quinta-feira, 30 de agosto de 2012

As comemorações, em 1922, do centenário da Independência do Brasil

Moeda cunhada em comemoração ao
centenário da Independência do Brasil:
uma visão personalista dos acontecimentos,
destacando as figuras do primeiro imperador
(D. Pedro I) e do presidente da República
em 1922 (Epitácio Pessoa).
Em 1922 comemorou-se o centenário da Independência do Brasil. Foram grandes os festejos, tanto na data oficial - 7 de setembro - quanto nos anos precedentes.
Acontece que não foram poucas as críticas relativas às grandes despesas feitas para a comemoração: o País vivia um momento de crise econômica (mais uma, dentre muitas), em que seu principal produto de exportação, o café, estava já demasiadamente desvalorizado, e muitos achavam que era um verdadeiro despropósito que se fizessem grandes gastos com a festa, diante do fato de estar a economia em situação não exatamente invejável. Por outro lado, politicamente, havia uma certa instabilidade, decorrente de agitações que hoje chamamos de Movimento Tenentista, mas pode-se entender que, para um governo bastante questionado, era importante aparentar solidez e credibilidade, e os eventos associados aos cem anos da Independência pareciam especialmente talhados para isso. Um certo ufanismo nacionalista podia ser muito útil para camuflar problemas bem conhecidos mas nunca resolvidos, o que, aliás, é fenômeno político que não está, de modo algum, restrito a uma época ou lugar. Não é, nem de longe, monopólio do Brasil.
A lembrança da data teve, no entanto, um lado positivo. Nos anos precedentes, cresceu o interesse pelo estudo dos acontecimentos relacionados à História do Brasil, valorizou-se a descoberta e análise de documentos antigos, particularmente relativos ao período colonial; publicaram-se livros, atribuiu-se maior importância à cultura nacional, locais de interesse histórico foram restaurados (para, infelizmente, serem depois abandonados, em muitos casos), construíram-se monumentos (alguns de muito bom gosto, a maioria, nem tanto). Enfim, os debates intelectuais que nasceram nesse momento alimentaram o interesse de gente pensante por um bom tempo.
E quanto ao bicentenário, a ser comemorado em 2022? Bem, os próximos anos nos trarão, necessariamente, a resposta...


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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Providências de El-Rei Dom João III contra fraudes no escambo

Nesta última postagem sobre questões relacionadas ao escambo entre portugueses e índios, trataremos de como até mesmo o rei de Portugal, D. João III, tomou providências no sentido de pôr termo às fraudes que se praticavam em detrimento dos nativos, dentre as quais o fornecimento de mercadorias de péssima qualidade, sempre a preços exorbitantes.
Ao estabelecer o Regimento de criação do Governo-Geral, o monarca lusitano fez incluir nas instruções destinadas a Tomé de Sousa, primeiro governador, a ordem de obstar os danos causados aos povos indígenas, mediante a fixação do preço das mercadorias que entravam no escambo. É Frei Gaspar da Madre de Deus quem conta:
"Querendo evitar D. João III as fraudes mencionadas, ordenou a Tomé de Sousa, primeiro Governador-Geral do Estado, em um dos capítulos do seu Regimento, que ele com os donatários taxassem o preço de todas as mercadorias, e não podendo o Governador vir pessoalmente a fazer esta diligência, cometeu-a ao Ouvidor-Geral Pedro Borges, que na Bahia se embarcava para as Capitanias do Sul com o fim de nelas abrir correição. Este Ministro convocou o Capitão-Mor, Ouvidor, Camaristas atuais, homens bons e os da governança, e com o parecer de todos determinou os preços dos resgates com mais equidade na Vila Capital de São Vicente, aos 28 de junho de 1550." (*)
Quanto ao resultado prático dessas disposições, pouco se poderia esperar, no entanto. O governador-geral, estabelecido na recém-fundada cidade do Salvador, estava longe demais da maior parte das Capitanias, principalmente se levarmos em consideração as enormes dificuldades de transportes e comunicações daqueles tempos; aliás, em muitas das ditas Capitanias, os próprios donatários jamais punham os pés. Como esperar que os preços fixados fossem, de fato, cumpridos?

(*) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 67.


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domingo, 26 de agosto de 2012

Era proibido denunciar aos indígenas as fraudes no escambo!

"Esse Filho de Deus, dizia Aimbire,
Só ensinou aos homens que se amassem,
Que fossem todos como irmãos e amigos.
Eles confessam isso, eles o adoram;
Mas por tudo que eu vi, pelo que fazem,
Creio que de seu Deus as leis aprendem
Pra calcá-las melhor, e não cumpri-las."
   Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios

Para que se veja a que ponto ia a capacidade de alguns comerciantes em suas tentativas de enganar os índios nas trocas que com eles entabulavam, consideraremos um relato feito por Frei Gaspar da Madre de Deus, em suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Inicialmente, explica como eram as relações comerciais entre portugueses e nativos:
"Aos índios pagavam com ferramentas, contas de vidro, búzios e outras bagatelas semelhantes, a que chamavam resgate; e o preço do que se havia de vender ao gentio taxava a Câmara de São Vicente nos anos mais próximos à fundação. Conforme a taxa custava um escravo quatro mil réis em resgates, vendidos àqueles miseráveis por preços exorbitantes." (¹)
A seguir, relata as maquinações dos vereadores contra os nativos:
"...ordenaram com penas graves, que nenhum cristão falasse mal de outro, ou de suas mercadorias diante de gentios, e declararam que, para ficar provada a transgressão desta lei, bastaria o juramento de qualquer cristão que ouvisse detrair. Por este modo dispensaram no Direito Divino e humano, que ao menos requerem duas testemunhas de maior exceção; e parecendo santíssimo o acórdão, ele se dirigia a conservar os bárbaros na ignorância de seu prejuízo, porque a postura trancava o único caminho por onde lhes podia chegar a notícia dos dolos com eles praticados, para que se não acautelassem." (²)
De saída, deve-se notar que Frei Gaspar da Madre de Deus não estava inventando ou exagerando: tudo foi lavrado em ata da vereação de 21 de julho de 1543. Aparentemente, era apenas uma lei contra a maledicência - que candura! Na prática, era inviabilizar qualquer denúncia das falcatruas que usavam cometer.
Ora, meus leitores, a coisa era tão séria, que El-Rei D. João III tratou de interferir na questão. Disso trataremos na próxima postagem.

(1) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da.  Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 66.
(2) Ibid., p. 67.


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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Problemas decorrentes do escambo entre europeus e indígenas

O início auspicioso - troca de presentes entre portugueses e índios, de acordo com o que conta Pero Vaz de Caminha na Carta do Descobrimento (¹) - não impediu que, depois de algum tempo, o relacionamento entre europeus e nativos se deteriorasse.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que os índios, com razão, se consideravam os donos da terra, embora relatos da época deem conta de que também eles diziam que a haviam ocupado, depois de dominar outros povos; por outro lado, os portugueses viam-se como conquistadores e, portanto, julgavam-se com o direito de explorar o território "descoberto" de acordo com seus interesses. Isso, por si, já bastaria para explicar os conflitos que vieram a permear o relacionamento entre brancos e índios.
Mas não era só.
Outros europeus, que não os portugueses, também acharam muito interessante a ideia do escambo e passaram a enviar embarcações à América, com a finalidade de estabelecer relações com a população nativa, de modo que a troca de mercadorias viesse a ser possível. Nisso, ao menos no século XVI, os franceses foram os de maior destaque: há, da época, inúmeras referências ao combate em pleno mar entre portugueses e esses "intrusos", que já iam de retorno à Europa com belas cargas de pau-brasil e outros artigos. Hans Staden, alemão que andou pelo Brasil no século XVI (²), observou, enquanto prisioneiro dos tupinambás, que franceses vinham à região da atual Niterói para negociar a troca de produtos europeus por macacos, papagaios e pimenta.
A questão que daí decorria é que, ao estabelecerem esse intercâmbio com franceses, os nativos passavam a considerar-se inimigos dos portugueses.
Explica-se: os índios não estavam, há séculos, sentados placidamente nas belas praias brasileiras, a esperar que um dia, finalmente, os portugueses os encontrassem; havia, por suposto, entre os povos indígenas, toda uma dinâmica de relacionamentos, tanto de amizade quanto de inimizade (como, aliás, acontece mundo afora, explícita ou disfarçadamente), e os europeus que vieram às terras da América do Sul foram, ainda que contra a vontade e, algumas vezes, valendo-se disso, arrastados a esse cenário, daí dizerem os tupinambás a Hans Staden que não gostavam dos portugueses porque eles eram "amigos de seus inimigos".
Portanto, querendo ou não, portugueses, franceses e outros europeus viram-se, através do escambo, metidos em intrigas tribais que, não raro, acabavam tendo consequências desastrosas.
Finalmente, é preciso salientar que não era incomum que comerciantes portugueses fornecessem aos índios mercadorias de muito má qualidade, fato que provocava revolta, ao ponto de autoridades terem de interferir contra essa injustiça. É disso que trataremos nas próximas postagens.
 
(2) Veja a postagem "Dormir em redes - Parte 1".


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Indígenas ou europeus: quem obtinha maior vantagem com o escambo?

Em termos absolutos, os europeus levavam grande vantagem com o sistema de trocas que estabeleceram com os índios: forneciam mercadorias de pouco valor na Europa, recebendo, por elas, produtos que podiam, depois, vender por alto preço.
É fato, porém, que, para os índios, que até então dispunham apenas de ferramentas de pedra, parecia ser bom negócio obter instrumentos de metal, ainda que desde logo tenha havido a preocupação de autoridades portuguesas no sentido de impedir o fornecimento de armas, pelos riscos que poderiam representar no futuro (¹).
Machadinha de pedra (artesanato guarani
de confecção recente)
Os povos indígenas do Brasil não tinham, ao que sabemos, alguma forma de escrita, mediante a qual possamos, hoje, conhecer quais eram suas impressões sobre o que estava acontecendo nos primeiros tempos da presença europeia. Isso significa que nos resta, apenas, o testemunho dos europeus ou dos de origem europeia, o que talvez signifique uma visão um tanto parcial dos fatos, impondo, portanto, uma análise criteriosa. Mas, pelo seu interesse, cito aqui um relato de Frei Vicente do Salvador, no qual dá sua versão da atitude de uma tribo em relação às mercadorias que obtinham dos portugueses.
Segundo ele, nessa tribo era usual que, quando alguém chegava de uma longa viagem, fosse saudado por um coro de lamentações sobre o desgosto que sua ausência causara, de modo que o mesmo acontecia em relação aos portugueses que, vindo de longe, apresentavam-se para o escambo:
"... e então lhe trazem de comer, o que também fazem aos portugueses que vão às suas aldeias, principalmente se lhes entendem a língua, maldizendo no choro a pouca ventura que seus avós e os mais antepassados tiveram, que não alcançaram gente tão valorosa como são os portugueses, que são senhores de todas as coisas boas que trazem à terra, de que eles dantes careciam, e agora as têm em tanta abundância, como são machados, foices, anzóis, facas, tesouras, espelhos, pentes e roupas, porque antigamente roçavam os matos com cunhas de pedra, e gastavam muitos dias em cortar uma árvore, pescavam com uns espinhos, faziam o cabelo e as unhas com pedras agudas, e quando se queriam enfeitar faziam um alguidar de água espelho, e que desta maneira viviam mui trabalhados, porém agora fazem suas lavouras e todas as mais coisas com muito descanso, pelo que os devem de ter em muita estima; e este recebimento é tão usado entre eles, que nunca ou de maravilha deixam de fazer, senão quando reinam alguma malícia ou traição contra aqueles que vão às suas aldeias visitá-los ou resgatar com eles." (²)
(2) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. c. 1627.


domingo, 19 de agosto de 2012

Os valores dos povos indígenas e as consequências do escambo

O comércio, em si, não é uma coisa má. Afinal de contas, quem é que é capaz de fazer, por si mesmo, tudo aquilo de que precisa, principalmente em sociedades altamente complexas como as que existem hoje?
Ocorre, porém, que o comércio pode, como todo  mundo sabe, ser fonte de (muitas) encrencas. O escambo, troca direta de uma mercadoria por outra, que se instaurou no Brasil com a chegada dos europeus, é um claro exemplo disso.
Até onde as fontes documentais de que dispomos nos informam, os povos indígenas do Brasil, pelas época do século XVI, não produziam, em geral, para troca. Comparados aos europeus, os índios dispunham de um número pequeno de artefatos, com os quais, no entanto, eram capazes de satisfazer às suas necessidades quotidianas. Um relato, de autoria do Padre Simão de Vasconcelos, nos conta que, perguntados pelo que tinham de maior valor, os nativos apontavam objetos que podiam carregar consigo, nada referindo de coisas que, para os europeus, eram tidas como importantes:
"Finalmente, acerca da bondade da terra se espraiavam mais: aqui mostravam com longas histórias e exemplos, as descrições das coisas que a seu modo tinham por de maior momento, como a de seus arcos e flechas, das penas com que se enfeitavam, das frutas agrestes que comiam e de que faziam seus vinhos; e eram das coisas que em seus olhos avultavam mais, deixando por de menos conta, a prata, o ouro, o âmbar e as pedras preciosas, às quais tem dado título de grandes, nossa real cobiça." (¹)
Porém...
Porém, com a chegada dos portugueses e o início do escambo, essa perspectiva passaria por uma transformação radical. Os índios, que produziam, quase sempre, apenas aquilo que era necessário ao seu próprio uso, passaram a ter interesse em produzir mais, sempre mais, para o "resgate", que é o nome que davam os portugueses a esse nascente comércio que instituíram. Em uma linguagem que certamente muitos de meus leitores conhecem bem, aquilo que antes tinha apenas valor de uso, passou a ter valor de troca. Ou seja, virou mercadoria.
Mas não foi só. A introdução de ferramentas de metal, uma inteira novidade para os indígenas, produziu alterações profundas na relação desses povos com a natureza. Apenas para exemplificar, machados fornecidos por europeus logo encontraram uso em derrubar facilmente enormes árvores que, arrastadas a simples depósitos no litoral - as feitorias - eram, depois da devida troca, embarcadas para muito longe.
Quando a expedição de Martim Afonso de Sousa veio ao Brasil, Pero Lopes anotou, em certa ocasião:
"Este dia vieram de terra, a nado, às naus, índios a perguntar-nos se queríamos brasil." (²)
Vê-se, nesse caso, que a iniciativa do escambo já não partia, necessariamente, dos portugueses. Os índios é que estavam, agora, interessados nas trocas.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 85 e 86.
(2) Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa.


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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O início do escambo entre europeus e indígenas no Brasil

Para nós parece a coisa mais natural que, quando queremos adquirir qualquer bem ou serviço, façamos o pagamento com o uso de moeda corrente, que pode variar, de acordo com o lugar onde se vive, mas cujo princípio é exatamente o mesmo, o de intermediário para facilitar as trocas.
Houve, entretanto - e há, ainda - sociedades nas quais a moeda, como a entendemos, era coisa inexistente. Isso valia para os povos indígenas do Brasil que viviam nas áreas litorâneas, quando da chegada dos portugueses, de modo que as relações comerciais que se estabeleceram foram, de saída, baseadas em escambo, ou seja, a troca direta de uma mercadoria por outra, sem o uso de moeda, mesmo porque, se os povos indígenas tivessem alguma moeda, seria pouco provável o estabelecimento de algum padrão de equivalência (câmbio) em relação ao dinheiro usado pelos portugueses.
O "comércio" entre portugueses e índios começou bem cedo. Mal chegada a esquadra de Cabral, houve, a crer no relato de Pero Vaz de Caminha, uma autêntica troca de presentes entre nativos e visitantes:
"Levava Nicolau Coelho cascavéis (¹) e manilhas. E a uns dava uma cascavel, a outros uma manilha [...]. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, ou de qualquer coisa que a gente lhes queria dar."
Em pouco tempo, entretanto, essa troca amistosa iria transformar-se em negócio sério, à medida que os europeus (não apenas portugueses) percebiam que era possível obter grande lucro com o escambo, fornecendo os índios mercadorias de alto preço nos mercados da Europa, em troca de objetos que, para os navegadores, tinham bem pouco valor. Era o caso da troca, por exemplo, de madeiras nobres por facas e tesouras, como se vê no Livro da Nau Bretoa, datado de 1511, ressalvando a autoridade real que de nenhum modo de fornecessem quaisquer armas aos nativos:
"Notificareis isso mesmo a toda a dita companhia que não resgate nem venda e nem troque com a gente da dita terra nenhumas armas de nenhuma sorte, que sejam punhais nem outras nenhumas que são defesas (²) pelo Santo Padre e por El-Rei Nosso Senhor, e poderão levar facas e tesouras como sempre levaram."

(1) Guizos.
(2) Isto é, proibidas.


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terça-feira, 14 de agosto de 2012

Em qual dia da semana?

"E assim seguimos nosso caminho por este mar, de longo, até que terça-feira das oitavas de Páscoa, que foram vinte e um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste dia, a horas de véspera houvemos vista de terra. Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e doutras serras mais baixas ao sul dele, e de terra chã, com grandes arvoredos; ao monte alto o Capitão pôs nome o Monte Pascoal, e à terra, a Terra da Vera Cruz."
                                                    Pero Vaz de Caminha, Carta do Descobrimento do Brasil

Alguém já observou que, em Portugal, alguns dos eventos mais importantes ocorreram sob chuva intensa. No Brasil, alguns dos eventos mais importantes, ao menos para a chamada História Oficial, ocorreram... Em fins de semana.
Vejamos:
D. Pedro como primeiro
imperador do Brasil, de
acordo com Debret (*)
A data oficial da chegada dos portugueses, 22 de abril de 1500, foi uma quarta-feira; a partir daí, entretanto, temos a execução de Tiradentes em 21 de abril de 1792, um sábado, a proclamação da Independência em 7 de setembro de 1822, também um sábado e a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, um domingo. Para completar, um "fim de semana prolongado": a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, aconteceu numa sexta-feira.
Não há nada de mágico ou místico nisso, apenas coincidência, fruto, inclusive, das datas selecionadas como marcos, que poderiam, em alguns casos, até ser outras. Veja-se, por exemplo, que o "Dia do Fico", 9 de janeiro de 1822, foi uma quarta-feira, e a abdicação do primeiro imperador, D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, uma quinta-feira. E isso sem levarmos em conta a enorme fila de datas importantes que poderíamos apontar desde a inauguração do período republicano.
A propósito: Consta que, em 12 de outubro de 1822, dia da proclamação de D. Pedro I como imperador do Brasil, choveu a cântaros no Rio de Janeiro, a capital do Império. D. Pedro I, seria, depois, D. Pedro IV em Portugal.

(*) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 12 de agosto de 2012

Características regionais na alimentação dos escravos

Para o leitor habitual de História & Outras Histórias, esta postagem será um complemento à anterior, na qual tratou-se da questão de como se alimentavam os escravos que trabalhavam em engenhos de cana-de-açúcar no Brasil Colonial.
À parte dos desmandos praticados por muitos senhores quando se tratava de cuidar da subsistência de seus escravos, há algumas referências bem interessantes que mostram o modo pelo qual as características das atividades econômicas regionalmente predominantes influenciavam a alimentação habitual que era fornecida aos cativos. É isso que veremos a seguir.

a) Alimentação dos escravos em áreas de pecuária no Nordeste
Neste trechinho que é parte da obra publicada por Antonil em 1711, somos informados de que era usual, nas áreas de pecuária de corte do Nordeste brasileiro, que sobras de carne fossem destinadas aos escravos:
"... comumente os negros, que são um número muito grande nas cidades, vivem de fressuras, bofes, e tripas, sangue e mais fato das reses." (¹)

b) Alimentação dos escravos no Sul do Brasil
Curiosamente, um fenômeno semelhante ao anterior ocorria no extremo sul do Brasil, já no início da segunda década do século XIX, conforme se depreende deste relato feito por Auguste de Saint-Hilaire, embora a abundância de carne fizesse, quase sempre, que não apenas as sobras ficassem com os escravos:
"Pernoitei numa estância, cujo proprietário estava ausente, e onde só encontrei um negro. Esse homem alimentava-se apenas de carne, sem farinha e sem pão, como sucede a todos os escravos nesta região." (²)

c) Alimentação dos escravos em área do Sudeste
Finalmente, no Sudeste, área em que o café começava a afirmar-se como cultura de importância econômica em termos de exportação, os cultivos habituais de subsistência eram também destinados ao consumo dos escravos, ainda de acordo com Saint-Hilaire, que escreveu, em data próxima à da Independência, ao encontrar em um rancho de tropeiros um grupo de escravos que iam à fazenda onde deviam trabalhar:
"No rancho ainda permanecia um lote de negros e negras novos que um feitor conduzia a uma fazenda vizinha de Resende.
[...] Ontem ao anoitecer estenderam esteiras no chão e deitaram-se uns ao lado dos outros, envoltos em cobertores. Essa manhã receberam todos uma ração de feijão com farinha, cozida com carne-seca." (³)
Cabe aqui explicar que a farinha, provavelmente, era a de mandioca, embora farinha de milho também fosse bastante consumida; "negros novos" era como se usava denominar aos africanos recém-trazidos da África, e que não eram, portanto, "experientes" nas agruras da escravidão. Esses, que Saint-Hilaire encontrou, iriam, em pouco tempo, estrear no cenário da maior desgraça que já ocorreu ao Brasil.

Escravos recém-trazidos da África (conhecidos, na época, como "negros novos"),
de acordo 
com M. Rugendas (⁴)
 
(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 187 e 188.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 138.
(3) Idem. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 125.
(4) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A alimentação dos escravos nos engenhos de açúcar do Brasil Colonial

Já houve quem aventasse a ideia de que os escravos que trabalhavam nos engenhos de açúcar no Brasil Colonial tinham uma alimentação, sob certos aspectos, até melhor que a dos senhores que habitavam a casa-grande. Sucedia assim, afirmou-se, porque os escravos recebiam um pequeno pedaço de terra no qual podiam, nas horas de folga, cultivar para si gêneros alimentícios que complementavam a ração diária que recebiam; já os senhores de engenho e suas famílias, afeitos à comida de Portugal, alimentavam-se, rotineiramente, de conservas que recebiam do Reino, que chegavam ao Brasil em muito mal estado, depois de meses de travessia do Atlântico.
Entretanto, os escritos deixados por autores que presenciaram a escravidão nos engenhos de modo algum corroboram tal visão que, se tem algo de "romântica", talvez não corresponda à realidade. É bom lembrar que esses autores, como a maioria das pessoas de seu tempo, não eram contrários à escravidão (o que acrescenta confiabilidade ao seu testemunho), apenas condenavam os maus-tratos a que eram submetidos os cativos.
Uma escrava, de acordo com Thomas Ender (⁶)
Cabe, pois, antes de mais nada, perguntar qual era, afinal, o tempo livre que um escravo de engenho tinha para empreender algum cultivo próprio. Quem já leu, de André João Antonil, (¹) a célebre obra Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, sabe muito bem que os trabalhadores eram ocupados nos afazeres relacionados à produção de açúcar desde o nascer do sol até entrada a noite, ocorrendo, por vezes, na temporada de safra da cana, que um engenho funcionasse ininterruptamente, dia e noite. Além disso, como veremos em uma postagem que não tardará a aparecer neste blog, muitos senhores sequer faziam respeitar o direito dos escravos ao descanso nos domingos e feriados religiosos, como preconizava a Igreja. Não espanta, pois, que o Padre Antonil/Andreoni não medisse palavras em condenar às penas do inferno os senhores que, extraindo deles até a última gota de suor, abandonavam-nos à penúria absoluta quando se tratava de alimentação e vestuário:
"Porém não lhes dar farinha, nem dia para a plantarem e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia, e de noite com pouco descanso no engenho: como se admitirá no Tribunal de Deus sem castigo? Se o negar a esmola a quem com grave necessidade a pede é negá-la a Cristo Senhor nosso, como ele o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido a seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras galas às que são ocasião de sua perdição, e depois nega quatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de pano da Serra a quem se derrete em suor para o servir, e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer?" (²)
Além disso, no Compêndio Narrativo do Peregrino da América (³), provavelmente o primeiro bestseller em terras do Brasil, o autor, Nuno Marques Pereira, oferece a seguinte argumentação:
"Queixam-se muitos senhores, que lhes fogem os escravos, e lhes morrem, sendo que muitos escravos com maior razão se podiam queixar de seus senhores, pelos [sic] terem em suas casas tratando-os tão mal. [...] A fome e o frio metem a lebre a caminho. Como é possível viver um escravo em um lugar onde onde o matam à fome, e o deixam perecer ao frio, e sobre isso o fazem trabalhar?" (⁴)
E prossegue, comparando a situação dos escravos nos engenhos do Brasil à dos bois em Portugal:
"Os lavradores em Portugal, ainda aos bois com que trabalham, lhes dão o sustento necessário, e os recolhem do frio, porque se assim não o fizessem, trabalhariam um ano, porém para o outro haviam de ficar sem bois que os ajudassem. E eu vejo que muitos lavradores do Brasil tratam tão mal a seus escravos, que não só os fazem trabalhar de dia, senão ainda de noite, rotos, nus, e sem sustento. Pois com que razão se queixa um homem destes que assim obra, de que lhe fujam os escravos, e lhe morram, faltando-lhes ele com o necessário alimento para a vida?" (⁵)
Chegamos, pois, meus leitores, aos seguintes termos: Se os senhores, pela fúria de produzir o máximo possível de açúcar, descuidavam do cultivo de gêneros alimentícios até para si mesmos, como supor que teriam alguma preocupação com este assunto em relação a seus escravos? Não é difícil perceber que, nessas condições, é pouco provável que o escravos pudessem, em verdadeiro idílio, cultivar suas hortas, das quais, prodigiosamente, extrairiam melhor sustento do que o disponível para seus senhores. Os documentos acima citados são, nesse aspecto, bastante claros; eventuais exceções, quando as houvesse, eram apenas para confirmar a regra.
Por outro lado, é verdade que, em algumas situações, em tempos posteriores tornou-se comum entregar uma fração de terra aos escravos para que a cultivassem e dela dispusessem para uso próprio - isso não era de todo incomum em fazendas de café, no século XIX - mas, nesse caso, vê-se mais uma vez a perfídia da lógica escravista: se o escravo plantava um "extra" para sua alimentação, ficava o senhor dispensado, por assim dizer, dessa obrigação.
 
(1) Sobre a verdadeira identidade de André João Antonil, veja a postagem "Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar do Brasil Colonial".
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 26 e 27.
(4) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 160.
(5) Ibid., pp. 160 e 161.
(6) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 7 de agosto de 2012

Máquina de macadamizar

Sabem os leitores o que é uma máquina de macadamizar? Isso mesmo, ma - ca - da - mi - zar. Pois era um equipamento usado na pavimentação de ruas e estradas, segundo uma técnica desenvolvida, ainda no século XIX, na Grã-Bretanha, e que no Brasil foi aportuguesada como macadame.
A máquina que se usava para assentar perfeitamente os materiais empregados era essa que se vê abaixo:


Este exemplar, especificamente, está restaurado e pode ser visto em Poços de Caldas (MG), cidade na qual foi usada nos anos trinta do Século XX. Mais tarde, o desenvolvimento e uso generalizado da pavimentação asfáltica aposentou a ma - ca - da - mi - za - do - ra, pelas muitas vantagens que a nova técnica oferecia.


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domingo, 5 de agosto de 2012

Nomes de ruas e praças em cidades do Brasil

Ao contrário do que ocorreu em muitas cidades coloniais da América Espanhola, com seus arruamentos deliberadamente retilíneos (ou quase...), algumas cidades coloniais brasileiras eram, sob esse aspecto, uma autêntica imagem do caos. Ainda hoje, caminhar pelas que foram preservadas sem perder o rumo, pode ser um pequeno desafio.
Quando o uso de GPS não era muito comum, eu tinha minha estratégia particular: identificava a torre da igreja mais próxima, já que nelas, igrejas nunca faltam, e tomava-a como meu ponto de partida. Daí, caminhava quanto queria, sem maiores preocupações e, quando decidia que era hora de voltar, apenas levantava a cabeça, procurava a torre da igreja que havia assinalado no início e seguia na direção dela. Geralmente funcionava. Mas antes que algum leitor resolva testar o método, advirto que o fará somente por sua conta e risco. Dá certo para mim - não significa que funcionará para todo mundo.
As ruas das cidades coloniais recebiam nomes sem muito critério, quase ao acaso. Algumas eram chamadas pela igreja de onde partiam, outras eram a rua de fulano ou sicrano (que lá moravam), ou ainda a rua do pedreiro, do ferreiro, o que ia para o plural se os profissionais se agrupassem na localidade. Outras denominações eram mais que curiosas, chegavam a ser humorísticas, para dizer o mínimo.
O crescimento urbano e o estabelecimento de instâncias de governo mais definidas contribuíram para, aos poucos, colocar alguma ordem na bagunça da nomenclatura das ruas e praças públicas. Nos dias do império, quase toda localidade de alguma importância tinha sua Rua do Imperador, frequentemente uma Rua da Imperatriz e, por vezes, uma Rua da Princesa (fora casos específicos, referia-se à princesa Isabel). Nomes de figuras importantes entre titulares e políticos do Império eram também usuais. Pois bem, o advento da República levou à quase completa desaparição dessas denominações. Com a nova moda, muita rua do Imperador virou Quinze de Novembro e, mais tarde, outras receberam nomes de líderes republicanos como Marechal Deodoro ou Benjamin Constant, por exemplo. Afinal, era importante deixar evidente a adesão ao novo regime.
Assim, andar pelas ruas de uma cidade, observando os nomes indicados nas placas de ruas, pode revelar muito sobre seu passado, se é cidade antiga ou mais recente, se preservou antigas denominações das vias públicas ou se novos acontecimentos trouxeram, também, novos nomes, e por aí vai. E se você leitor, conhece algum nome curioso, diferente, exótico até, em alguma rua de sua cidade, conte para mim e para os demais leitores, deixando um comentário nesta postagem!


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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Anúncios curiosos das primeiras décadas do Século XX - Parte 12

Chegamos, senhores leitores, à ultima postagem desta série. E, para que seja dignamente coroada, preparei aqui uma pequena coleção de propagandas de "medicamentos" que, supostamente, podiam resolver quase todos os problemas da humanidade.
É bom lembrar: sem o controle de agências que vigiassem  a confiabilidade dos medicamentos ou que zelassem pela veracidade dos anúncios, podia-se pôr à venda quase tudo, tanto o que dava bons resultados quanto aquilo que para nada servia. Mas isso era coisa que o competia ao consumidor descobrir, naturalmente depois de haver pago pelo produto e fazer uso dele. Mas vamos aos anúncios:

Só era careca quem queria (¹)


O terror da criançada (²)


Picadinha de cobra? (³)


Finalmente, quase inacreditável - o "único alívio da mocidade"... (⁴)



(1) ILLUSTRAÇÃO PAULISTA, 17 de fevereiro de 1912.
(2) O MALHO, 22 de setembro de 1906.
(3) Ibid.
(4) A CIGARRA, 30 de dezembro de 1915.
As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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