quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Em perpétua memória - mensagens escritas em troncos de árvores

É fácil perceber que nós, humanos, não gostamos da ideia de ser esquecidos. Basta observarmos as lápides em um cemitério para logo encontrarmos frases do tipo "fulano de tal, descansa em perpétua memória", ainda que os túmulos estejam recobertos de mato. Além disso, todo mundo já ouviu algum locutor esportivo mais exaltado, berrando a plenos pulmões "esta é uma jogada para entrar para a história!", e vai repetindo essa mesma fala, uma partida após outra. Mas, se quisermos ser realistas, logo ninguém mais se lembrará da tal "jogada histórica".
Ora, se tais afirmações de eternidade, ainda que falaciosas, conseguem trazer alguma satisfação ao ego de seres transitórios, por que deveríamos nós condená-las? A questão é que tudo tem limite.
Dê uma olhada, leitor, nesse pobre tronco de árvore aí ao lado. Um dia desses estava caminhando pelo mirante do "véu da noiva" (salto do rio Piracicaba, na cidade de mesmo nome, um belo lugar que vale a pena conhecer), quando vi uma das árvores cravejada de nomes de pessoas que talvez tenham pretendido, com o gesto de escrevê-los, preservar a memória de si mesmas ou de algum suposto amor para sempre...
Pois bem, sejamos justos, não é de hoje que a humanidade considera as árvores, talvez por sua extraordinária longevidade, como símbolo daquilo que é permanente. É só observar as crenças primordiais das mais diversas culturas. Entende-se que quem escreve num tronco de árvore deve, ainda que inconscientemente, buscar uma certa garantia de perpetuidade. Daí a contribuir para a destruição de um bosque público, já é outra coisa. Portanto, àqueles que têm o detestável hábito de escrever em troncos de árvores, só temos a recomendar (além, é claro, de preocupações ecológicas), que sejam mais criativos e encontrem formas menos danosas de se fazerem notar.


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domingo, 21 de fevereiro de 2010

A libertação da escrava Joaquina

As principais leis abolicionistas anteriores à Lei Áurea (1888) foram a Lei Eusébio de Queirós (1850), que determinou a abolição do tráfico de africanos para o Brasil, a Lei do Ventre Livre (1871), que tornava formalmente livres os filhos de mães escravas nascidos a partir da data em que a lei passou a vigorar, e a Lei dos Sexagenários (1885), verdadeiro absurdo que, ao mesmo tempo em que alforriava os escravos idosos, isentava os antigos senhores de qualquer responsabilidade para com eles. Entretanto, havia um outro modo pelo qual um escravo poderia vir a ser livre: a compra da liberdade. Vamos ver um exemplo disso.
Em 16 de janeiro de 1873, na cidade de Campinas, uma escrava de nome Joaquina apresentou-se diante da autoridade competente, alegando querer resgatar a própria liberdade, para o que apresentou a quantia de trezentos mil réis. Afirmava ela que, por ser idosa (tinha mais ou menos cinquenta anos) e por estar incapacitada para o trabalho, não deveria valer mais do que duzentos mil réis. Seguindo a tramitação normal, o senhor, Bernardo Novaes, foi chamado a uma primeira audiência para escolher em uma lista as pessoas que deveriam arbitrar o valor da escrava. Enquanto transcorria o processo de manumissão, Manoel Ferraz de Campos Sales (futuro presidente da República) foi nomeado curador de Joaquina, e o pecúlio de trezentos mil réis que ela apresentara foi depositado em mãos de Augusto Klein. Posteriormente, a escrava foi avaliada em duzentos mil réis, sendo a importância entregue a dona Maria Benedita do Carmo, esposa de Bernardo Novaes e legalmente curadora de seus bens. Por solicitação de Campos Sales, os restantes cem mil réis foram entregues à libertanda e, finalmente, para concluir o processo, Joaquina recebeu a "carta de alforria", que transcrevo:

"O Dr. Francisco Gonçalves da Silva, Juiz Municipal nesta cidade e termo de Campinas.

Faço saber aos que esta virem que a preta Joaquina, de cinquenta anos, foi por este Juízo declarada liberta por sentença de vinte de março do corrente ano, visto exibir a quantia de duzentos mil réis, valor arbitrado para sua liberdade nos respectivos autos, que foi recebida pela curadora de seu ex-proprietário Bernardo Novaes; portanto fica ela de hoje em diante livre como se assim nascesse, na forma da respectiva lei. E para seu título mandei passar a presente que vai por mim assinada.

Campinas, 22 de março de 1873.
Eu, José Henrique Pontes, escrivão, que isso escrevi." (*)

Esse belíssimo e emblemático documento não deixa de sugerir algumas considerações:
  • A escrava, dizendo-se idosa e sem condições para o trabalho, afirmava ter aproximadamente cinquenta anos. Isso não chega a ser surpreendente, já que as péssimas condições de vida da imensa maioria dos escravos geralmente conduziam a uma invalidez precoce;
  • De onde veio o dinheiro para a alforria? Talvez  nunca venhamos a saber, mas uma possibilidade está relacionada ao surgimento, por essa época, de diversos clubes abolicionistas, que se empenhavam por levantar fundos para a compra da liberdade dos cativos;
  • Outro detalhe interessante é que o processo transcorreu rapidamente (pouco mais de dois meses), aparentemente sem obstáculos por parte do proprietário ou de sua curadora. Havia senhores, porém, que colocavam dificuldades à manumissão de seus escravos, circunstância em que um processo de alforria podia durar mais de um ano.
Interrogamo-nos sobre o modo de vida de Joaquina após sua libertação. Lamentavelmente não temos documentação a respeito e apenas podemos conjecturar sobre as dificuldades em estabelecer-se, sozinha, como idosa, mulher e ex-escrava numa sociedade absolutamente preconceituosa. O que Joaquina não podia saber é que, passados cento e tantos anos, estaríamos nós, hoje, falando sobre ela. E, qualquer que tenha sido seu destino, homenageamos aqui suas mãos trabalhadoras que ajudaram a estabelecer este país.

(*) Cartório do Segundo Ofício de Campinas, maço 76, 1866 - 1883.

  
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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Esqueceram-se da placa!



Ainda em  minha ida a Monte Alegre do Sul (veja a postagem anterior), visitei uma ponte da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, datada de 1887, que se encontra em excelente estado, depois de passar por restauração mais ou menos recente. Entretanto, leitor, eis que observo um fato insólito: esqueceram-se da conservação da placa de identificação existente no local.
Paciência! Ao menos Dona  Aranha, que lá reside, cuida dela. Zelosamente.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O conjunto arquitetônico em taipa e a Ferrovia Mogiana em Monte Alegre do Sul


Igreja do Senhor Bom Jesus
Casario em taipa
Estive visitando no domingo, dia 14, a pequena cidade de Monte Alegre do Sul. Meu interesse era ver o casario de taipa, datado de fins do Século XIX e início do Século XX. Como esperava, o estado de conservação, no geral,  não é dos melhores, mas foi divertido percorrer as ruas estreitas que nos trazem lembranças de outros tempos. Monte Alegre do Sul tem clima muito agradável e está situada no vale do rio Camanducaia, rodeada pelas elevações da Serra da Mantiqueira. A Igreja do Senhor Bom Jesus, ponto central do conjunto arquitetônico, está bem cuidada e, pelo que pude ver, não apresenta, ao menos externamente, nenhuma descaracterização significativa.
Fui depois ver a antiga estação da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, desativada, pelo que soube, em 1966. Lá funciona agora a Biblioteca Municipal e, defronte dela, há uma máquina a vapor (fabricada em 1910) e um carro de passageiros, excepcionalmente bem restaurados e conservados. Uma beleza!
Locomotiva da Cia. Mogiana
Tudo quase perfeito? Infelizmente não.
Às vezes me pergunto: quando será que as autoridades competentes vão barrar os pichadores irresponsáveis, que detratam o já combalido patrimônio histórico?
Em uma cidade cuja população residente é de mais ou menos seis mil habitantes, não deveria ser difícil, a despeito do grande movimento de turistas, controlar eventuais engraçadinhos (que, aliás, não têm graça nenhuma), que se acham no direito de arruinar a pintura de casas particulares e edifícios públicos. E, como se não bastasse, há ainda a mão, seguramente bem intencionada, de alguém que, tentando preservar, acabou descaracterizando o belo conjunto de locomotiva e carro de passageiros da extinta Mogiana ao colocar, coladas com durex, advertências para impedir o acesso indevido.
Gostaria de acreditar que medidas educativas poderiam convencer os pichadores a irem em busca de alguma forma legítima de expressão, mas não consigo ter essa inocência. É preciso que medidas punitivas sejam devidamente aplicadas.

Imagens do descuido com o patrimônio histórico

Por outro lado, não há dúvidas de que o poder público tem condições de adotar providências adequadas para promover a conservação e divulgação da memória ferroviária, sem a necessidade de recorrer a soluções prosaicas como as tais advertências coladas com durex ou a estranha amarração com arame das entradas da máquina e do carro de passageiros. Cuidando disso, a pequena e agradável Monte Alegre do Sul só terá a ganhar.


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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Estranha restauração


O prédio da foto abaixo é utilizado para funções administrativas em uma cidade do interior de São Paulo.


É muito semelhante a tantas outras construções que encontramos na mesma região. O que chama a atenção, porém, é um detalhe no alto da fachada, conforme você verá na próxima foto:


A data, aparentemente pintada com alguma indecisão, é 1834. Acontece que, conforme verifiquei, a emancipação do município ocorreu em 1896, antes do que a região era povoada, principalmente, por fazendas de café. Coloca-se, portanto, uma questão no mínimo curiosa...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

"Oportunidade para moças"

Esta postagem, leitor, é para você treinar sua "percepção histórica"!
Na revista semanal Jornal das Moças de 28 de dezembro de 1950 apareceu o seguinte anúncio:


Ficou chocado?
Vão aqui algumas explicações: o Jornal das Moças foi uma revista voltada para o público feminino, e circulou semanalmente entre 1914 e 1965. Era editado no Rio de Janeiro que, na época, era a Capital do país. A despeito da linguagem e valores daquelas décadas, as temáticas abordadas não eram muito diferentes das de tantas outras revistas que circulam hoje (fofocas de cinema, cosméticos, moda, culinária, etc.). Entretanto, este anúncio é exemplar. Analisemos o caso.
- Primeiro, afirma-se que as vagas são para "uma profissão de fácil aprendizagem" e, imediatamente, acrescenta-se, "própria para moças" (quereria o anunciante dizer que uma coisa era consequência da outra?);
- Segue informando as facilidades ("fácil de aprender, simples de executar e dirigido por moças");
- Traz uma lista de outras vantagens e, finalmente, coroa a propaganda declarando que "as candidatas devem saber ler, escrever e as 4 operações sobre números inteiros".
Faço uma pausa para que você, leitor do sexo masculino, dê a habitual  risadinha sexista. Não imagine, porém, que o nível médio de instrução entre a população masculina fosse muito diferente disso. Agora, continuemos.
Esse anúncio, como já disse, é de 1950. São, portanto, apenas sessenta anos, ou seja, tão perto de nós e, ao mesmo tempo, tão longe. Perto no tempo, longe no cenário socioeconômico. O que mudou?
Já há muito tempo não precisamos de telefonistas para fazer uma ligação que, às vezes, levava horas (ou dias) para ser completada. É pouco provável que alguma empresa séria anuncie vagas desse modo (mesmo porque, se fosse o caso, seria quase impossível atender a todos os candidatos, face ao atual cenário de desemprego) e os requisitos para o trabalho são, geralmente, bem maiores. Pode-se dizer, portanto, que mudou drasticamente o grau de desenvolvimento tecnológico, bem como o panorama do mercado de trabalho. Mas o que mais impressiona são as permanências.
Permanece a defasagem entre a escolaridade média da população e as exigências do mercado (e não estou falando em anos de escolaridade formal e em acesso universal à educação, campos em que houve, de fato, muito progresso, mas em real capacitação que se traduza em trabalho mais eficiente), permanece a diferença entre o que se paga para um homem e para uma mulher por idêntico trabalho realizado, permanece muitas vezes a discriminação no ambiente de trabalho e, embora já não seja necessário acenar com supostas vantagens para atrair a mão de obra feminina, permanece a jornada dupla e, às vezes, tripla, para a mulher trabalhadora.
Haverá mudança?
Quando?
Espero que não sejam necessários outros sessenta anos para que futuras gerações de historiadores constatem a mudança que gostaríamos de ver agora mesmo.

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