evitar que, levado pelo desespero, um ser humano venha a optar pela "solução extrema".
3) Por último, deve o Estado preservar sua laicidade, sem qualquer relação promíscua que venha a interferir no livre exercício de suas legítimas atribuições.

Sim, leitor, são pouquíssimos os Estados que se enquadram nesse perfil, mas isso, a meu ver, é um ideal a ser perseguido e será tanto mais facilmente alcançado quanto maior for o grau de desenvolvimento de uma dada sociedade. Por outro lado, sempre que se concede ao Estado o direito de legislar em questões, não da ética (na relação dos cidadãos entre si), mas da moral (em assuntos do cidadão para consigo mesmo), os resultados são funestos. Está-se no caminho do totalitarismo, no qual os interesses do Estado são supremos e estarão sempre acima dos interesses dos cidadãos, seja individual ou coletivamente. Remova-se o véu dos Estados que o fazem e acabar-se-á encontrando, inevitavelmente, Auschwitz, Treblinka ou Sobibor, ainda que em escala (talvez) menor, mas não menos esmagadora da dignidade humana.
Ora, considerações de Realpolitik têm impedido, com uma certa frequência, que regimes detratores dos mais elementares direitos humanos sejam tacitamente condenados diante do cenário mundial, regimes que, sendo geralmente incapazes de proporcionar aos cidadãos condições de vida satisfatórias, conseguem apenas equilibrar-se na posição de autoridade com base no binômio corrupção e repressão, a primeira para perpetuar-se no poder através de farsas chamadas de eleições e a segunda para aterrorizar, calando as vozes que, num gesto supremo de coragem, tenham o atrevimento de levantar-se contra a situação vigente. E, nesse caldeirão de atrocidades, cabe quase tudo: mulheres são apedrejadas sob a acusação de adultério (onde estarão os homens adúlteros?), homossexuais são condenados à morte, ladrões banais são mutilados, jovens estudantes que protestam contra o regime são assassinados em plena via pública, parecendo não haver limites e, o que é pior, muitas vezes em nome da religião ou da pátria.
Dir-se-á que o apedrejamento é - perdoem-me o trocadilho - um costume da Idade da Pedra. Entretanto, pétreos são os cérebros que pretendem mantê-lo em nossos dias. Aliás, pergunto-me, lembrando Cesare Beccaria (*), se é razoável, para punir um assassinato, cometer outro. Mas isso já é outra questão. O que fica evidente é a necessidade de imediata reação da comunidade internacional civilizada e coesa no sentido de pressionar pelo fim de regimes fundamentalistas de qualquer tipo (estou longe de pensar apenas em questões religiosas), ou aquilo que é hoje um caso individual, ainda que emblemático, pode vir a ser um drama de proporções mundiais. O exemplo do passado é suficiente para assegurar que minhas preocupações não são descabidas.
 
(*) Dei Delitti e Delle Pene


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terça-feira, 10 de agosto de 2010

A arquitetura sacra paulista e mineira nas regiões cafeeiras - 4

No Estado de São Paulo, já próximo à divisa com Minas Gerais, está a cidade de Espírito Santo do Pinhal. É, ainda hoje, um centro importante de produção cafeeira. Selecionei nela duas igrejas, porque são particularmente representativas para o propósito de analisar as construções sacras com valor histórico relativas ao período da hegemonia cafeeira em São Paulo e Minas Gerais. (Veja a primeira postagem desta série).

Igreja Matriz do Divino Espírito Santo (E. S. do Pinhal - SP)



A principal igreja da cidade é a Matriz do Divino Espírito Santo, cujas origens estão entrelaçadas às de Pinhal enquanto conglomerado urbano. A propósito, leitor, já notou como isso é comum no Brasil? Ergue-se uma capelinha, algumas casas são construídas nas adjacências e, depois de algum tempo, tem-se uma povoação estabelecida. Trata-se de um padrão recorrente e, quem sabe, algum dia, ainda escreverei uma postagem a esse respeito.
Em uma área doada pelo casal Romualdo de Souza Brito e Thereza Maria de Jesus foi erigida a capela original que, posteriormente, cedeu lugar à atual Igreja Matriz (outro padrão recorrente, conforme já observei em postagem anterior). Isso, naturalmente, está ligado, pelo menos no caso de Espírito Santo do Pinhal, ao crescimento de sua população em decorrência da prosperidade acarretada pela expansão da agricultura cafeeira. O comparativo abaixo é uma demonstração prática do que estou dizendo:


A cronologia da construção da Igreja Matriz é a seguinte:
1886 - Início da construção;
1897 - Conclusão da fachada;
1898 - Colocação do sino;
Década de 30 do século XX - construção da segunda cúpula.

A simples observação da edificação como hoje se vê permite constatar que, sendo produto de um longo trabalho, o estilo se mostra algo eclético. Seria pouco razoável esperar o contrário.


Igreja de São Benedito (E. S. do Pinhal - SP)




Outra igreja que chama a atenção é a de São Benedito, construída por iniciativa da população afrodescendente. As obras de edificação tiveram início em 1900, mas a construção arrastou-se por décadas. Externamente, não é muito diferente de outras pequenas igrejas da mesma época, mas o interior surpreende pelos belíssimos altares entalhados em madeira. Na ocasião em que a visitei, estava passando por obra extensa de restauração. Conforme explicou um restaurador que trabalhava no local, a igreja foi muito afetada por chuvas que destruíram o forro, o qual foi substituído por outro, mais leve, com estrutura metálica (oculta), para assegurar a preservação da aparência, sem, contudo, deixar de lado a segurança. A fotografia abaixo mostra os altares, que também estavam sendo devidamente restaurados.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A arquitetura sacra paulista e mineira nas regiões cafeeiras - 3

Olá, leitor, vamos continuar nossa peregrinação histórica virtual... As visitas de hoje serão à Matriz Centenária de Santa Maria, em Jaguariúna, e à Matriz de Sant'Ana, em Pedreira. Para quem não sabe, Pedreira e Jaguariúna são cidades vizinhas - muito vizinhas.
Ah, recomendo a quem não leu a primeira postagem da série, que o faça, para melhor entendimento do que vai ser dito (clique aqui).

Matriz Centenária de Santa Maria (Jaguariúna - SP)


A Igreja Matriz de Santa Maria, também conhecida como Matriz Centenária,  foi construída por ordem do Coronel Amâncio Bueno, que era proprietário de terras na região do que hoje conhecemos por Jaguariúna, como parte de um projeto de urbanização consciente e deliberado,  resultante do desmembramento de terras da Fazenda Florianópolis. Curiosamente, ao contrário do que era prática mais ou menos usual na época em muitas localidades, em que ruas e casas surgiam sem grande organização, o Coronel Amâncio Bueno contratou um engenheiro, Wilhelm Giesbrecht, para planejar o que viria a ser a Villa Bueno, na qual a Igreja Matriz deveria ocupar um lugar de destaque, e o arruamento adjacente, sempre que possível retilíneo, levava em conta a existência do rio Jaguari e a possibilidade de eventuais inundações.
As obras de edificação começaram em 1889, sendo a conclusão datada de 1894, resultando em um templo no estilo gótico-bizantino. Ainda durante a construção, a Paróquia de Santa Maria foi devidamente oficializada em fevereiro de 1892. Obras posteriores tornaram a praça defronte à igreja particularmente importante, já que nela instalou-se um primeiro chafariz, destinado ao abastecimento de água para a população que se estabeleceu nos arredores. Na mesma praça foi colocado, ainda no século XIX, um monumento comemorativo à iniciativa  do Coronel Amâncio Bueno quanto à edificação da igreja, que está muito bem preservado (foto, à direita).


Igreja Matriz de Sant'Ana (Pedreira - SP)


A Igreja Matriz de Sant'Ana, em Pedreira, tem quase a mesma idade da de Jaguariúna - data de 1899. Vale explicar que Pedreira nasceu pelo povoamento de terras da Fazenda Sant'Ana, uma propriedade dedicada ao cultivo de café, que desde 1885 pertenceu ao Coronel João Pedro de Godoy Moreira, considerado o fundador da cidade. A construção segue o estilo gótico e, na praça existente defronte à igreja, há um monumento listando todos os párocos que ali atuaram (de suas origens à atualidade).



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